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Projecto de Lei nº 513/VII
Lei Quadro do financiamento e da gestão orçamental e financeira do ensino superior público

Situação


(Preâmbulo)

A qualificação escolar da população activa portuguesa, assim como a taxa de escolarização da população jovem, na faixa etária correspondente à frequência do ensino superior, mostram que o nosso país está não só muito aquém da situação média vigente na Europa como também perpetuará esse atraso, caso não seja assumida uma clara política de promoção do ensino superior.

A urgência de uma nova política para o ensino superior é tanto maior quanto é certo que a mobilidade da força de trabalho e o tendencial reconhecimento de qualificações académicas e profissionais no seio da União Europeia ameaça a oportunidade de emprego dos jovens portugueses e ameaça a prevalência da cultura portuguesa de que eles são os necessários portadores.

A estrutura, os recursos e as competências existentes no actual sistema provam que é o sistema de ensino superior público que poderá protagonizar essa nova política, na escala e com a qualidade exigidas.

Lamentavelmente, o sistema de ensino superior tem, ao longo dos últimos anos, sido enquadrado por um conjunto de acções e de omissões que configuram uma política não explicitada de ataque ao ensino superior público e de favorecimento de interesses privados, para quem a educação é sobretudo uma mercadoria.

Foram três os vectores dessa desastrosa política:
- contenção da capacidade do sistema de ensino superior público e a manutenção indefinida do princípio dos numerus clausus;
- a liberalização do ensino superior particular e cooperativo suportada ainda em co-financiamento público;
- um regime de acesso ao ensino superior particularmente injusto e perverso, tendo como principal propósito restringir o acesso às escolas públicas e encaminhar os alunos para as escolas privadas sem cuidado de corresponder às aspirações e à orientação vocacional dos jovens.

A aprovação em 1988 da lei de autonomia universitária e em 1990 da lei sobre o estatuto e a autonomia do ensino superior politécnico, sem que tenham sido definidas regras quanto ao respectivo financiamento, permitiu uma situação de sub-financiamento crónico destas instituições que, privando-as de recursos para a realização de iniciativas para além do nível mínimo de competências que lhes estão cometidas, põe em causa a sua autonomia e o cumprimento da sua missão.

O financiamento das despesas de funcionamento em vigor, baseado em parâmetros e ratios pretensamente objectivos, de facto consagra o sub-financiamento crónico do ensino superior público, minando o alcance da sua autonomia e reduzindo a sua eficiência administrativa e capacidade pedagógica e científica.

O facto do actual Ministério da Educação ter retomado as consabidas teses neoliberais do anterior Governo do PSD, conducentes à efectiva desresponsabilização do Estado em relação ao financiamento do ensino superior público e ao agravamento da já elevada participação dos alunos e das suas famílias nos custos da educação, recentemente consagradas na lei de bases do financiamento do ensino superior público, constitui motivo de profunda preocupação e de evidente descontentamento, incompatíveis com o clima de serenidade em que se deve processar o ensino-aprendizagem e a investigação.

O objectivo de imposição de propinas de valor significativo, em flagrante contradição com o princípio constitucional que estabelece a progressiva gratuitidade do ensino público, com a "novidade" de ser associada a um sistema de empréstimos para os estudantes as poderem pagar; bem como o plano de substituição de uma parte significativa da acção social escolar por um sistema de empréstimos - constituem orientações em absoluto contrárias à indispensável democratização do acesso ao ensino superior público e às condições de sucesso dos alunos que o frequentam.

Neste quadro actual é necessária uma nova política, que fortaleça o sistema de ensino público para que este possa cumprir a função social que é a sua, política essa assente em três pilares fundamentais: a autonomia dos estabelecimentos e do sistema, o financiamento e a avaliação.

O Programa de Desenvolvimento do Ensino Superior apresentado em Outubro de 1993 pela Comissão do Ensino Superior do PCP, adopta um conjunto de orientações gerais para o financiamento do Ensino Superior, que enquanto pressupostos de base da presente iniciativa, importa neste momento referir. Assim, entende o PCP que, no plano do financiamento:

