Ataque coligado ao
Sector Empresarial do Estado

 


Membro da Comissão para as Questões da Segurança Social junto do CC do PCP

 

Abordada a descaracterização da Constituição no número anterior de O Militante, vejamos agora as medidas contra-revolucionárias na estrutura económica.

O Sector Empresarial do Estado (SEE) chegou a envolver cerca de 2000 empresas (22,9 do Valor Acrescentado Bruto [VAB], fruto da nacionalização directa de 244 empresas, a que se juntaram outras, por nacionalização indirecta ou por processos de intervenção, e uma área não menos importante – a reforma agrária –, que no Ribatejo e Alentejo abrangeu cerca de 1,2 milhões de hectares.

Tal universo (bancos, seguros, electricidade, siderurgia, cimentos, celulose, tabacos, indústria química, construção e reparação naval, minas, pesca, comunicação social e meios de transportes) ao constituir, nos termos constitucionais, a base material de transição para o socialismo, e ao deixar de ser factor tutelar da acção política de elementos conspirativos, era, no contexto da luta de classes, um alvo a abater pela burguesia e seus mandatários políticos.

Mas o sentido dessa luta não foi (não é) unívoco, dependeu (depende) de múltiplos factores, entre os quais foi (e é) fundamental a capacidade de resistência dos trabalhadores, das suas organizações sociais e, sobretudo, do PCP.

Passados cerca de 30 anos já pouco resta daquilo que foi o património colectivo nas áreas mais importantes da nossa economia. Mas o percurso da privatização tem uma história, tem nomes e pessoas.

Mário Soares – I e IX Governos constitucionais

Mário Soares chefiou dois governos (de 23/7/76 a 23/1/78 e de 9/6/83 a 6/11/85), cabendo-lhe quer o pedido de entrada na então CEE (28/3/77), quer a adesão formal (12/6/85), factos que não estão desligados do figurino que o PS pretendia para o SEE, bem expresso em duas normas jurídicas – a Lei 46/77 de 8/7 e o Dec-lei 406/83 de 19/11, marcos regressivos relativamente ao normativo constitucional e pelos quais a iniciativa privada pôde invadir a esfera de acção do SEE.

Pequena obra-prima de hipocrisia e de astúcia de redacção, a Lei 46/77 que, em título, «veda a empresas privadas e outras entidades da mesma natureza a actividade económica em determinados sectores», abre, pelo contrário, à iniciativa privada empresas indirectamente nacionalizadas, sociedades de investimento, sectores industriais de base em associação com o sector público, bem como sectores estratégicos, salvo nos casos em que haja consumo público. O seu art.º 6º permite toda e qualquer interpretação: «O governo pode, por decreto-lei, determinar que fique vedado à iniciativa privada o exercício de actividades industriais de base fiscal, designadamente as indústrias tabaqueira e fosforeira».

Moral da história: a lei que pretendia limitar a iniciativa privada não limita. Pelo contrário, é a mesma lei que remete para que um decreto-lei determine a referida limitação.

Passados cerca de seis anos Mário Soares regressa novamente ao poder, em resultado da coligação PS/PSD saída dos resultado das eleições de 25 de Abril/83. Escassos meses depois da tomada de posse, pelo referido Dec-lei 406/83 – à data o maior ataque ao SEE –, é permitido o exercício das actividades bancária e seguradora por empresas privadas e outras entidades da mesma natureza, assim como às indústrias adubeira e cimenteira.

Em resumo: em 1977, durante o seu 1º governo, foi aberto o negócio financeiro a sociedades de investimento; em 1983 foi aberto à iniciativa privada o exercício da actividade bancária; em 1985 foi constituído o primeiro banco privado, liderado até há pouco tempo por Artur Santos Silva, um dos fundadores do PSD – a bem, naturalmente, dos interesses políticos do bloco central e dos interesses pessoais dos seus representantes!

Cavaco Silva – X, XI e XII Governos constitucionais

É no período de 17/8/87 a 5/4/90, que corresponde parcialmente ao XI Governo constitucional (o X Governo não encetou medidas gravosas contra as empresas nacionalizadas, apenas por não ter apoio maioritário na AR), que se inicia, a mata-cavalos, a fúria privatizadora da direita, tendo como suporte a Lei Quadro das Privatizações (Lei 11/90 de 5/4).

Entretanto, em 1987, ao abrigo das normas publicadas durante os governos Mário Soares, já haviam sido, embora residualmente, alienadas algumas participações cujas receitas, a preços correntes, totalizaram cerca de 23 600 contos, valor modesto mas indiciador do que viria a seguir.

