Projecto de Lei nº 417/VII (PCP)
Sobre a Interrupção Voluntária da Gravidez
Intervenção da deputada Odete Santos
4 de Fevereiro de 1998

 

Senhor Presidente
Senhores Deputados:

A um ano do debate sobre a Interrupção Voluntária da Gravidez, introduzido mais uma vez pelo P.C.P., pioneiro no tratamento dos graves problemas com que se defrontam as mulheres portuguesas, importa situar algumas questões que colocando-se a toda a Assembleia, devem, no entanto, ser endereçadas, com especial premência, às senhoras Deputadas e aos senhores Deputados que contribuíram para a rejeição do diploma do Partido Comunista Português. Aliás por uma diferença tão pequena de votos, que bastaria ter sensibilizado 9 das pessoas que votaram contra para se ter conseguido a aprovação do Projecto.

E as questões são as seguintes:

Os graves problemas sociais das mulheres que as empurram para o aborto clandestino, continuam ou não a existir?
Continuamos ou não a ter um grave problema de saúde pública decorrente do aborto clandestino ?

Senhoras Deputadas e Senhores Deputados:

A lei que quiseram manter impediu o recurso à IVG em condições degradantes e desumanas ? E não foi o aborto clandestino, durante o último ano, causa de graves traumatismos físicos e psíquicos e até de morte de mulheres ?
Esta lei, conduziu efectivamente à cadeia, as mulheres que abortam?
E há aqui uma pergunta fundamental: Querem, ainda hoje metê-las na cadeia?
Adivinho a vossa resposta: Não!
Então não reconhecem , agora, ter o saber antecipado de que nas vossas mãos está o fim do calvário do aborto clandestino?
De que de vós depende o fim da humilhação das mulheres portuguesas, nomeadamente das que são menos favorecidas economicamente?
A 1 ano de distância as palmas que se esboçaram com a rejeição das alterações da lei, soam como estranho requiem sobre as cidadãs deste país, culpabilizadas por todos os que negam às mulheres o exercício pleno de elementares direitos: o direito a uma maternidade consciente, o direito à vida e à liberdade, o direito à saúde, à sexualidade e à intimidade da vida privada, o direito à dignidade!
E se a restrição de direitos fundamentais é uma inqualificável forma de violência, que diremos das penas bárbaras, cruéis e degradantes, das penas perpétuas, resultantes da clandestinidade do aborto, com que se punem as mulheres?
É ou não uma violência impor a todas as mulheres as convicções pessoais de alguns?
É ou não o Estado que cria um dos mais graves problemas de saúde pública, com a violência que exerce sobre as mulheres?
E é fundamentalmente disto que se trata neste debate.
De pôr fim à violência.
Porque nós não impomos a ninguém as nossas convicções.
A lei que despenalize o aborto não obriga ninguém a recorrer à IVG. Mas aqueles que se opõem à despenalização, esses querem impor a toda a sociedade as suas convicções pessoais, esses querem obrigar as mulheres aos riscos do aborto inseguro!
É por isso que este combate é um confronto entre a tolerância e a intolerância.
Um confronto entre os que defendem o pluralismo da sociedade, e os que aceitam como único modelo, aquele que lhes ensinaram, e que transforma em crime e pecado toda a conduta que viole as únicas regras de convivência em sociedade que admitem.
Este é um confronto entre o humanismo e a violência.
Visando resolver os graves problemas de saúde pública criados pela lei penal, o P.C.P. apresentou o seu Projecto, ao qual veio a associar-se o Grupo Parlamentar do Partido Socialista com o seu Projecto.
O P.C.P. considera desajustada a pressa que marca este processo legislativo, sem que seja garantido um período razoável de debate público do mesmo.
O qual teria permitido acentuar a justiça dos que se batem contra a intolerância, por uma sociedade pluralista, de convivência de todas as convicções, sem constrangimentos.
O P.C.P. está, no entanto, preparado para o debate.
Depois das audições a que procedeu a Assembleia da República no ano passado, radicámos algumas convicções, constatando que os princípios que devem presidir à despenalização do aborto, se encontravam plasmados no nosso Projecto de Lei, que, por isso, não alterámos.
Recorde-se, sumariamente, que o P.C.P. propõe a despenalização da IVG quando realizada nos serviços hospitalares ou estabelecimentos de saúde para tanto credenciados, nos seguintes prazos e condições:

