Só há um caminho |
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Colaboradora da Secção Internacional
«Para que a Humanidade não esqueça!» e «Para que nunca mais se repita!» são apelos que acompanham as inúmeras acções comemorativas, que em todo o mundo durante o presente ano, assinalarão o 60.º aniversário do fim da 2.ª Guerra Mundial e da histórica vitória dos povos sobre o nazi-fascismo.
Não se trata simplesmente de assinalar uma data redonda aparentemente longínqua. Neste início de século, as comemorações assumem uma renovada e extraordinária importância, que não se extingue na evocação do holocausto e dos seus incomensuráveis crimes contra a humanidade – que não podem ser esquecidos –, nem se esgota na justa homenagem que cumpre prestar a todos os homens e mulheres que, através da resistência e luta, abnegadamente dedicaram as suas vidas à derrota da ignóbil ideologia nazi-fascista, da guerra, e pela liberdade.
Sessenta anos depois, o mundo encontra-se novamente refém da guerra. E se é verdade que a história não se repete, é simultaneamente ajustado, e mesmo inevitável que, à luz da actualidade, se estabeleçam paralelismos entre a guerra imperialista de 1939-1945 e a guerra imperialista que se abate hoje sobre os povos do mundo.
O ardor colocado no branqueamento do fascismo e na revisão e falsificação da história, particularmente ao nível das causas e dos factores que conduziram à guerra, bem como ao nível do papel insubstituível da União Soviética e da resistência dos povos para a esmagadora derrota do nazi-fascismo, insere-se num processo – que não é novo, nem de hoje –, mas que começa a gerar frutos. A forma como se tem procurado rasurar a história, distorcendo-a e compondo-a, cumpre no essencial três objectivos: isentar ardilosamente o imperialismo da responsabilidade que teve na barbárie; apropriar-se do tremendo significado libertador da vitória e, finalmente, colocá-la ao serviço da sua presente estratégia de dominação mundial.
A comemoração desta efeméride assume, assim, uma basilar necessidade de reposição da verdade sobre um dos períodos mais negros e sangrentos da história da humanidade, impondo a todos uma maior atenção, estudo e análise, para melhor enfrentar o combate que urge travar contra a mentira.
No recente acto oficial que assinalou a libertação do campo de extermínio nazi de Auschwitz, Dick Cheney, vice-presidente dos EUA, sublinhou que «Auschwitz lembra-nos que o “Mal” existe» e que «Homens sem consciência são capazes de qualquer crueldade que a mente humana pode imaginar» e ainda que, «em cada geração, as nações livres devem manter a determinação, a previdência e a força para lutar contra a tirania e espalhar a liberdade que conduz à paz». Palavras sábias, quase em jeito de mea culpa. É que, em boa verdade, não necessitamos de recuar 60 anos para encontrar provas dessa crueldade que «homens sem consciência» conseguem infligir a outros. Dick Cheney é um desses «homens» cuja «consciência» tem muitas contas a prestar. Mas já George W. Bush, de visita ao mesmo campo, com mais ou menos adjectivos, tinha afirmado o mesmo: «os campos de concentração recordam-nos que o “Mal” existe, deve ser chamado pelo nome e combatido» (...) «depois de ter visto a obra do “Mal” neste continente, não devemos perder nunca a coragem de combatê-lo onde quer que se encontre». Mais tarde em Cracóvia, Bush acabou por ceder à tentação ao congratular-se pela «vitória do seu país sobre o nazismo e o imperialismo comunista». Outro «Império do Mal», como Reagan alcunhava a URSS.
Acontece que essa visita foi realizada em Janeiro de 2003, já a guerra de invasão e ocupação do Iraque tinha produzido largos milhares de vítimas. A sua passagem pela Polónia serviu, num primeiro momento e no quadro de uma Europa dividida quanto à guerra, para um mediático agradecimento pelo apoio incondicional do «aliado» governo polaco. Mas serviu também para estabelecer uma analogia entre o nazi-fascismo – agora reduzido simplesmente a «Mal» – e o «eixo do mal», que a sua «guerra contra o terror» diz pretender combater. Nem a visita nem a analogia foram inocentes. Numa completa falta de decoro, Bush não hesitou em usar a memória das vítimas do nazi-fascismo para legitimar a guerra contra o Afeganistão e o Iraque e justificar as futuras intervenções militares, desenhadas pelo «Projecto para um Novo Século Americano».
