Cumprem-se
este ano 150 anos sobre a escrita e a publicação de um
texto fundamental para o movimento operário mundial - o Manifesto
do Partido Comunista, da autoria conjunta de Karl
Marx e Friederich Engels. Associando-se às comemorações
deste aniversário, o nosso jornal promoveu uma conversa com
os nossos camaradas Francisco Melo e José Barata-Moura, que
dirigiram a edição recentemente lançada pelas Edições
Avante! e que nos falam não apenas da
história e da importância que o documento teve para a
clarificação teórica e para a organização da luta do
proletariado ao longo de século e meio mas também da sua
actualidade nos dias de hoje.
Uma
nova edição e a sua história
FRANCISCO
MELO — Em 1975 publicaram as Edições
«Avante!», sob a direcção científica de Magalhães-Vilhena,
uma edição do Manifesto do Partido Comunista de Karl
Marx e Friedrich Engels. Como se dizia no texto inicial «Ao
Leitor», tratava-se da primeira tradução «em língua
portuguesa, legal ou não, em Portugal ou no Brasil (pelo menos
que saibamos), estabelecida directamente sobre os originais, em
alemão e inglês».
Desta tradução, acompanhada de «Notas Complementares» de
Magalhães-Vilhena que deverão ser consultadas para um estudo
aprofundado do Manifesto, foi publicada, em 1982, uma
versão revista, integrada no tomo I das Obras Escolhidas de
Marx-Engels.
Encontrando-se esgotadas aquelas duas edições, recentemente,
uma versão da última, novamente revista, foi publicada, em
separado, pelas Edições «Avante!».
Porquê esta
sucessão de revisões? No já mencionado texto «Ao Leitor»
dizia Magalhães Vilhena sobre a tradução editada sob a sua
orientação científica: «[...] porque temos consciência da
dificuldade imensa da tarefa, sabemos que por hoje não se pode
tratar aqui senão de uma tentativa - e o que é mais: de
uma primeira tentativa, para a qual nenhuns trabalhos
preparatórios, mesmo parciais, abriram de algum modo o caminho.
Só do esforço colectivo de elaboração, paciente e longo,
resultará, num dia que é de desejar próximo, a edição
portuguesa que o imortal Manifesto do Partido Comunista,
de Marx e Engels, exige dos investigadores marxistas de
expressão portuguesa». As sucessivas traduções revistas
publicadas pelas Edições Avante! têm pretendido ser
passos no caminho da concretização da orientação e da
exigência apontadas por Magalhães-Vilhena.
JOSÉ
BARATA-MOURA
— O Manifesto do
Partido Comunista foi publicado pela primeira vez em Londres,
na segunda metade de 1848, sem indicação de autoria. O
manuscrito original não foi até hoje encontrado, e apenas nos
restam duas peças de rascunho. A redacção é de Marx. E há
até uma indicação quase anedótica - é que, em 24 de Janeiro
de 1848, a direcção central da Liga dos Comunistas avisa que,
se Marx não enviar o texto para Londres até 1 de Fevereiro,
«ulteriores medidas serão contra ele tomadas», e que deverá
devolver a documentação que foi posta à sua disposição para
a redacção.
Em 1850, Marx dá
também a entender que é o autor do Manifesto, numa
declaração sobre a interpretação de posições suas que faz
uma revista de Frankfurt.
No entanto, do ponto
de vista substancial, o Manifesto é uma obra comum, de
Marx e de Engels. No 2º Congresso da Liga dos Comunistas, em
finais de 1847, Marx e Engels tinham sido encarregues de formular
os novos princípios fundamentais do movimento. E em 1850, numa
nota a uma publicação parcial do Manifesto, Marx e
Engels declaram-se autores do texto.
É importante ter em
conta que, no quadro da colaboração conjunta de Marx e de
Engels, a partir de 1844, e no quadro também da reorganização
e relançamento da Liga dos Comunistas, em 1847, Engels havia
composto já uns Princípios do Comunismo, em forma de
perguntas e respostas. E de facto muita da matéria que aparece
no Manifesto está também presente em textos anteriores e
em intervenções, quer de Marx, quer de Engels.
Outro dado a ter
também em conta é que o formato do Manifesto, e o
próprio título, são sugeridos por Engels numa carta a Marx, de
23/24 de Novembro de 1847.
