Os media e a sua influência

Fernando Correia in "Militante"nº258 Maio/Junho

No rescaldo dos últimos actos eleitorais e no quadro da análise dos resultados do PCP e dos outros partidos, assim como na consideração da actividade geral do Partido e da sua intervenção na sociedade, a referência nos debates partidários ao comportamento dos media e à sua influência na decisão das pessoas tornou-se um tópico comum, tal como, aliás, tem acontecido de outras vezes. Vale a pena, pois, alinhar algumas reflexões a este respeito.

Diga-se desde já que a questão é perfeitamente compreensível, e se há algo a lamentar é que a temática da comunicação social não mereça um tratamento mais continuado por parte das organizações, na medida em que se tornou hoje perfeitamente claro o papel decisivo exercido pelos media, nomeadamente a televisão, nas formas de pensar e de agir da generalidade das pessoas. Mesmo daquelas que, não estando directamente expostas à informação (porque não lêem jornais nem acompanham regularmente os noticiários radiofónicos e televisivos), acabam por, indirecta e insensivelmente, ser influenciadas pelas suas mensagens.

Entretanto, sendo justificável e legítima, a questão não deve ser absolutizada, no sentido de pensar que a comunicação social é o único factor que condiciona o pensamento e a acção dos indivíduos. Outros factores existem que interferem e de algum modo compensam, ou podem compensar essa influência (a vivência social, a educação e a cultura, a maior ou menor inserção em organizações e movimentos de intervenção), ainda que nenhum deles, reconheça-se, esteja ele próprio imune às influências dos media.

Isto significa que seria redutor e insuficiente se, em relação à interpretação de resultados eleitorais, e nomeadamente o conjunto de resultados durante um período mais ou menos prolongado, se centrasse a sua explicação apenas na influência da comunicação social, sem ter em conta outros e diversificados factores tanto de natureza igualmente externa (evolução das classes sociais, relação de forças no quadro partidário, conjuntura económica, transformação das mentalidades, etc.) como interna (debilidades orgânicas próprias, deficiências ou erros de apreciação, de orientação ou de acção, etc.). É a necessidade de considerar todos estes factores, na sua complexa interligação, que empresta particular significado ao debate interno em curso e à realização da Conferência Nacional de Junho.

Efeitos a curto e a longo prazo

Falar na influência dos media significa penetrar num terreno – o dos mecanismos de formação da opinião – sobre o qual os investigadores da comunicação se têm, desde há muito, debruçado com perspectivas teóricas e conclusões diversas. Mas é hoje possível afirmar, primeiro, que essa influência se exerce essencialmente pelo chamado efeito de agenda dos media, isto é, pela sua capacidade quer para pôr na ordem do dia certos temas, levando a que as pessoas falem deles e não de outros, quer para fornecer os enquadramentos e as orientações no sentido de influenciar aquilo que as pessoas pensam sobre esses temas1. E em segundo lugar, que tal influência se manifesta de diversas formas, e não apenas aquelas que, conjunturalmente, saltam à vista. Creio, a este propósito, ser oportuno alinhar algumas ideias e hipóteses que nos permitam perceber melhor do que falamos quando falamos da influência dos media.

Os efeitos da comunicação social sobre as pessoas podem dividir-se em dois tipos: os efeitos directos e a curto prazo e os efeitos indirectos e a longo prazo. Os primeiros traduzem-se – e tendo em conta o que se refere ao PCP, às suas actividade e tomadas de posição – em métodos clássicos de manipulação como os silenciamentos, as discriminações, a descontextualização de factos ou afirmações, as adulterações, a valorização do secundário em desfavor do essencial, as caricaturas, a utilização de uma linguagem depreciativa e irónica, etc.. Ou ainda no sistemático destaque dado às opiniões de membros do Partido que tomam determinadas atitudes e posições contrárias às colectivamente aprovadas em congresso, em simultâneo com a igualmente sistemática ocultação das posições oficiais, numa flagrante infracção de princípios deontológicos básicos do jornalismo como a necessidade de ouvir as duas partes e a não mistura da opinião com a notícia.

Em certos órgãos de comunicação, como é sabido, estas práticas são usuais. Se, por exemplo, perante um determinado acontecimento político ou de outra natureza se ouvem depoimentos de todos os partidos, menos o PCP, se se convidam personalidades de diversas tendências políticas para um debate e não está lá nenhum comunista – é evidente que a consequência imediata é as pessoas ficarem privadas da opinião do PCP, ou mesmo serem levadas a pensar que ele, pura e simplesmente, não tem posição sobre a matéria... Os temas, as organizações e as pessoas que não aparecem na televisão, é como se não existissem...