Em nossa opinião, são estas as soluções que melhor respondem aos problemas que urge resolver.
Com efeito, do que se conhece da doutrina e jurisprudência estrangeiras, da experiência estrangeira da aplicação das leis, concluímos que uma lei de despenalização da IVG, adequada à realidade portuguesa, deveria obedecer a alguns princípios, e recusar outras soluções, tais como:
1. A IVG deve ser despenalizada nas primeiras doze semanas, sendo de todo em todo injustificável que se retroceda relativamente ao prazo.
Na realidade, é um facto médico assente que é até às 12 semanas de gravidez, que o aborto comporta menos riscos para a mulher, sendo os riscos neste período menores do que aqueles que se correm no parto.
Assim, o prazo de 12 semanas assenta na constatação de que, nesse período, não deve o Estado intervir numa decisão que pertence ao foro íntimo da mulher porque não existem praticamente riscos para a sua saúde.
Sendo assim, não se encontram motivos para um prazo inferior, já que não está em causa a busca do início da pessoa humana, cujo estatuto só se adquire com o nascimento.
E se conjugarmos um prazo inferior a 10 semanas com a passagem obrigatória por Centros de Atendimento, não poderá acontecer que fique inviabilizado, em certos casos, o recurso à IVG?
2. A decisão compete única e exclusivamente à mulher, pelo que se considera inadequado regredir no que se encontra já hoje legislado, admitindo a possibilidade de vir a ser ouvido quanto à decisão, o outro progenitor.
Esta admissão representaria um constrangimento insuportável em muitos casos, e uma inadmissível pressão sobre a mulher que não sofre de qualquer capitis deminutio.
Tenham confiança nas Mulheres.
3. Competindo a decisão única e exclusivamente às mulheres, a passagem prévia por qualquer centro de aconselhamento, sujeitá-las-ia a uma insuportável devassa da sua privacidade.
Para além do que, sendo tais centros inacessíveis às mulheres de zonas periféricas, elas continuariam a fazer "desmanchos" nas piores condições.
Seriam ainda as mulheres menos favorecidas economicamente, a ser penalizadas.
Algumas experiências que se conhecem destes centros de atendimento, nomeadamente na Alemanha e nalguns Estados dos Estados Unidos da América, colocam justas interrogações. Não poderão servir estes Centros para limitar e impedir a liberdade de opção das mulheres? Não poderão contribuir para que a IVG se venha a realizar clandestinamente e já no 2º trimestre, quando começa a correr mais riscos a saúde da mulher?
Estes Centros representam ainda, de qualquer forma, uma inadmissível intromissão do Estado nos direitos humanos das mulheres, quando a IVG não apresenta especiais riscos para a sua saúde.
Mantivemos assim o nosso Projecto porque confiamos nas mulheres portuguesas.
E apelamos aos senhores Deputados do PS para que ponderem, com abertura de espírito e sem descabidas reservas político - partidárias, as razões que apresentamos.
Que fique também claro, mais uma vez:
A verdadeira clivagem nesta matéria não é ser a favor ou contra o aborto.
A verdadeira clivagem situa-se entre os que continuam dispostos a conviver tranquilamente com a dolorosa realidade social do aborto clandestino, e os que, corajosamente, querem assegurar o indiscutível avanço resultante da progressiva passagem do aborto da esfera da clandestinidade, para a esfera da legalidade, da assistência e da segurança médicas.
Na defesa da saúde e da dignidade da mulher continuamos convictos de que as soluções propostas no Projecto do P.C.P. são as mais adequadas, além do mais porque são as mais consensuais na doutrina e na legislação comparada.
Que as mulheres portuguesas não sejam penalizadas por arranjos intra partidários, que nesta matéria não têm razão de ser.
Fazemos este apelo porque sabemos que são os graves problemas sociais que conduzem as mulheres a uma decisão que as angustia e traumatiza.
Porque sabemos, como elas, que uma gravidez indesejada comporta sérios riscos para a saúde física e psíquica de filhos não planeados.
Porque sabemos que as mulheres portuguesas recorrem ao aborto como último recurso, na insuficiência ou falência do planeamento familiar.
Enquanto o Estado se arrogar o poder de violentar as mulheres, de tornar a sua fecundidade uma coisa pública, como podem ser erradicados todos os factores de violência sobre as mulheres?