Significado
e necessidade
do Manifesto
FRANCISCO
MELO — Na primeira página do Manifesto
pode ler-se: «Já é tempo de os comunistas exporem abertamente
perante o mundo inteiro o seu modo de ver, os seus objectivos, as
suas tendências, e de contraporem à lenda do espectro do
comunismo um Manifesto do próprio partido.» Parece-me, pois,
que tinha razão Labriola quando, em 1895, dizia: «De aqui [ou
seja, do Manifesto] começa o socialismo estritamente
moderno.» E acrescentava: «Aqui está a linha de delimitação
de tudo o resto.»
Na verdade, ao dotar
a classe operária de um programa próprio, Marx e Engels
terminavam o processo de formação da primeira organização
revolucionária internacionalista do proletariado. É isto que
marca uma viragem decisiva na história do movimento operário e
terá nele uma influência sem precedentes porque proclamava pela
primeira vez a tarefa revolucionária da classe operária: pôr
fim ao modo de produção capitalista, acabar com a exploração
do homem pelo homem, constituir uma sociedade sem classes, uma
sociedade verdadeiramente humana. E esta tarefa não aparecia
como a expressão do desejo de realização de qualquer secular
sonho dos homens, mas (e aqui está o novo, a tal «linha de
demarcação»), como resultado do conhecimento das leis e
tendências do desenvolvimento social.
O Manifesto
veio, pois, fornecer aos proletários organizados «em
partido político» uma teoria de vanguarda; por isso se diz que,
com ele, o socialismo científico se funde com o movimento
operário, conferindo-lhe um carácter verdadeiramente
revolucionário. Fusão necessária, que Lénine exprimirá, no
começo do século, na célebre frase do seu Que Fazer?:
«Sem teoria revolucionária não pode haver também movimento
revolucionário.»
Intervir
sobre a realidade
JOSÉ
BARATA-MOURA — O Manifesto não é uma obra de
gabinete, nem de intelectuais isolados que se alarmam com o curso
dos acontecimentos e condoem pela sorte dos trabalhadores,
congeminando propostas de salvação.
O Manifesto
surge na base de uma realidade conflitual em desenvolvimento e de
diferentes esforços de a compreender e sobre ela intervir. Surge
de dentro de um movimento, o movimento operário e, em particular
a Liga dos Comunistas, em busca de clarificação teórica e de
reorganização operativa.
Do ponto de vista
subjectivo, da mobilização de pensamento transformador e de
forças sociais em condições de o realizar, o Manifesto
representa um momento alto daquele propósito de congregar, como
Marx tinha escrito numa carta a Arnold Ruge em 1843, «recrutas
para o serviço da humanidade nova», fazendo convergir numa luta
comum aquilo a que ele chama «a humanidade que sofre e que
pensa» e «a humanidade que pensa e que é reprimida».
Nos Anais
Franco-Alemães, de 1844, Marx falará do encontro crítico e
revolucionador das «armas espirituais» da filosofia e das
«armas materiais» do proletariado.
No entanto, a
perspectiva porventura mais inovadora e fecunda do Manifesto
reside no ensaio de inserir a dimensão política e
revolucionária da luta social no processo que constitui a
própria textura material da história que as colectividades
humanas - não apenas no plano económico - vão modelando e
transformando pelo seu trabalho.
É por isso que o
comunismo não aparece como uma doutrina «ideal» que celebra as
perfeições de um dever-ser inatingido, mas como uma
apropriação teórica e prática de um movimento real em curso,
do seio de cuja contraditoriedade efectiva se projectam
possibilidades reais de reconfiguração revolucionante e com um
cunho de classe da produção do viver num sentido alargada e
concretamente emancipador.
Como no Manifesto
se pode ler, «As proposições teóricas dos comunistas de modo
nenhum repousam sobre ideias, sobre princípios, que foram
inventados por este ou por aquele melhorador do mundo. Elas são
apenas expressões gerais das relações efectivas de uma luta de
classes existente, de um movimento histórico que se passa ante
os nossos olhos.»
A crítica e a
transformação revolucionária comunistas enraizam, intervêm e
realizam praticamente um trabalho interno à história, de
configuração humana e humanizante das suas realidades. É de
dentro do movimento real, e como instrumento para a sua
compreensão crítica e transformação revolucionária,
incarnada na prática esclarecida dos agentes que estão em
condições de organizadamente as levarem a cabo, que o Manifesto
é pensado.