E é a esta mesma falta de decoro e afã em falsificar a história que se assiste entre nós quando, numa instituição de ensino superior, se ensina aos alunos que a Rússia teve origem com o fim da União Soviética e que esta potência foi a responsável pelo lançamento das duas bombas atómicas sobre as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki! (1)
E assim se expurga a essência do fascismo e se apaga o papel da União Soviética na vitória. Acontece que o «Mal», personificado em Hitler e na sua Wehrmacht, não explica nem justifica tudo.
Não explica os factores que permitiram a ascensão do fascismo na Europa, o apoio económico proporcionado pelo grande capital financeiro que permitiu a remilitarização da Alemanha, nem as políticas de «não intervenção» e de «neutralidade» adoptadas por grandes potências como a Grã-Bretanha, a França e os EUA, que assim, entre 1931 e 1939, deixaram as mãos livres à Alemanha, à Itália e ao Japão para invadirem e anexarem numerosos países.
A guerra não se iniciou em 1939 com a invasão da Polónia. Há muito que estavam em curso iniciativas de expansão territorial que clarificavam bem os objectivos da Alemanha nazi.
No entanto, para as potências imperialistas ocidentais, a ascensão do fascismo constituía um mal menor, exactamente por se tratar de uma ideologia profundamente anticomunista, nascida da reacção da extrema-direita contra o sucesso da Revolução de Outubro de 1917, na Rússia. Tratava-se, pois, de um inimigo comum que, mais tarde ou mais cedo, teria de ser abatido militarmente. Já o tinham tentado, sem sucesso, entre 1918-1922, não deixando de lhes agradar o avanço para leste das forças nazis, com a esperada invasão, derrota e destruição da União Soviética. União Soviética que, até 1944, carregou com o maior esforço de guerra contra o nazi-fascismo. E, não obstante os apelos a que se procedesse à abertura de uma segunda frente na Europa Ocidental e Oriental, tal só veio a acontecer após o rompimento do cerco a Leninegrado, a rendição alemã em Estalinegrado e a libertação do território soviético, abrindo caminho para a derrota final do nazi-fascismo.
Discute-se muito hoje se a guerra poderia ter terminado antes. Em primeiro lugar é preciso afirmar que a guerra poderia ter sido evitada e depois afirmar que, se os compromissos assumidos entre a coligação anti-hitleriana tivessem sido honrados, e se a estratégia política do campo imperialista não tivesse como primeiro objectivo a destruição do «perigo» comunista, a guerra poderia ter terminado muito antes, poupando a vida de milhões de pessoas.
A nova correlação de forças mundial do pós-guerra, que passou a contar com um bloco socialista, trouxe aos povos do mundo uma nova esperança, que se traduziu em profundas transformações revolucionárias em prol da liberdade, da justiça e do progresso social, marcando definitivamente a história do século XX.
Com o colapso da União Soviética e o fim do equilíbrio de forças, o mundo observou de imediato o crescimento da agressividade imperialista. Não obstante, muitos foram os que acreditaram que o fim da guerra fria criaria um clima propício à paz e ao fim do pesadelo nuclear. Cedo se desenganaram.
Os EUA, na base da sua supremacia económica, tecnológica e militar, e no quadro de um mundo unipolar e sob a lógica neoliberal, afirmaram desde logo os seus objectivos imperiais. A comunicação, pela voz de Bush pai, da existência de uma «nova ordem», serviu apenas para anunciar ao mundo o estabelecimento da hegemonia norte-americana na viragem do novo século.
Com a guerra do Golfo em 1991 e contra a Jugoslávia em 1999, o mundo observou as primeiras manifestações visíveis do significado da «nova ordem» política e militar norte-americana.
Agindo absolutamente à margem das Nações Unidas e no total desrespeito do direito internacional, os EUA e os seus mais fiéis «brothers in arms», lançaram sobre estes dois países guerras de agressão, evocando o chamado «direito de ingerência», pela defesa da «liberdade», dos «direitos humanos» e da «democracia». Num silêncio tormentoso, poucas foram as vozes que ousaram condenar as intervenções, não obstante os perigosos precedentes que abriam.
