Ruy Luís Gomes,
cientista e revolucionário

 

Jorge Rezende
Professor da Universidade de Lisboa

Ruy Luís Gomes nasceu no Porto, em 5 de Dezembro de 1905, filho de Maria José Medeiros de Oliveira e de António Luís Gomes. O pai (1863-1961) formou-se em Direito pela Universidade de Coimbra em 1890, foi o primeiro presidente da Associação Académica de Coimbra, durante quatro anos, e foi, também, Reitor da mesma Universidade em 1921-1924. António Luís Gomes, que teve ainda vários cargos oficiais como o de embaixador de Portugal no Brasil, foi membro do directório do Partido Republicano e fez parte do Governo Provisório como Ministro do Fomento até 24 de Novembro de 1910. O pai exerceu certamente uma influência grande sobre o filho, visto que este, no seu notável ensaio político A revolução republicana de 31 de Janeiro, datado de 1956, lhe faz a seguinte dedicatória: «A meu Pai, Ministro do Governo Provisório, que, na grandiosa sessão comemorativa da implantação da República, realizada no Porto, na noite de 5 de Outubro de 1955, afirmou a sua confiança inabalável na capacidade política do Povo Português».

Ruy Luís Gomes doutorou-se em Ciências Matemáticas pela Universidade de Coimbra em 1928, entrou como Assistente na Faculdade de Ciências do Porto em 1929 e foi Professor Catedrático de 1933 a 1947, na mesma Faculdade, ano em que foi afastado do ensino oficial pelo fascismo.

Manteve-se em Portugal até ser contratado pela Universidade Nacional del Sur, Bahía Blanca, Argentina, de 1958 a 1961, no Instituto de Matemática. Foi depois contratado pela Universidade Federal de Pernambuco, Brasil, para «ensinar no Curso de Matemática, preparar pessoal docente e fazer investigação no Instituto de Matemática», aí se mantendo de 1962 a 1974.

Regressou a Portugal, reintegrado como Professor Catedrático da Faculdade de Ciências do Porto, logo após a Revolução do 25 de Abril.

Ruy Luís Gomes tinha, há mais de sessenta anos atrás, nas duras condições do fascismo, sem as comodidades que hoje temos com novas tecnologias da informação e com meios de transporte mais rápidos, uma visão científica mais avançada do que aquela que tem muitos dos cientistas portugueses na actualidade. Uma visão revolucionária, na medida em que a sua actividade se diversificou em várias direcções, indo longe, com eficácia, em todas elas.

Ruy Luís Gomes, para além de ser um professor competente, dedicado e admirado pelos seus alunos, foi um investigador de nível internacional. Publicou dezenas de trabalhos científicos de alta qualidade, que vão da Física à Matemática, da Mecânica Clássica à Teoria da Relatividade, da Física-Matemática à Análise Funcional, Teoria da Medida e Teoria da Integração. Correspondeu-se com cientistas de renome internacional como o Académico soviético Nicolai M. Krylov, o Académico francês Louis de Broglie ou o grande cientista italiano Tullio Levi-Civita. Na prestigiada revista Rendiconti Della Accademia Nationale Dei Lincei, no caminho aberto por Aureliano de Mira Fernandes, e com o patrocínio de Levi-Civita, publicou, entre 1930 e 1937, doze artigos e no Journal de Physique et Le Radium, com o apoio de Louis de Broglie, publicou um artigo em 1935 o que, só por si, mostra a intensa produtividade de Ruy Luís Gomes na juventude, que o torna um caso único para a época e para o país. Publicou livros científicos de ponta como O Integral de Riemann (1949) e O Integral de Lebesgue-Stieltjes (1952), para elaborar os quais manteve contactos com matemáticos franceses da escola Nicolas Bourbaki.

Ruy Luís Gomes foi um divulgador da Ciência, através de palestras e de artigos. Na Gazeta de Matemática (com contribuições regulares desde 1945), na Seara Nova (A relatividade – origem, evolução e tendências actuais, 1938 e 1943), no Diário de Lisboa (Investigação científica, cinco artigos de 23 de Março a 22 de Novembro de 1945), aos microfones da Rádio Club Lusitânia (O valor social da investigação científica, 6 de Maio de 1944). De 1955 é o artigo pacifista, publicado em separata pela revista Lusíada, Albert Einstein – E=mc2: o mais urgente problema do nosso tempo.

