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Era um sábado. Há trinta anos exactamente. Saíra da nossa
casa clandestina de Valongo no dia anterior. Dormira em casa de um camarada
e, no dia seguinte, tivera uma reunião com um organismo de professores
que se destacaria, dias mais tarde, na arrancada para um sindicato de professores
no Norte. Entre cada trajecto procedera aos “cortes” necessários
e no início da reunião começáramos, é claro,
pelo “minuto conspirativo”- cada um reconstituía o trajecto
feito até ali, com as anotações que lhe tinham suscitado
interesse. O ambiente era de uma tensão cheia de expectativas. Que tinham
pernas para andar. Apesar das prisões, ainda estava na memória
a grande manifestação contra a carestia de vida e presentes as
lutas mais recentes em algumas empresas, acções da oposição
democrática e dos movimentos estudantil e cooperativo.
Ao fim do dia regressaria de autocarro até à paragem da entrada
da vila, seguiria por um caminho, à esquerda, e iria procurar, num buraco
do muro que o definia, um pequeno pedaço de vidro verde. A minha companheira
de então, a Fátima, que nesse dia ficara em casa, transmitia-me
assim que o caminho estava livre, que não houvera novidade. Se o não
encontrasse, voltaria atrás, procuraria onde ficar, de maneira a poder
retomar contactos com segurança.
Era uma casa alugada há pouco, que começáramos a mobilar,
com preocupações de que o que se visse de fora não revelasse
a modéstia de uma casa do Partido. A velha cama, encontrada desmontada
numa marcenaria de Campanhã, reluzia agora, à força do
“bioxene” (vieu chêne), coberta por uma colcha branca, de
maneira a poder, estrategicamente, enxergar-se de uma janela, através
de uns cortinados sem luxos mas bonitos . Era cenário porque à
noite o colchão ia para o chão... Como cenário era uma
carcaça de fogão com forno. A cozinha abria para a rua e, de facto,
cozinhávamos num fogão eléctrico de duas placas colocado
numa mesa por detrás da porta...
As compras eram feitas em diversas lojas para que não pudessem avaliar
o nosso nível de vida. Como raramente comprávamos carne –
e quando o fazíamos era pouca – dizíamos que nos abastecíamos
no Porto...
A porta da rua abria-se e em cima de um pequeno móvel estava a jarra,
que o camarada que me apanhara no Porto, para me passar ao Zé Bernardino,
me tinha oferecido.
Não pude deixar de dizer ao Zé que, apesar das lentes de contacto
e do bigode farfalhudo o tirara logo pela pinta!... E só o conhecera
uns anos antes, quando, saído da cadeia, retomou o contacto com algumas
cadeiras no Técnico em 69, e aí me recrutou para o Partido. O
Zé depressa voltou à clandestinidade.
Voltando à jarra: era pequena mas bonita e supostamente com gosto a
condizer com o de um consultor literário (eu), que escondia nessa ficção
a actividade clandestina, também protegida com um novo bilhete de identidade,
cuidadosamente falsificado, em que estava com um ar respeitável captado
num fotógrafo da Rua Aníbal Cunha, sem a guedelha, a pêra
e o bigode com que me paramentara nos anos anteriores. O bilhete já fora
o certificado de garantia para o contrato de aluguer da casa com um cidadão
do Porto que, no andar por cima de nós, montara casa para uma sobrinha...
Já não sei o que jantámos nesse dia. Talvez o pitéu
que o Zé recomendara, compatível com os nossos orçamentos.
Coza-se arroz branco, encha-se a travessa, barre-se com maionese feita com um
ovo, distribuam-se em cima pedaços de atum de conserva, estilhaçados,
e decore-se com rabanetes semi-descascados. Sim, porque os olhos também
comem. Depois foi a loiça, a Rádio Portugal Livre, o queimar algumas
notas e o cifrar outras, o refazermos os passos dados nesses dias, conferindo
as regras, a preparação de contactos e de propostas de trabalho
em encontros com dois engenheiros nos dias seguintes.
Para trás ficava um período em que a PIDE me marcava regularmente.
E o convite do Partido por que tanto esperei, feito numa casa na R. Maria Pia.
Para trás ficavam ainda as aulas nocturnas que dava no Colégio
Moderno e nas quais o Veiga me substituiu com vantagem para a Dra. Maria Barroso.
E foi em casa dele, nos arredores de Lisboa, que me “despedi” dos
meus pais (todos sabíamos ao que íamos mas não o traduzíamos
em palavras). As semanas seguintes, passei-as na casa do Manuel Alpedrinha,
na Parede, aguardando a minha companheira. Foram longas e interessantes as conversas
com ele. Depois foi a saída para o Porto, de automóvel, com o
Maia Rebelo. E aí ficámos, na casa de uma prima minha, onde dissemos
que íamos “saltar” para o estrangeiro. Tivemos ambos contactos
com os organismos do Partido a que ficaríamos ligados e iniciámos
os passos para montar a futura - e efémera - casa.