Uma
tarefa histórica
FRANCISCO
MELO — Tem sido observado que no Manifesto
se faz uma exaltação do papel histórico da burguesia. Mas
também se pronuncia a sua sentença de morte: partindo da
análise das leis do desenvolvimento social e, em primeiro lugar,
da lei da correspondência necessária das relações de
produção e das forças produtivas, Marx e Engels chegaram à
conclusão da inevitabilidade do derrube da burguesia. Mas eles
não tinham de modo nenhum uma concepção mecanicista do
determinismo histórico. Na verdade, ao evidenciarem o que «se
processava diante dos seus olhos» — «crises comerciais
que, na sua recorrência periódica, põem em questão, cada vez
mais ameaçadoramente, a existência de toda a sociedade
burguesa», a «epidemia da sobreprodução» em que a
«sociedade se vê retransportada a um estado de momentânea
barbárie» (que indignação não despertariam nalgumas boas
almas de hoje estes horrores de há 150 anos?!), etc. —,
Marx e Engels concluíam: «Mas a burguesia não forjou apenas as
armas que lhe trazem a morte; também gerou os homens que
manejarão essas armas — os operários modernos, os
proletários.» Quer dizer, a história age através dos
homens, no caso vertente a classe operária, cujo papel de
«coveira» da burguesia emerge das suas condições de
existência no regime capitalista: ela é a mais explorada, a
mais concentrada, a melhor organizada e a mais disciplinada
— e, por isso, a mais revolucionária.
Um
texto inovador
JOSÉ
BARATA-MOURA
— Do ponto de vista
formal, este texto de 1848 é também inovador. Não é um
catecismo - à maneira do que era então corrente nas
elaborações teóricas do movimento operário para
endoutrinamento de neófitos ávidos de decorar as respostas
identificadoras de um credo. É um Manifesto, algo
que se mostra, que se manifesta, que se dá a conhecer e também faz
conhecer realidades que irreflectidamente se
sofrem, mas que é possível transformar também, actuando sobre
aquilo que as estrutura.
Contrariando a ideia
de que o comunismo é um espectro de contornos misteriosos
e sombrios - que todas as potências reinantes anatematizam e
combatem, e que os próprios adeptos até difundiam e faziam
avançar pelos canais clandestinos das sociedades secretas -,
Marx e Engels entendem que, em articulação com o facto de ele
ser reconhecido já, e apesar de tudo, como um poder, é chegado
o momento de o comunismo vir à luz do dia.
No contexto da
altura, esta foi, sem dúvida, uma orientação política
fundamental.
Para vir eficazmente
à luz do dia, para se tornar manifesto, o comunismo
apresentava já uma base potencial de ancoragem social - o que
não pode ser desligado do avanço das próprias relações
capitalistas - e estava também em condições de apresentar
ideias, pensamentos, linhas políticas de orientação para a
luta de transformação de realidades que deixam de ser apenas
sofridas para passarem a começar a ser conhecidas na sua
génese, desenvolvimento e contraditoriedade.
Este é o
significado teórico fundamental do Manifesto - decisivo
na conjuntura, determinante de muitos outros aprofundamentos que
não deixaram de verificar-se, inspirador para as tarefas que
continuam a concitar a inteligência, o querer e o trabalho dos
comunistas.
As
posições perante o Manifesto
FRANCISCO
MELO — O carácter revolucionário do Manifesto
não poderia deixar de provocar «delimitações» de campos
na própria avaliação que dele se fez e faz.
Alguns exemplos: em
escrito recente, lembrava o Barata-Moura as palavras de Jean
Jaurès, na linha do que poderíamos caracterizar como um
revolucionarismo evolucionista, segundo as quais o Manifestoapenas conteria «pensamentos antigos de onde a verdade
fugiu». Outra era a apreciação de Lénine, expressa poucos
anos antes: «Este pequeno livrinho vale por tomos inteiros: ele
inspira e anima até hoje todo o proletariado organizado e
combatente do mundo civilizado.»