Ruy Luís Gomes foi um cientista de acção, não se tendo limitado ao trabalho de gabinete e da sala de aula. Foi co-fundador da Casa-Museu Abel Salazar, de Artes Plásticas, situada no Porto (em 1946), co-fundador do Observatório Astronómico da Universidade do Porto, fundador do Centro de Estudos Matemáticos do Porto, de que foi director até 1947, fundador da Junta de Investigação Matemática, em colaboração com Mira Fernandes e António Monteiro, co-fundador da Sociedade Portuguesa de Matemática, co-fundador da Tipografia Matemática de Lisboa, e, finalmente, foi co-fundador do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, do Porto, tendo sido Presidente da sua Comissão Instaladora (em 1975, já com 70 anos de idade!).

Entre o fim dos anos da juventude e a sua ida para o exílio há que reter três momentos assinaláveis na vida científica e política de Ruy Luís Gomes.

O primeiro desses momentos situa-se à volta do ano de 1940 e diz respeito à aproximação entre Ruy Luís Gomes e o matemático António Aniceto Monteiro. Na verdade eles já se haviam encontrado antes – pelo menos, em 1937, altura em que Ruy Luís Gomes se deslocou a Lisboa para fazer, de 19 a 28 de Abril, um curso sobre Teoria da Relatividade, no âmbito das actividades do Núcleo de Matemática, Física e Química, que havia sido fundado um ano antes. O Núcleo foi a primeira tentativa da formação de uma Escola de Ciência, em moldes modernos, em Portugal, e um dos seus mais activos elementos foi precisamente António Aniceto Monteiro. Este matemático, doutorado em Paris e regressado havia pouco tempo, foi o primeiro investigador em matemática em Portugal, no sentido em que ainda hoje entendemos a palavra «investigador». Era um grande organizador e teve uma influência dirigente em todas as iniciativas que envolviam a promoção da divulgação, do ensino e da investigação, no que diz respeito à matemática, realizadas naquela época. O epicentro dessa actividade estava localizado em Lisboa e movimentava também matemáticos como Bento de Jesus Caraça – figura cimeira da matemática, da cultura e da política – e ainda Hugo Ribeiro, Silva Paulo, Zaluar Nunes, Mira Fernandes, Beirão da Veiga, entre outros. Ruy Luís Gomes vivia e trabalhava no Porto e o contacto que nessa época desenvolveu com o grupo de Lisboa e, em particular, com António Aniceto Monteiro, deu um novo alento aos seus projectos de desenvolvimento da matemática como ele próprio o confirma anos mais tarde: «(...) foi decisiva a colaboração e a extraordinária capacidade de formar discípulos do matemático António Aniceto Monteiro» e, mais adiante, «Estas realizações [de António Monteiro] e os contactos directos que já havíamos tido com António Monteiro traduziram-se em novos estímulos para a nossa própria actividade, sempre dominada pelo desejo de criar no Porto uma Escola de Matemática» (1).

António Monteiro, que tinha fundado a revista Portugaliae Mathematica em 1937, o Seminário de Análise Geral em 1939, o Centro de Estudos Matemáticos de Lisboa em 1940, contribuído para a fundação da Gazeta de Matemática em 1939-1940 e da Sociedade Portuguesa de Matemática em 1940, não tinha qualquer posto académico e nunca chegou a ser expulso da Universidade Portuguesa, como os outros, porque nunca chegou sequer a ser admitido em virtude das suas posições políticas! Vivia de trabalhos que não eram a sua actividade principal...

Inspirado pelo exemplo de Lisboa, Ruy Luís Gomes funda, em 1941-1942, o Centro de Estudos Matemáticos do Porto (CEMP). Em 1943, funda, com António Monteiro e Mira Fernades, a Junta de Investigação Matemática (JIM), inteiramente com fundos privados angariados pelo irmão, António Luís Gomes. No fim desse ano, Ruy Luís Gomes consegue instalar António Monteiro no Porto, pago pela JIM, o único salário que o notável matemático teve em Portugal, como investigador, antes do 25 de Abril. Este episódio ilustra bem o carácter e a visão que caracterizam a vida de Ruy Luís Gomes.

No Porto, Ruy Luís Gomes e António Monteiro trabalham intensamente em colaboração no CEMP e na JIM, organizando e publicando palestras, orientando estudantes, subsidiando pessoas, revistas e viagens, comprando livros. Apenas dois exemplos: Monteiro orientou o doutoramento de Alfredo Pereira Gomes, irmão de Soeiro Pereira Gomes, o primeiro realizado no CEMP; a JIM realizou dez palestras aos microfones da Rádio Club Lusitânia, sobre investigação científica, sendo uma delas a de Ruy Luís Gomes, já referida, e outra a de António Monteiro intitulada Os Objectivos da Junta de Investigação Matemática. Esta palestra teve tal repercussão que o governo decidiu encerrar todos os clubes de matemática, dirigidos a jovens, que Monteiro tinha fundado em Lisboa! A fúria do governo contra Monteiro «compreende-se» perfeitamente pois ele afirma, nomeadamente, que «ser investigador é um dever de todo o cidadão consciente das suas responsabilidades perante a sociedade, porque ser investigador é adoptar uma atitude crítica, perante a vida e o conhecimento, para chegar a novas conclusões».