Alteração qualitativa

Tais factos têm, naturalmente, efeitos imediatos. Mas a sua acumulação ao longo do tempo acaba por introduzir uma alteração qualitativa, na medida em que provoca um desgaste e uma desvalorização da imagem do Partido, nomeadamente por parte daqueles – e são a esmagadora maioria entre os eleitores e potenciais eleitores da CDU – que estão mais afastados das realidades quotidianas da actividade partidária. Sendo que, deste modo, os efeitos a curto prazo se transformam em efeitos a longo prazo, com inevitáveis consequências nas formas de pensar e de agir (incluindo eleitoralmente)

Mas os efeitos a longo prazo têm uma outra vertente, expressa numa “dimensão da intervenção e da influência da comunicação social que não tem directamente a ver com o tratamento pontual dos factos e com as manipulações de que estes podem ser alvo, mas sim com aspectos como a filosofia implícita na concepção global das edições, das programações e dos conteúdos, o tipo de temáticas seleccionadas e modos de abordagem, os critérios adoptados tanto na escolha dos protagonistas das notícias como dos colaboradores e comentadores, etc.” 2 .

Estudos recentemente tornados públicos ajudam a clarificar o que está em causa. Um desses estudos, realizado no âmbito do ISCTE, incide sobre os temas de abertura dos telejornais (ou seja, os temas que têm maior impacto), permitindo concluir que os assuntos preferidos na RTP1, SIC e TVI são “os acidentes e as catástrofes”. Em segundo lugar, nos dois canais privados, aparecem os “temas socias”, nomeadamente “criminalidade, assaltos, violência, droga e miséria”. Em terceiro lugar, e considerando apenas os temas nacionais, aparece, nos três canais, o desporto. Dados estes que levam o autor do estudo a concluir que “as notícias-choque” e a “informação-espectáculo” constituem as características principais da relevância noticiosa.

Não sendo uma surpresa, os resultados deste estudo têm a virtude de conceder base científica aos argumentos dos que denunciam a crescente cedência dos telejornais perante o “popular”, no pior sentido da palavra. Coisa que é clara e alegremente assumida, por exemplo, pelo patrão da TVI, Miguel Pais do Amaral: “A televisão generalista é feita para as massas e não para gente com preocupações culturais muito especiais”; “O nosso juíz é o público e o público gosta dos nossos programas. Ponto final.” Eis, em toda a sua crueza, a face visível e ostensiva de uma realidade bem própria da sociedade capitalista, com uma comunicação social detentora de recursos tecnológicos cada vez mais sofisticados e potenciadores de uma maior e melhor informação, mas encarada pura e simplesmente como um negócio (cujos lucros são também políticos e ideológicos), à margem de qualquer responsabilidade social.

Juntemos ainda um outro dado: em 2001, entre os diários e semanários de grande audiência, os únicos que subiram de tiragem foram, precisamente, os “jornais populares” Correio da Manhã, 24 Horas e Tal & Qual. Ao mesmo tempo, os chamados “jornais de referência”, como o Diário de Notícias, o Público e o Expresso, tendem cada vez mais a recorrer a géneros jornalísticos (repare-se no quase desaparecimento do jornalismo de investigação) temáticas e formas de abordagem e de edição (repare-se nos grandes títulos de 1ª página) que os aproximam do estilo da “imprensa popular”.

Escusado será dizer quem são, em termos políticos e ideológicos, os beneficiados e os prejudicados com esta evolução da comunicação social, de que modo os media influenciam as pessoas e em que medida e em que sentido os seus efeitos so

bre os gostos, os costumes, os hábitos e os valores são ao mesmo tempo um reflexo e um alimento das formas de pensar e exercer a cidadania.

 

O factor económico e as suas consequências

Abordar toda esta problemática implica necessariamente referir a questão da propriedade. No nosso país, praticamente toda a grande informação a nível da imprensa, da rádio, da televisão e do online, num total de mais de uma centena de títulos, está nas mãos de meia dúzia de grandes grupos económicos: PT – Lusomundo, grupo Balsemão, Media Capital, Impala, Cofina e Sonae. Esta realidade insere-se num contexto político-económico caracterizado pela recomposição das hierarquias do poder, em que o poder económico surge claramente como ainda mais determinante e o poder mediático (tal como, em grande parte, o poder político) como seu instrumento.

Ficam assim definitivamente postos em causa os mitos da comunicação social como “quarto poder” (a par do legislativo, do executivo e do judicial) ou como “contrapoder”. A capacidade dos media em influenciar as pessoas é, indiscutivelmente, de importância decisiva na nossa sociedade, mas não estamos perante um poder autodeterminado, mas sim um poder delegado que se exerce e conforma dentro dos limites estabelecidos pelo poder hegemónico e realmente determinante – o poder do grande capital e do sistema capitalista.

A natureza da propriedade nos media e, em particular, o domínio dos grupos económicos sobre os principais órgãos de informação, cujos modelos e orientações acabam por se reproduzir e impor em todo o campo mediático, assumem, desde logo, um significado político-ideológico, que se concretiza no favorecimento dos que defendem o statuo quo e o desfavorecimento dos que estão contra e o pretendem transfomar. Não espanta que, entre estes, o PCP esteja na primeira linha, com as consequências que são conhecidas no que respeita à forma como é geralmente tratado nos principais media.