Isto nos finais do
século passado-princípios do actual. Um século depois, estas
posições manter-se-ão? Certamente que sim. O Manifesto
será, por exemplo, rejeitado por aqueles que,
perfilhando uma «estratégia evolucionista e possibilista,
tendem a identificar conquistas democráticas e sociais
possíveis sob o capitalismo com a própria noção de
superação do capitalismo» (extraio esta caracterização da Resolução
Política do nosso XV Congresso). Pelo contrário,
considerá-lo-ão como fazendo parte do seu património
teórico-político aqueles que, constatando que «o
desenvolvimento do capitalismo neste findar de século está a
conduzir a manifestas regressões de carácter social,
democrático e cultural que confrontam a humanidade com o perigo
de graves retrocessos civilizacionais», entendem que «a
alternativa necessária é a superação revolucionária do
capitalismo» (ibid.).
A
perspectiva de luta
JOSÉ
BARATA-MOURA — Se a minha leitura é correcta, o Manifesto
não é, nem um texto moralista, nem um texto utópico. Enraiza
na compreensão e no trabalho da história um projecto
económico, político, social e cultural revolucionário de
transformação, atravessado por uma inequívoca perspectiva de
classe. É pelos interesses globais do proletariado que os
comunistas se batem e «o movimento proletário é o movimento
autónomo da imensa maioria no interesse da imensa maioria».
O capitalismo não
é a encarnação do Mal, mas um modo de produzir e reproduzir o
viver que se foi instalando nas sociedades humanas ao longo de
toda uma génese e maturação, no decorrer da qual importantes
desenvolvimentos, ao nível das forças produtivas, da
organização política, dos valores e da cultura foram tendo
lugar.
Todavia, num quadro
de mundialização crescente, modelado à medida dos seus
interesses e à sua imagem, em que (como já ao tempo de Marx era
perceptível), por detrás de muitas «ilusões políticas e
religiosas», aquilo que se implanta é «a exploração aberta,
desavergonhada e seca». Deixada à solta, entregue a si mesma, a
lógica do capital não pode deixar de produzir, alargadamente,
efeitos desta natureza.
Por sua vez, o
comunismo também não é a descrição utópica de um paraíso a
implantar; o comunismo é a expressão contemporânea daquela
luta de classes que atravessa e conforma a história de que há
memória escrita (e de dentro da qual a própria burguesia
moderna surgiu e se afirmou), e a história que continua a pôr
em confronto os possuidores dos «meios sociais de produção» e
os «trabalhadores assalariados».
Num contexto de
exploração galopante e de crises recorrentes (de que as
comerciais e de sobreprodução constituem apenas uma
ilustração histórica), um revolucionamento real da estrutura
em que assenta o viver social e as reconfigurações subsequentes
(não apernas no domínio da economia) que terão de
empreender-se, colocam como questão central incontornável a
abolição da propriedade burguesa sobre os meios sociais de
produção.
É essa a grande
perspectiva de luta que o Manifesto nos lança, não sem,
do mesmo passo, convocar a nossa atenção para a necessidade de
implementar um poder político democrático, isto é,
efectivamente ao serviço da maioria trabalhadora, de promover a
instrução pública gratuita em bases universais, de cuidar da
produção e da batalha das ideias, de dignificar a condição
feminina, etc., etc.
Para o combate por
estes objectivos (inscritos nas possibilidades que a própria
realidade materialmente prepara e projecta) e para a consecução
destes objectivos é indispensável uma ampla, esclarecida e
organizada mobilização social. A base para essa mobilização
social encontra-se dada pelas próprias condições dos
«desprovidos de propriedade», mas todo um esforço teórico e
prático de esclarecimento, congregação e movimentação tem
que ser empreendido. É nesse movimento que o labor dos
comunistas se inscreve, pelo seu empenho prático decidido e pela
sua perspectivação teórica, num quadro nacional e
internacionalista, no sentido de potenciar a dimensão política
(e não apenas economicista) da luta de classes em curso.