Pressionado pela perseguição que lhe era movida, em 1945 António Monteiro teve que seguir para o Brasil, com um contrato de quatro anos, o qual não foi renovado por influência das autoridades portuguesas, o que o obrigou a ir para a Argentina onde, anos mais tarde (1958), recebeu, exilado, o seu amigo Ruy Luís Gomes.

O segundo dos momentos assinaláveis na vida de Ruy Luís Gomes que queremos referir situa-se em 1945, que é o ano da sua entrada na actividade política intensa, quase quotidiana, paralela à sua actividade como cientista. Ruy Luís Gomes «apoiou o Movimento de Unidade Democrática (MUD) desde o seu início, tendo assistido à sessão histórica da sua fundação, no Centro Republicano Almirante Reis, em Outubro de 1945» (2).

Ainda nesse ano, realizou-se um comício do MUD, no Olímpia, no Porto. Segundo Virgínia Moura, foi uma jornada «extraordinária» do MUD com «uma adesão popular espantosa», para a qual foi convidado «o professor Ruy Luís Gomes, até ali apenas conhecido como matemático, para presidir» (3). Foi o encontro histórico entre Ruy Luís Gomes, Virgínia Moura, Lobão Vital e José Morgado de que resultaria uma amizade empenhada e duradoura.

Na realidade, se até aí tinha dedicado o essencial da sua vida à actividade científica, dois episódios mostram que as preocupações políticas de Ruy Luís Gomes já eram anteriores àquela data.

Em 20 de Julho de 1928, eclodiu uma revolta militar a que aderiram várias unidades, que foi dominada rapidamente, e de cuja repressão resultaram sete mortos e trinta feridos graves. Envolvido com os revoltosos estava o major José Manuel Sarmento de Beires, irmão de Rodrigo Sarmento de Beires, professor de matemática da Universidade do Porto. O major passou à clandestinidade e seria preso só em Novembro de 1933. Solidário, Ruy Luís Gomes visitou-o na Penitenciária, como o testemunha o pequeno excerto de uma carta de agradecimento do major, datada de 25 de Janeiro de 1935: «Agradeço-lhe muito sensibilizado a sua visita. Acredite que tive imenso prazer em conhecê-lo, – mas um prazer sincero. Já por saber que é muito amigo do meu Irmão, já por ser irmão do Dr. António Luís Gomes a quem devo tanta solidariedade e tantas provas de estima, já, finalmente, porque, - sem lisonja, - o meu Ex.mo Amigo pertence aquela categoria de pessoas com quem as pessoas de bem (passe-se a imodéstia) simpatizam au premier abord.»

Em 13 de Maio de 1935 é publicado o famigerado decreto n.º 25 317, que visa intensificar a perseguição aos funcionários públicos, ao abrigo do qual, ainda nesse mês, são expulsos 33 professores da Universidade, entre os quais está Abel Salazar que é demitido de professor catedrático de Histologia da Faculdade de Medicina do Porto, sob pretexto de «influência deletéria da sua acção pedagógica-didáctica sobre a mocidade universitária». É-lhe recusada a autorização de sair do país e mesmo de frequentar a biblioteca da Faculdade. Como refere Luís Neves Real, «o Professor Ruy Luís Gomes, profundamente impressionado por toda a campanha que precedera o afastamento do Mestre Abel Salazar da Faculdade de Medicina do Porto, dele determinou aproximar-se para lhe exprimir a sua admiração e manifestar-lhe a sua solidariedade.» (4). Foi o início de uma sólida amizade e cumplicidade que perdurou até hoje. Bem se pode dizer «até hoje» porque, para lá da morte de ambos, as sementes ficaram e produziram o seus frutos de que o exemplo mais vivo é o Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar fundado por iniciativa do matemático já depois do 25 de Abril.

O terceiro dos momentos assinaláveis na vida de Ruy Luís Gomes é referido por duas testemunhas irrefutavelmente fidedignas – Virgínia Moura e José Morgado: «A nossa convivência com o professor Ruy Luís Gomes data de há cerca de quarenta anos, mas foi, sobretudo, nos anos que seguiram imediatamente à candidatura do general Norton de Matos à Presidência da República, em Janeiro-Fevereiro de 1949, que a nossa convivência se intensificou e a nossa amizade se tornou indestrutível» (5).