Com o pós 11 de Setembro, do «direito de ingerência» à «guerra preventiva» foi um pequeno passo. A fabricação de um inimigo externo revelou-se muito útil e eficiente, como se veio a provar com a feroz ofensiva contra direitos laborais, cívicos e políticos que se seguiram a este acontecimento. A «guerra contra o terrorismo» foi anunciada, desta vez por Bush filho, e o «eixo do mal» definido – ou seja todos os países, ou pela sua riqueza, ou pela sua localização geo-estratégica, ou porque se recusem a vergar perante a hegemonia americana, serão alvos a abater por forma a assegurar a dominação económica do mundo.
Na prossecução dos seus objectivos, os EUA não deixaram de lançar o ataque contra as Nações Unidas – subalternizando-as e descredibilizando-as –, e contra todo o edifício jurídico internacional, ao assumirem o direito de intervir unilateralmente, como, quando e contra quem bem entendam, passando por cima de qualquer instância internacional. Ao mesmo tempo, passaram à ofensiva contra relevantes tratados internacionais: abandonam o Tratado de Mísseis anti-Balísticos (avançando para o Sistema de Mísseis anti-balísticos, mais conhecido por Guerra das Estrelas); a Convenção das Armas Químicas e Biológicas (afirmando, pela voz do actual representante dos EUA na ONU John Bolton, que: «o protocolo está morto»); o Tratado de Minas anti-Pessoal (evocando que a Coreia do Sul necessitava delas para se proteger dos avanços bélicos da R. P. D. da Coreia); recusam-se a assinar e/ou ratificar o Tratado de Proibição dos Ensaios Nucleares; o Protocolo de Quioto; a Convenção para a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra as Mulheres; a Convenção sobre os Direitos das Crianças; o Convénio Internacional sobre Direitos Civis e Políticos; retiram-se e opõem-se ao Plano Internacional para a Energia Limpa; à Conferência Internacional sobre o Racismo; etc.
Neste período, a Assembleia Geral das Nações Unidas discute a Revisão do Tratado de Não Proliferação Nuclear, tendo os EUA já manifestado profundas reservas quanto à sua posição, uma vez que considera que a Comissão de Segurança e Desarmamento não sabe apreciar os esforços consideráveis dos países possuidores para acabar com a proliferação horizontal das armas nucleares e insiste na condenação da proliferação vertical.
No plano militar, a corrida aos armamentos assumiu uma escalada nunca vista. Armas cada vez mais sofisticadas e destrutivas foram utilizadas em cenário de guerra, para gáudio da poderosíssima indústria militar. A NATO foi dotada de um novo conceito estratégico, que lhe permite intervir fora das suas fronteiras em nome da defesa de qualquer interesse dos seus países membros, lançar guerras preventivas e utilizar, se bem entender, armas nucleares, com carácter ofensivo. A Postura Nuclear (2) dos EUA foi revista, passando agora a arma nuclear a ser considerada uma corriqueira arma de guerra que pode ser accionada em situação de baixos níveis de segurança. Os orçamentos militares assumiram proporções astronómicas, enquanto os orçamentos destinados à melhoria das condições de vida das pessoas, viram cortes colossais. Prevê-se que o orçamento militar dos EUA atinja, no próximo ano, 419,3 biliões de dólares, mais 19 biliões do que em 2005, um crescimento de 4,8%. Na União Europeia avança-se a toda a velocidade para a militarização, dando cumprimento ao anunciado na Headline Gold 2010 (3), e os orçamentos militares atingem igualmente somas escandalosas.
O Mundo, onde nunca se produziu tanto, assiste à morte de milhões de seres humanos condenados à fome, à doença, à miséria extrema. Os povos subjugados pelo neocolonialismo, vivem sob permanente ameaça e chantagem. Velhos conflitos perpetuam-se e novos eclodem a ritmo estonteante. Assim estamos, 60 anos depois, com novos genocídios, novos campos de concentração, novos crimes contra a humanidade, num mundo que assiste à banalização da guerra com a crescente militarização da economia.
Mas o mundo é também um espaço que conta com extraordinários e heróicos exemplos de resistência e luta dos povos.
A luta pela paz, que assumiu proporções inesperadas com a guerra contra o Iraque, revela a crescente tomada de consciência de milhões de pessoas face às pretensões hegemónicas dos EUA e seus mais féis aliados e dos perigos que encerram para a paz.