Mas esta posição de princípio dos grandes media não se apresenta enquanto tal, escondendo-se atrás de regras e actuações que procuram aparentar basear-se em puros critérios jornalísticos, com a conivência activa de alguns profissionais, nomeadamente os que ocupam o topo da hierarquia na sala de redacção, e a indiferente complacência ou a incapacidade prática de contestação de uma grande parte, para quem, muitas vezes, a escolha se põe entre a oposição activa ou a ruptura laboral.

A este propósito, não deixa de ser preocupante um fenómeno que tende a alastrar no interior do próprio grupo profissional, e que se traduz na transformação dos interesses económicos dos patrões em interesses jornalísticos, isto é, na contaminação, insensível e indolor, dos valores jornalísticos pelos interesses comerciais. “A concorrência que beneficia o patrão é interiorizada como saudável emulação profissional; os imperativos económicos próprios da concorrência empresarial transfiguram-se em regras e técnicas específicas da prática profissional” 3.

Favorecidos e desfavorecidos

O conteúdo dos media não é automaticamente determinado pela natureza da propriedade. Existem factores de intermediação que se torna necessário ter em conta para penetrar nos mecanismos de formação da opinião pública. Os media subordinados aos interesses económicos têm a sua lógica própria. A hegemonia dos objectivos comerciais (maiores audiências, para obter mais publicidade e assim conseguir mais lucros) implica a necessidade da vitória sobre a concorrência e traduz-se na obcessão pela cacha (a notícia em primeira mão), abrindo as portas ao sensacionalismo, ao surpreendente, ao insólito, à informação-espectáculo, ao mesmo tempo que as novas tecnologias, ao proporcionarem maior rapidez na recolha e na difusão da informação, levam à utilização de uma linguagem mais simples, frases mais breves, notícias mais curtas, favorecendo a fragmentação e a superficialidade da informação.

Estão assim criadas as condições, conforme já tivemos oportunidade de sublinhar4 , para “o desfavorecimento de uma informação mais virada para os conteúdos e as contextualizações do que para as formas e as aparências, e a consequente penalização dos que privilegiam, na sua intervenção, esse tipo de factores”. “A submissão às leis do mercado e a transformação da notícia em mercadoria, privilegiam os protagonistas e as performances individuais em relação aos argumentos e às ideias, preferem a discórdia pública ao debate interno aprofundado, trocam a linearidade da coerência pela surpresa das contradições”.

Quem são favorecidos são os temas, as situações e as pessoas que melhor se adequam (ou se subordinam) aos critérios dominantes, em prejuízo dos que não se mostram disponíveis para essa adequação (ou subordinação). É fácil de perceber em que medida é que, neste contexto, e através desta modalidade mais sofisticada, o PCP (e os seus dirgentes) acaba por ser prejudicado na sua visibilidade mediática, na sua credibilidade externa e na divulgação das suas posições através dos media, com as consequências que se adivinham para a sua afirmação e implantação numa sociedade dominada pela mediatização do espaço público.

As relações entre o Partido e a comunicação social poderão e deverão colocar-se num outro plano, relativo à política de informação do Partido, nomeadamente no que se refere, por um lado, à orientação e à utilização dos meios próprios, nomeadamente o Avante! e O Militante e, por outro lado, à forma como passamos a nossa mensagem para os media. Certamente que neste plano muito há a melhorar, sendo no entanto necessário não haver ilusões: tendo em conta a natureza de classe (reflectida na propriedade, nas linhas editoriais, na escolha dos responsáveis executivos, etc.) dos media mais importantes e de maior influência – isto é, tendo em conta um factor que não pode ser ignorado, que é a força do adversário – não é provável que, independentemente dos nossos esforços, as formas de tratamento do Partido sofram grandes alterações.

O que não quer dizer que nos refugiemos num paralisante imobilismo, vergados sob o peso das “causas externas”. No que se refere concretamente a esta questão, o “problema” não reside apenas na maneira como nos apresentamos, mas naquilo que somos e pretendemos. O grande desafio está, precisamente, em melhorar a forma como nos apresentamos sem pôr em causa o essencial daquilo que somos e pretendemos.

1 Traquina, Nelson (2000). O Poder do Jornalismo, Coimbra, Minerva.

2 Correia, Fernando (2000). Jornalismo e Sociedade, Lisboa, Editorial Avante!, p. 29.

3 Correia, Fernando (2001). “Para uma análise da produção jornalística. Determinismo e autonomia”, comunicação ao II Congresso da Associação Portuguesa de Ciências da Comunicação (SOPCOM), Lisboa.

4 Correia, Fernando. Op. cit., pp. 99-100.