- O Estado deve assumir plena responsabilidade pelo financiamento integral do sistema de ensino superior público, concretizando a progressiva gratuitidade que a Constituição consagra, eliminando o sistema de restrições quantitativas globais no acesso (numerus clausus), abrangendo a generalidade dos domínios do conhecimento, satisfazendo as necessidades sociais e as aspirações pessoais, e cobrindo equilibradamente o território nacional.
- Os estabelecimentos de ensino deverão ser dotados de orçamentos suficientes e estáveis, em base plurianual, assentes em critérios objectivos, que permitam o desenvolvimento simultâneo e equilibrado de funções de ensino, investigação, extensão cultural e outros modelos de formação permanente.
- Deve ser desmistificada a importância do auto-financiamento nas suas diversas formas. Por um lado o aumento das propinas estabelecido a partir da Lei nº 20/92 e retomado pela Lei nº 113/97, deve ser liminarmente rejeitado. Por outro lado, a prestação de serviços não deve ser considerada como uma mera fonte de receitas, sob pena de desvirtuar a missão própria das instituições de ensino superior.
- O financiamento por concurso a programas específicos deverá ser instrumento apenas utilizado para a prossecução de políticas governamentais cujo objectivo extravase a missão estatutária do sistema de ensino superior e nunca como forma aberrante do seu financiamento corrente.
- Exige-se objectividade de critérios e transparência no cálculo de custos e na distribuição de verbas pelas instituições de ensino. Rejeitam-se critérios simplistas baseados em reduzido número de indicadores economicistas, que excluem a qualidade do ensino e dos meios humanos e materiais que a suportam como primeiro critério da sua valorização, ou que pura e simplesmente se apoiam na transposição mecânica de experiências em contextos não comparáveis. É além disso inaceitável que, num sistema particularmente carenciado, o Governo pretenda homogeneizar "por baixo" os principais ratios. Exige-se, pois, a apreciação aberta e a procura de consenso no domínio do financiamento.
- Sem prejuízo de satisfação de prioridades, é necessário respeitar a identidade própria e promover o desenvolvimento de todos os domínios do conhecimento.

O presente projecto de lei é apresentado menos de um ano lectivo decorrido sobre a aprovação da lei nº 113/97, de financiamento do ensino superior público - proposta pelo Governo e viabilizada pelos votos a favor do PS e a abstenção do PSD. A realidade já demonstrou que a lei, como está claramente não serve.

A lei não serve porque o ministro da Educação se obstinou em impor um diploma de inspiração neo-liberal de sentido oposto à resolução dos problemas das instituições do ensino superior e contrária aos interesses e aspirações dos estudantes, dos docentes e das próprias instituições.

A lei não serve porque o que comandou este processo legislativo foi a obsessiva preocupação de elevar as propinas de modo muito significativo, ao arrepio do princípio constitucional da progressiva gratuitidade do ensino público, num quadro inalterado de falta de condições para um ensino superior de qualidade e com expressa violação dos compromissos assumidos pelo PS segundo os quais qualquer alteração do montante das propinas deveria ser obrigatoriamente antecedida pela revisão do sistema fiscal.

A lei não serve porque contrariamente também ao compromisso assumido pelo ministro da Educação, de que a verba das propinas seria aditiva em relação ao financiamento público e utilizada na elevação da qualidade do ensino superior, na primeira proposta governamental de Orçamento do Estado posterior à aprovação da lei, as propinas foram utilizadas par substituir parte do financiamento público, numa linha de clara desresponsabilização por parte do Estado.

Nestes termos, os Deputados do Grupo Parlamentar do Partido Comunista Português apresentam o seguinte Projecto de Lei:

Artigo 1º
(Objecto)

A presente lei estabelece o regime do financiamento e da gestão orçamental e financeira do ensino superior público, definindo responsabilidades e competências, finalidades, objectivos e critérios aplicáveis, num quadro geral de defesa e respeito da autonomia das universidades e dos institutos superiores politécnicos.

Artigo 2º
(Objectivos)

A presente lei tem por objectivos:

a) Assegurar o funcionamento equilibrado e o desenvolvimento sustentado dos estabelecimentos de ensino superior público, designadamente nas suas componentes pedagógica, científica, I&DE e cultural;

b)  assegurar a renovação, manutenção e expansão das infra-estruturas e equipamentos afectos aos estabelecimentos de ensino superior público;

c) assegurar corpos e quadros de docentes, de investigadores e de funcionários não docentes suficientes e adequados à missão pedagógica, cientifica e cultural dos estabelecimentos de ensino superior;

d) proporcionar adequadas condições de ensino-aprendizagem e promover a qualidade do ensino prestado;

e) promover o alargamento, a diversificação e a pertinência do ensino oferecido, cumprindo designadamente o propósito de eliminação do sistema de "numerus clausus" no acesso ao ensino superior público;

f) facultar recursos suficientes para as actividades de I&DE e culturais;

g) promover a racionalização da organização e gestão dos estabelecimentos de ensino superior público;

h) promover a formação de pessoal docente para o ensino superior;

i) contribuir para uma política educativa que eleve os principais indicadores nacionais e tendencialmente os aproxime dos que vigoram nos países mais desenvolvidos.

Artigo 3º
(Componentes do financiamento)

O financiamento do sistema de ensino superior público compreende duas componentes fundamentais:

a) O financiamento público directo dos estabelecimentos de ensino, regulado na presente lei;

b) o financiamento da acção social escolar, a regular em lei especial.

Artigo 4º
(Orçamento global)

1 - O orçamento global do sistema de ensino superior público, bem como a repartição entre as suas componentes destinadas ao funcionamento e ao investimento, são fixados na Lei do Orçamento do Estado, tendo como elemento de referência, nomeadamente a população na faixa etária compreendida entre os 18 e os 25 anos, por forma a elevar significativamente a oferta e a qualidade do Ensino Superior, as taxas de escolaridade e de população activa com educação superior.