Em Portugal realizaram-se inúmeras acções contra a guerra e contra o envolvimento português nesse crime contra o povo iraquiano, entre as quais manifestações que juntaram dezenas de milhares de portugueses. Decorridos dois anos, a última concentração contra a ocupação do Iraque foi menos participada, o que não significa uma inversão no sentimento anti-guerra do povo português. Essa menor participação deve-se à tremenda campanha de desinformação e de ocultação da agressividade da ocupação desse país, a algum cansaço e até desmotivação. Mas também ao sectarismo, ao ajustamento de determinadas forças à nova situação política e aos compromissos da social-democracia com fachada de esquerda radical. Não seria de esperar outra coisa.
Não obstante alguns percalços, o movimento pela paz em Portugal constitui um importante espaço unitário de intervenção e de luta. A sua acção contra as guerras imperialistas na Jugoslávia, no Afeganistão e no Iraque; contra o criminoso bloqueio contra Cuba; contra a ocupação da Palestina e o genocídio consentido do seu povo; contra a corrida aos armamentos e à militarização e pela solidariedade com a luta dos povos pela sua autodeterminação e independência, constituem exemplos da importância da existência de movimentos pela paz comprometidos com a defesa das mais valiosas causas da Humanidade: a liberdade e a paz. O reforço desta frente de luta constitui, assim, uma tarefa fundamental que o Partido e os comunistas devem assumir, não obstante o papel indispensável que têm tido no apoio e na dinamização constante de acções em prol da paz, da solidariedade e da cooperação entre os povos.
Como a história bem provou, não existem «invencibilidades» e a luta que urge travar contra a guerra, não sendo fácil, é o caminho que, uma vez mais, os povos saberão tomar nas suas mãos a bem da paz e a bem da Humanidade.
Notas
(1) Proferidas na Faculdade de Economia do Porto no passado mês de Abril, estas são afirmações que branqueiam a história, que omitem os responsáveis pelo hediondo crime que consistiu no bombardeamento nuclear destas duas cidades japonesas. E, como é norma corrente, o relato dos acontecimentos faz-se sempre descontextualizado da 2.ª Guerra Mundial. Para que não restem dúvidas, Hiroshima e Nagasaki foram bombardeadas pelos EUA, respectivamente a 6 e 9 de Agosto de 1945, à margem das decisões da Conferência de Potsdam (17Junho/2Agosto de 1945). Não existia nenhuma justificação militar para tal bombardeamento, pois na verdade o Japão já se encontrava derrotado. O lançamento das bombas atómicas sobre o Japão (com três dias de intervalo e com características diferentes) não foi mais do que uma manifestação do poderio nuclear dos EUA, por forma a submeter povos e nações, particularmente a União Soviética, sob a chantagem do pesadelo nuclear.
(2) Em Dezembro de 2002 o Congresso
norte-americano aprovou o documento «Revisão da Postura Nuclear».
Trata-se de um conjunto de medidas políticas que impõem doravante
profundas alterações na estratégia nuclear dos EUA, partindo
do princípio de que, no século XXI, a América enfrenta
novos perigos, nos quais se incluem possíveis ataques com armas de
destruição maciça, e que a lógica de dissuasão
nuclear da era guerra fria é inadequada para os enfrentar. Assim, abandonam
a reserva de utilização da arma nuclear em resposta a um ataque,
adoptando uma nova postura que admite a sua utilização ofensiva.
Uma postura que coloca o mundo sob uma nova chantagem nuclear, propiciando
o abandono de tratados de não proliferação e de redução
nuclear, como se pode verificar pelo abandono dos EUA do Tratado ABM, do CTBT
e do TNP. Ao mesmo tempo que adoptam um vasto e dispendioso conjunto de medidas
visando «manter, modernizar e ampliar» os seus arsenais.
Com a guerra contra o Iraque, esta nova postura entra na lógica da
guerra preventiva com a admissão de utilização de armas
nucleares contra este país, diminuindo significativamente o patamar
nuclear e destruindo a barreira de separação entre armas nucleares
e armas convencionais. Excertos do documento poderão ser consultados
em: www.globasecurity.org
(3) A Headline Gold 2010 é um documento de definição da estratégia militar que estabelece, entre outros, o compromisso de criação, até 2010, da Força de Intervenção Rápida Europeia. Esta inseri-se no já longo processo de militarização da UE e que assume, a par da estratégia norte-americana e da própria NATO, a lógica da guerra preventiva e de intervencionismo, o que significa a possibilidade de intervenção militar da UE em qualquer parte do mundo, onde considere que os seus interesses estejam postos em causa.
«O Militante» - N.º 276 Maio/Junho 2005