O
internacionalismo e a «defesa da pátria»
FRANCISCO
MELO — Como
já referi, no Manifesto Marx e Engels fundamentam
a ideia do papel dirigente da classe operária na luta por um
mundo sem explorados nem exploradores. O apelo internacionalista
«Proletários de todos os países, uni-vos!» com que encerra o Manifesto
é o corolário não apenas da igualdade internacional da
condição de explorados dos proletários de todos os países,
mas também da identidade internacional da tarefa de que a
história os incumbe. Quererá isto dizer que devem fazer tábua
rasa da luta no plano nacional? A afirmação «os proletários
não têm pátria» poderá induzir uma interpretação nesse
sentido. A frase que imediatamente se lhe segue mostra que se
trata apenas de uma constatação fáctica:«Não se lhes pode
tirar o que não têm.» E a continuação do texto (já Lénine
tinha chamado a atenção para isto em 1916 em carta a Inessa
Armand) é explícita para não permitir fazer de Marx e Engels
advogados de um qualquer niilismo nacional: «Na medida em que o
proletariado tem primeiro de conquistar para si a dominação
política, de se elevar a classe nacional, de se constituir a si
próprio como nação, ele próprio é ainda nacional, mas de
modo nenhum no sentido da burguesia.» (Note-se esta ressalva:
Marx e Engels tinham vindo a denunciar a «defesa da pátria»
por parte da burguesia como uma capa hipócrita para esconder a
sua opressão de outros povos.) Aliás, já páginas antes tinham
afirmado sem equívocos: «O proletariado de cada um dos países
tem naturalmente de começar por resolver os problemas com a sua
própria burguesia.»
Para Marx e Engels
não há, pois, qualquer contradição entre as tarefas nacionais
e internacionais da classe operária. É com inteira fidelidade
ao pensamento de Marx e Engels que ao constatar — e
novamente utilizarei a Resolução Política do XV
Congresso — que «os condicionalismos externos pesam cada
vez mais na ordem interna dos Estados», o nosso Partido afirma:
«Tal realidade não torna "caduca" a importância do
espaço nacional como terreno incontornável da luta de classes
[...]. A defesa da soberania nacional, conjugada com a luta por
relações de cooperação internacional livres das imposições
das grandes potências, ganha mesmo maior importância.
Simultaneamente, a cooperação e a solidariedade
internacionalista, a acção comum ou convergente dos comunistas,
dos progressistas, dos trabalhadores e dos povos, tornam-se
imprescindíveis para a luta de todos e de cada um, para o
avanço do processo libertador no plano mundial.»
Os
comunistas e as alianças
JOSÉ
BARATA-MOURA — O Manifesto contém uma análise
crítica pormenorizada das diferentes correntes que ao tempo se
reclamavam também de um ideário socialista ou comunista. O
objectivo não era sectário nem paroquial. Não se tratava de
identificar e numerar os eleitos, os esclarecidos, os bons.
Tratava-se, sim, de mostrar a necessidade de não se perder de
vista a questão essencial (a do derrubamento da propriedade
burguesa) e de, a partir de uma convergência de fundo nesse
propósito (que corresponde aos interesses dos assalariados no
seu conjunto), promover a «ligação e o entendimento dos
partidos democráticos de todos os países».
FRANCISCO
MELO — No capítulo II do Manifesto, Marx
e Engels expuseram lapidarmente a relação dos comunistas com o
movimento operário e o movimento revolucionário em geral. Um
primeiro aspecto: os comunistas «não têm nenhuns interesses
separados dos interesses do proletariado todo». Daqui decorre
que a acção dos comunistas não tem a sua justificação em si
mesma, mas em servir o proletariado; no entanto, nessa acção em
defesa dos interesses do proletariado cabe-lhes um papel de
vanguarda. Nas palavras do Manifesto:«Os comunistas são,
pois, na prática, o sector mais decidido, sempre impulsionador,
dos partidos operários de todos os países; na teoria, eles
têm, sobre a restante massa do proletariado, a vantagem da
inteligência das condições, do curso e dos resultados gerais
do movimento proletário.»
Ser vanguarda requer
assim condições práticas e teóricas. É nesse sentido que,
nos Estatutos do nosso Partido, ao afirmar-se que «o
papel de vanguarda do Partido decorre da sua natureza de classe»
se acrescenta que ele decorre também «do acerto das suas
análises e da sua orientação política, do projecto de uma
nova sociedade, da coerência entre os princípios e a prática e
da capacidade de organizar e dirigir a luta popular em ligação
permanente, estreita e indissolúvel com as massas,
mobilizando-as e ganhando o seu apoio.»