Senhor Presidente
Senhores Deputados:

O P.S.D. não pode fugir ao debate, invocando uma Proposta de referendo que apresentou há 1 ano apenas para obstaculizar a discussão das propostas então apresentadas.
Rejeitados os Projectos, o P.S.D. desinteressou-se do referendo, prova de que o usa não como uma forma de consulta popular, mas apenas como um meio de impedir que a Assembleia legisle com plena legitimidade.
Como um meio de adiar a resolução de um grave problema de saúde pública das mulheres.
O P.S.D. sabe que há aqui uma maioria que considera que este grave problema de saúde pública deve ser resolvido sem mais adiamentos; então deixe o P.S.D. de fazer números para a galeria e assuma esta discussão por inteiro no seu conteúdo, porque é a dignidade, a saúde e a liberdade das mulheres que estão em jogo.
E são estas questões que dois dos Projectos em debate visam resolver.
Assim não acontece porém com o Projecto de lei subscrito por 2 deputados do Partido Socialista.
A Comissão prevista nesse Projecto não tem nada a ver com Centros de Aconselhamento.
É uma Comissão criada para decidir pela mulher, para indeferir os pedidos de IVG, uma Comissão em que se inicia um processo administrativo ( imagine-se!) que terminará no Supremo Tribunal Administrativo, com uma passagem pelo Senhor Ministro da Justiça, nomeado curador ao ventre de todas as mulheres portuguesas!
Em posição também extrema surge o Projecto de Lei da Senhora Deputada Maria José Nogueira Pinto, servindo uma estratégia individual de afirmação relativamente ao P.P.
Foi relativamente fácil a elaboração do Projecto de Lei.
Serviu claramente de modelo ao Projecto, um outro apresentado já em 1995 na Itália, pelo Movimento Juntos pela vida.
A verdade, é que tal como este, o Projecto não tem qualquer sustentação científica e filosófica consensual, e já concitou, como na Itália, protestos e condenações. Da parte de cientistas e juristas. Da parte das mulheres.
Pelas dificuldades insuperáveis que colocaria à procriação medicamente assistida, à investigação científica, porque se pretende com o mesmo ilegalizar toda e qualquer interrupção voluntária da gravidez, o Projecto segue na linha das tradições que alguns sectores pretendem impor a toda a sociedade.
Mas a tradição já não é o que era. Porque a Ciência avança.

Senhor Presidente
Senhores Deputados:

A Lei não se ocupa da moral privada nem da imposição da moral.
Alguns desejariam que a mesma reflectisse na íntegra, os seus próprios Códigos morais.
Estes não ouvem as mulheres.
Aquelas que foram remetidas a silêncios e palavras sussurradas por campanhas marcadas pelo autoritarismo da moral única e pela intolerância.
São mulheres humilhadas, marcadas pela angústia e sofrimentos clandestinos.
São mulheres vítimas da violência do Estado.
Aqui não somos mais do que a sua voz.
Aqui, lutamos pela dignidade.

Disse.