Depois desse dia 19, foram mais os contactos de rua. Ficámos, entretanto,
preocupados, no dia 21. O Zé não comparecera a um encontro com
a Fátima, em Baguim. E ela dera uma volta pelo campo para fazer tempo
para a hora do recurso. Notara uma movimentação estranha na zona,
de carros e de pessoas, que a levaram a não voltar à estrada e
a ficar, à distância, a ver se o Zé apareceria. Passada
a hora do recurso, não apareceu e ela abandonou o local através
do arvoredo. Acontecera que naquele momento, não muito longe, a PIDE
apanhara o José Carlos Almeida, o último funcionário do
Partido a ser preso antes do 25 de Abril. O Zé também se tinha
apercebido do movimento e decidira também não comparecer ao encontro.
Na noite de 24, como de costume não nos deitámos tarde. Ao pequeno
almoço, ouvimos no rádio os comunicados, as marchas, os avisos...O
Zé afinal aparecia... a bater-nos à porta, contra todas as regras!
Contou-nos o que se passava e levou-me para fazermos contactos. As coisas ainda
não eram garantidas e o Partido revelava-se gradualmente. A estrutura
clandestina teria que se ir mantendo parcialmente. Por isso, a Fátima
ficou três dias, sozinha, a acompanhar os acontecimentos pela rádio
e a pintar febrilmente panos com as palavras de ordem do momento: “Regresso
de Álvaro Cunhal!”, “Fim da guerra colonial!”...Depois
reencontrámo-nos. As emoções, em turbilhão, eram
indiscritíveis.
No 1º de Maio, com a Av. dos Aliados cheia, um burguês, certamente
de origem rural, bem vestido, a meu lado, com uma mão no colete e outra
acompanhando o gesto largo do braço, sentenciava, com uma cigarrilha
no canto da boca: “Vê? Isto é tudo pessoal de Gaia!”.
Mas já eram os trabalhadores que marcavam o ritmo.
Depois foram dias que não se distinguiram das noites. Actos colectivos
feitos de desempenhos individuais realizados ombro a ombro. A catadupa de sentimentos,
de acontecimentos, a impossibilidade de guardar na memória tantos episódios.
A primeira filha que nasce em 75, certeiramente no 7 de Novembro, mas numa conjuntura
política de grande tensão e cuidados.
Quando, nos trinta anos desta revolução inacabada, olho para
os cartazes “oficiais” e neles lhe chamam “evolução”,
dou comigo a perguntar aos seus autores se foi evolução o período
1383/1385, se foi evolução o 5 de Outubro ou se não estará
nesse semântico trocadilho subjacente um desejo irreprimível de
rescrever a História e acabar por passar a revolução de
Abril a um prolongamento da “evolução na continuidade”
de Marcelo Caetano...
Quando há dias, em reunião de Câmara tivemos a difícil
e viva discussão sobre a atribuição de topónimos
a Costa Gomes e António de Spínola, todas as emoções
regressaram. Alguém disse então, uma vez mais, que o 25 de Abril
não é propriedade só de uns.
O 25 de Abril não é, de facto, propriedade de ninguém
em particular. Mas muito menos tem que ser albergue de creditação
das asneiras dos que com algumas atitudes continuam a revelar incomodidade,
desconforto e a ver a História pelo retrovisor dos seus egos mal afagados.
Asneiras ciclicamente reeditadas quando se aproxima a festa que o povo continua
a fazer desta data, impregnando-a das suas lutas de hoje e das aspirações
não realizadas.
Pode-se gostar mais ou menos. Grave é rescrever, violando o rigor histórico.
Como alguns que perderam o crédito quando, com informação
e formação histórica para não se atolarem num sectarismo
ignorante, disseram que o 25 de Abril não decorreu de décadas
de resistência que deram outra consequência ao acto libertador,
particularmente nos últimos anos que o antecederem. Ou os que, desconhecedores
das regras conspirativas da compartimentação de informação,
entenderam dizer que o PCP não teve a ver com ele porque nesse dia falaram
com alguns militantes que não estavam a par(!!). Sem se terem dado ao
trabalho de aos mesmos terem perguntado quantas “credenciais” tinham
passado nos meses anteriores para camaradas que foram para a tropa, que optaram
por não fugir à guerra que tinha também que ser combatida
aqui e no seu próprio seio.
No dia 25 festejarei em Olhão, mas também terei um pensamento
solidário com todos os que, aqui em Lisboa, vão descer a Avenida
que é a da Liberdade.
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