2 - A fixação de metas globais, valores de parâmetros e de referências de financiamento, considerados na presente lei, são objecto de concertação entre o Governo e o sistema de ensino superior público, representado através de estrutura própria de coordenação e de representação, designada de forma democrática e autonomamente pelo sistema, em termos a definir em lei especial.

3 - Para efeitos da repartição do orçamento global, consideram-se estabelecimentos de ensino superior público as universidades ou suas unidades orgânicas e os institutos superiores politécnicos ou suas unidades orgânicas, desde que a instituição reuna, simultaneamente, de acordo com os respectivos estatutos, as autonomias científica, pedagógica, administrativa e financeira.

4 - A repartição do orçamento global faz-se ao nível de unidades básicas dotadas de autonomia, de acordo com o estabelecido no número anterior, sem prejuízo de contemplar também o nível superior de universidade ou instituto superior politécnico, para as actividades próprias e as de unidades delas dependentes mas não dotadas de autonomia plena.

Artigo 5º
(Financiamento directo)

O financiamento directo dos estabelecimentos de ensino superior público compreende:

a) O orçamento de funcionamento, calculado na base do orçamento global fixado para o sistema e de acordo com parâmetros definidos na presente lei.

b) O investimento em projectos de valia nacional, regional, social, e cultural, calculado na base do orçamento global e à luz dos planos de desenvolvimento estratégico apresentados por cada estabelecimento de ensino.

Artigo 6º
(Orçamentos de funcionamento)

O financiamento do orçamento de funcionamento de cada estabelecimento de ensino é ponderado de acordo com os seguintes parâmetros:

a) Número de vagas anualmente preenchidas;

b) número de alunos anualmente diplomados;

c) área científica dos cursos de bacharelato e licenciatura e duração dos respectivos planos curriculares;

d) oferta de estágios curriculares ou profissionais ou de outras acções terminais equivalentes;

e) número de alunos inscritos em cursos de pós-graduação, de mestrado e em doutoramento, tendo em conta as respectivas áreas científicas;

f) número e qualificação de docentes vinculados;

g) número de docentes vinculados em formação;

h) número e qualificação de investigadores vinculados e em formação;

i) valor do património móvel e imóvel afecto ao ensino e à investigação ou a funções culturais.

Artigo 7º
(Orçamentos de investimento)

O financiamento do orçamento de investimento em cada estabelecimento de ensino é ponderado de acordo com os seguintes parâmetros:

a) Interesse nacional, regional, social e cultural de novos projectos;

b) enquadramento histórico e regional;

c) envolvimento directo ou cofinanciamento por parte de outros agentes educativos, sociais ou económicos;

d) impactos educativos, científicos ou culturais esperados;

e) demonstração da existência de estruturas e de capacidade executiva que viabilizem os projectos propostos.

Artigo 8º
(Planos de desenvolvimento estratégico)

Compete aos estabelecimentos de ensino superior - universidades e institutos superiores politécnicos e suas unidades orgânicas dotadas de autonomia - elaborar os respectivos planos de desenvolvimento estratégico, que traduzam as políticas educativa e de investigação assumidas por cada instituição e que explicitem os respectivos planos de investimento.

Artigo 9º
(Contratos programa)

1 - O financiamento do plano de desenvolvimento estratégico de cada estabelecimento de ensino, nas suas componentes de investimento e de funcionamento, é objecto de um contrato-programa com um horizonte temporal de 5 anos, negociado entre o Ministério da Educação e o estabelecimento de ensino, na base dos parâmetros enunciados nos artigos 6º e 7º e no quadro da política educativa definida.

Artigo 10º
(Regras de gestão orçamental e financeira)

1 - A dotação orçamental de cada instituição é estabelecida globalmente, sendo a afectação por rubricas orçamentais realizada a nível interno.

2 - A gestão orçamental, será ordenada por programas e centros de custo, por forma a facilitar a contabilização dos custos reais por objectivo funcional.

3 - Os orçamentos destinados à gestão de receitas próprias, são directamente movimentados pelos estabelecimentos de ensino superior público.

4 - Os estabelecimentos de ensino superior obrigam-se à apresentação periódica das respectivas contas de gerência e sujeitam-se à acção fiscalizadora do Tribunal de Contas e de outros órgãos competentes nos termos legais.

5 - Todas as acções expressamente assumidas pelos estabelecimentos de ensino superior no âmbito do cumprimento dos respectivos planos de desenvolvimento e dos contratos-programa acordados com o Governo são objecto de fiscalização posterior por parte do Tribunal de Contas.

6 - As instituições de ensino superior obrigam-se a manter um sistema de informação para a gestão e uma auditoria de gestão interna que viabilize e certifique a execução orçamental.

Artigo 11º
(Disposição transitória)

Enquanto não se encontrar constituída a estrutura de coordenação e de representação prevista no nº 2 do artigo 4º, o sistema de ensino superior público será representado, para os efeitos da presente lei, pelo Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas e pelo Conselho Coordenador dos Institutos Superiores Politécnicos.

Artigo 12º
(Norma revogatória)

É revogada a lei nº 113/97 de 16 de Setembro.


Assembleia da República, 25 de Março de 1998

Os Deputados