O primeiro ataque, surge com a Lei 71/88 de 24/5, criando-se o enquadramento necessário para se dar início ao proclamado «processo de reorganização da actividade económica» – mero pretexto para esconder o que efectivamente se pretendia: a alienação das participações públicas.

O segundo ataque é desferido através da Lei 84/88 de 20/7, em que é utilizado um estratagema de privatização por via da transformação em sociedades anónimas de empresas integradas no SEE, embora a maioria absoluta do capital continuasse a ser detido pela parte pública a quem, igualmente, correspondia a maioria dos assentos nos órgãos sociais.

É neste contexto que Cavaco Silva aliena 49% das acções correspondentes ao capital da Unicer, do Banco Totta & Açores, da Aliança Seguradora e da Companhia de Seguros Tranquilidade, cujas vendas, rendendo ao Estado 70,8 milhões de contos, marcam o início da grande cavalgada em direcção à acumulação capitalista, de que é exemplo o património de mais de 20 mil milhões de euros das 100 famílias mais ricas de Portugal.

Importa salientar a forma ardilosa da feitura desta lei, que permite ao Ministério das Finanças, orientado então por Eduardo Catroga, escrever em «Privatizações em Portugal – Uma Reforma Estrutural», 1995, págs. 51 e 52: «Estava assim implícito que se cumpria o preceito constitucional do polémico artigo 83.º, se o Estado apenas alienasse à iniciativa privada posições minoritárias, mantendo, dessa forma, o absoluto controlo da empresa. Prevalecia, também, o princípio de que o objecto da nacionalização teria sido o capital das empresas tal como historicamente se apresentava no momento em que o acto de nacionalização se operou. Assim, só este preciso valor se encontrava ao abrigo da irreversibilidade, pelo que os lucros e as mais-valias, entretanto geradas e não atribuídas, as dotações de capital realizadas e, inclusive, o aumento do “goodwil”, encontram-se fora do âmbito da imposição constitucional».

Na mesma sintonia esteve posteriormente o governo Guterres que, através do seu ministro das Finanças, Sousa Franco, deixou no «Livro Branco do Sector Empresarial do Estado», esta prosa lapidar: «É certo que já antes da revisão constitucional de 1989 se havia procedido, numa interpretação hábil da Constituição, às chamadas privatizações minoritárias, ou a 49%, com base na célebre primeira lei das privatizações (Lei n.º 84/88, de 20 de Julho). Porém, só após esta revisão constitucional, e mais especificamente, após a entrada em vigor da Lei n.º 11/90, de 5 de Abril, tivemos um instrumento jurídico que, mesmo não sendo tecnicamente perfeito, permitiu o lançamento das chamadas privatizações integrais, envolvendo a totalidade do capital social».

O terceiro ataque é desferido pelo Dec-lei 449/88 de 10/12, ao abrir ao capital privado as indústrias de refinação de petróleo, petroquímica de base, siderúrgica, produção, transporte e distribuição de energia eléctrica, produção e distribuição de gás, telecomunicações complementares da rede básica, transportes aéreos regulares interiores, transportes ferroviários não explorados em regime de serviço público e transportes colectivos urbanos de passageiros.

O quarto ataque – a grande medida a favor da chamada «economia de mercado» – resultou da 2ª revisão constitucional (1989), constituindo um verdadeiro acerto de contas com o processo revolucionário que se seguiu ao 25 de Abril. Acerto de contas que a AR aprovou com a publicação, em 5/4, da Lei 11/90, sendo Presidente da República, Presidente da AR e Primeiro Ministro, respectivamente, Mário Soares, Vítor Crespo e Cavaco Silva. Lei, cujo art.º n.º 1 diz expressamente que se aplica «...à reprivatização da titularidade ou do direito de exploração dos meios de produção e outros bens nacionalizados depois do 25 de Abril de 1974...».

Este é um marco histórico a favor do capital privado, num processo de alienação do património do Estado levado a cabo pelos partidos do bloco central, PSD e PS, coadjuvados pelo CDS-PP e que teve em Cavaco Silva um exímio executor. Com efeito, entre 1987 e 1995 foram realizadas 152 operações de privatização, com maior expressão nos sectores bancário e segurador, responsáveis por cerca de 60% do encaixe total, a que se seguem as telecomunicações e os cimentos, com 11,1% e 8,9%. Um encaixe na ordem dos 1367 milhões de contos a preços correntes, valor largamente ultrapassado pelo governo do eng.º Guterres.