Os anos que se seguiram significaram, sem dúvida, um seu maior comprometimento político a que o fascismo respondeu com mais perseguições e prisões. Há dois acontecimentos maiores nessa época que são a sua candidatura à Presidência da República, apresentada pelo Movimento Nacional Democrático (MND), em 1951, e a sua tomada de posição relativamente à questão colonial, conjuntamente com Virgínia Moura, Lobão Vital, José Morgado e Albertino Macedo, em 1954, que lhes valeu, a cada um deles, um total de cerca de dois anos de cadeia.

Em fins de Julho de 1954, forças da União Indiana assaltam e ocupam definitivamente os dois pequenos enclaves «portugueses» de Dadrá e Nagar-Avely. Foi o início de um ano de crise política entre os dois países e o princípio da tensão, que só terminaria com o 25 de Abril (mais concretamente, em 1975), e que teve o seu momento culminante com a expulsão total dos portugueses de Goa, Damão e Diu em 19 de Dezembro de 1961.

Nesse ano de 1954, a 11 de Agosto, o MND enviou aos jornais uma «nota oficiosa» sobre o que se estava a passar na Índia, condenando a política colonial do governo e defendendo a autodeterminação dos povos. Foi o suficiente para Ruy Luís Gomes e os seus companheiros serem presos a 19 de Agosto, acusados de traição à pátria, ameaçados com cinquenta anos de prisão mais medidas de segurança, passarem por vários julgamentos até serem finalmente libertados em 1957.

O fascismo continuou a perder, nestes anos 50, as sucessivas oportunidades de resolver pacificamente o problema colonial, sacrificando todos os povos, o português e os das colónias, que se envolveram em conflitos que só muitos anos mais tarde se atenuariam e cujas consequências nefastas vão ainda perdurar. A História acabou por dar razão a todos os que, como Ruy Luís Gomes, rejeitavam uma solução belicista para questão colonial.

No ano de 1956 escreve Ruy Luís Gomes «A revolução republicana de 31 de Janeiro» um texto de matriz claramente marxista que é mais um documento que mostra – se tal ainda era necessário – que o matemático era um político com um pensamento ideológico firmemente consolidado.

Em 1958, parte para o exílio, primeiro na Argentina, seguindo em 1962 para o Brasil. Conseguiram realizar no estrangeiro, ele e os seus companheiros – Monteiro, Pereira Gomes, José Morgado, Zaluar Nunes – o trabalho científico que lhes foi negado em Portugal! A palavra «negado» é aqui um eufemismo porque a eles – a tantos outros! – e ao povo português foi roubada violentamente pelo fascismo a possibilidade do desenvolvimento científico, tecnológico e cultural, sentido-se ainda hoje as consequências.

No estrangeiro e, em particular, no Brasil, o seu trabalho foi e é reconhecido existindo hoje, na Universidade Federal de Pernambuco, um «Auditório Ruy Luís Gomes» e uma «Biblioteca Ruy Luís Gomes».

Em Portugal, logo após o 25 de Abril foi primeiro aclamado e em seguida nomeado Reitor da Universidade do Porto, para, aquando da sua jubilação, lhe ser outorgada a distinção de Reitor honorário e vitalício. Em efectividade de funções tratou de ajudar a reparar as injustiças cometidas pelo fascismo integrando na Universidade como professores catedráticos José Morgado e Óscar Lopes, entre outros.

Faleceu em 27 de Outubro de 1984.

Sem sombra de dúvida que relativamente à vida de Ruy Luís Gomes se pode dizer que foi uma afirmação constante da sua «confiança inabalável» na capacidade científica e política do Povo Português, o que faz dele o mais completo homem de ciência do século XX português, um cientista revolucionário!

Notas

(1) Ruy Luís Gomes: Tentativas feitas nos anos 40 para criar no Porto uma Escola de Matemática, Boletim da SPM nº. 6, de Outubro.

(2) Ruy Luís Gomes: Complemento ao curriculum vitae de Ruy Luís Gomes (vida política) [manuscrito].

(3) Virgínia Moura: Mulher de Abril – álbum de memórias. Edições Avante! (1996).

(4) Luís Neves Real: Nota acerca do Professor Ruy Luís Gomes como professor universitário e cientista. Em «Ruy Luís Gomes – um professor português no Recife», Universidade Federal de Pernambuco, Recife (1970), ou em «Ruy Luís Gomes – problemas de investigação e história», Editorial Inova, Porto, 1969.

(5) Virgínia Moura, José Morgado: Na morte do Prof. Ruy Luís Gomes, Abril vencerá! Jornal “Avante!” 8 e 15 de Novembro de 1984.

 

«O Militante» - N.º 279 Novembro/Dezembro 2005