Um segundo aspecto:
gostaria de chamar a atenção para o que, em perfeita
consonância com as concepções acima referidas, Marx e Engels
dizem no capítulo IV do Manifesto:«por toda a parte os
comunistas apoiam todo o movimento revolucionário contra as
situações sociais e políticas existentes» e lutando «para
alcançar os fins e interesses imediatos da classe operária»,
no entanto, os comunistas «no movimento presente representam
simultaneamente o futuro do movimento». Estas duas asserções
excluem qualquer forma de oportunismo - quer o que sacrifica os
interesses imediatos ao objectivo final, quer o que sobrepõe o
objectivo final às reivindicações imediatas - e estruturam a
política de alianças dos comunistas. Seja-me permitido citar de
novo a Resolução Política do XV Congresso: nela se diz
que o Partido, nas suas alianças, «tendo em conta as diversas
condições concretas históricas e objectivos imediatos, não
abdica da individualidade e identidade próprias, nem sacrifica
princípios centrais da sua natureza, ou o seu objectivo supremo
de luta por uma sociedade socialista».
Ontem
como hoje
JOSÉ
BARATA-MOURA — A grande actualidade do Manifesto
é, por um lado, a de que ele nos fala de uma realidade que, nos
seus aspectos estruturais - e apesar e através de todas as
modificações que sofreu e vem sofrendo -, ainda persiste; e,
por outro lado, a actualidade do Manifesto reside em que
ele tem de ser actuado: não se trata de recitar, de
reproduzir, de aplicar mecânica ou automaticamente o muito que
nele é dito; trata-se de, tendo em conta os caminhos inovadores
que ele abre, tornar manifesto, no concreto dos nossos dias, as
necessidades de compreensão, de críticas e de revolucionamento
de que ele se alimenta e que ele projecta.
É pois um problema,
um desafio e uma tarefa que, pelo menos aos comunistas de hoje,
fica entregue.
Penso que Antonio
Labriola, nos finais do século passado, resumiu bem a utilidade
e a função do Manifesto, quando o caracterizou como «um
instrumento de orientação que é simultaneamente uma arma de
combate».
Escusado será
lembrar que os instrumentos e as armas têm que ser «polidas»,
isto é, há que cuidar da sua manutenção, e que, por outro
lado, são tal - instrumentos e armas - quando convenientemente
manejados e utilizados.
FRANCISCO
MELO — O capítulo III do Manifesto costuma
ser silenciado pelos ideólogos burgueses. E não sem razões o
fazem.
Não ouvimos nós
dizer que hoje apenas se trata de saber como «gerir» o
capitalismo? Ora, não tinham Marx e Engels estigmatizado já no Manifesto
as teorias que procuravam «remediar os males sociais para
assegurar a existência da sociedade burguesa»?
Não ouvimos nós
dizer que estamos no «fim da história» visto que «a forma
presente de organização social e política é completamente
satisfatória para os seres humanos»? Ora, não tinham Marx e
Engels posto a nu já no Manifesto o embuste da
«burguesia, naturalmente, representar-se o mundo em que domina
como o melhor dos mundos»?
E quando uns
propõem uma «actualização do ideal social-democrata» ou «um
relançamento do socialismo democrático» e outros apregoam uma
espécie de Estado-Providência renovado «reduzindo as
desigualdades, moderando os abusos, dando um contributo decisivo
para uma solução moralmente aceitável dos principais problemas
do mundo de hoje», como não nos lembrarmos imediatamente das
palavras de Marx e Engels no Manifesto denunciando as
tentativas de «tirar à classe operária o gosto por todos os
movimentos revolucionários» pregando «melhoramentos
administrativos [...] que nada alterem na relação de capital e
trabalho assalariado, mas que no melhor dos casos reduzam à
burguesia os custos da sua dominação e lhe simplifiquem o
orçamento de Estado»?
E quando os
ideólogos da burguesia de hoje exaltam todos as virtudes da
«economia de mercado» e da «livre concorrência» não estão
a procurar convencer o proletariado a «que fique na sociedade
actual» desfazendo-se «das odiosas representações que faz
dela», como Marx e Engels no Manifesto acusavam de
fazer os ideólogos da burguesia do seu tempo?
Mesmo aqueles que se
quedam na indignação perante os «horrores» do capitalismo
actual não merecem a recriminação de Marx e Engels no Manifesto
de que «só do ponto de vista da classe mais sofredora o
proletariado existe para eles»?
Para terminar: tal
como há 150 anos, também hoje «o socialismo da burguesia
consiste precisamente na afirmação de que os burgueses são
burgueses - no interesse da classe trabalhadora»!
«Avante!» Nº 1263 -
12.Fevereiro.98
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