Em termos absolutos as maiores alienações do património do SEE tiveram lugar em 1992 e 1995, sendo de realçar o ano de 1992, em que o valor do encaixe representou cerca de 1,6% relativamente ao PIB.

Embora o sector dos transportes tenha rendido cerca de 33 milhões de contos, é de realçar a total alienação das empresas que haviam estado integradas na Rodoviária Nacional – uma das maiores empresas de transportes de passageiros da Europa após as nacionalizações. É de salientar, igualmente, a alienação das cervejeiras, Jornal de Noticias, Diário de Notícias, Rádio Comercial e o início de importantes privatizações: Secil, Cimpor, Brisa, entre outras.

Tal processo encerra uma história que urge vir à luz do dia. A história do processo de privatização e da paralela acumulação capitalista, desagregada não só por instituições como pelas famílias mais ricas do país, acumulação alicerçada no desenvolvimento do mercado de capitais, que atingiu tal ferocidade predadora que levou um dos seus principais promotores, Cavaco Silva, a dizer que se andava a «vender gato por lebre», tal era o desfasamento entre a economia real e o preço especulativo do valor das acções.

Aquilo que não foi esclarecido foi a relação desse vertiginoso aumento na venda de «papel» (cerca de 58 vezes em oito anos) com a evolução real da economia, relação que não deixaria de confirmar a forte e dramática influência da justamente designada «economia de casino» no nosso frágil tecido produtivo.

António Guterres – XIII e XIV Governos constitucionais

A 5 de Março de 96, precisamente no dia em que o Conselho de Ministros tornou ilimitado o acesso à compra de acções, por parte de entidades da UE (ou aí residentes), das empresas privatizadas, em processo de privatização ou a privatizar, o governo Guterres aprova, pela Resolução n.º 21/96, o programa de privatizações para 1996/97, o qual envolvia quanto aos sectores a alienar: o financeiro, a indústria, os transportes e comunicações e a energia, além de outras empresas de menor dimensão, estimando-se que no decurso de 1996 fossem geradas receitas equivalentes a 1900 milhões de euros, valor que pecou por defeito visto que as receitas totais orçaram 2364 milhões de euros.

Passado cerca de um ano o mesmo governo publica um 2º pacote privatizador, pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 65/97, em cujo preâmbulo é afirmado que as privatizações levadas a cabo anteriormente contribuíram “significativamente para o reforço da competitividade da economia portuguesa”.

Os objectivos do governo socialista para o biénio de 1998/99 centram-se nos sectores já atrás referidos (excluindo as empresas já totalmente privatizadas), estimando-se uma receita média anual de cerca de 2000 milhões de euros, valor igualmente sub-avaliado.

Guterres prossegue, em 1998 e 1999, com as privatizações na Cimpor, Quimigal, Soporcel, Cª do Papel do Prado, Fapagal, Setenave, Brisa, Portugal Telecom, EDP e Carbolis, de que resultou um encaixe de 1207 milhões de euros.

Para se ter ideia da dimensão da privatização concretizada até meados de 1999 por parte do governo PS basta dizer que, nas 17 maiores operações de privatização com encaixes individuais superiores a 50 milhões de euros, cerca de 71% pertenceu ao PS e 29% ao PSD.

A sanha privatizadora do PS não se ficaria por aqui. Ela iria continuar através da Resolução do Conselho de Ministros n.º 71/2000, com a qual se pretendia definir o universo das empresas a privatizar no decurso de 2000 a 2002 e cujo encaixe financeiro devia proporcionar uma receita anual média na ordem dos 2 mil milhões de euros.

Que empresas eram essas? Desta vez, eram a ANA, Brisa, Cimpor, EDP, Galp, Papercel, Soporcel, Portugal Telecom e TAP.

No mês seguinte, a AR, pela Lei n.º 88/A/97 de 25/7, desfere um outro ataque no âmbito económico ainda reservado ao sector público. Por este diploma as únicas áreas vedadas “a empresas privadas e outras entidades da mesma natureza”, salvo quando concessionadas, passaram a ser as seguintes:

a) Captação, tratamento e distribuição de água para consumo público, recolha, tratamento e rejeição de águas residuais urbanas, em ambos os casos através de redes fixas, e recolha e tratamento de resíduos sólidos urbanos, no caso de sistemas multimunicipais e municipais;

b) Comunicações por via postal que constituam o serviço público de correios;

c) Transportes ferroviários explorados em regime de serviço público;

d) Exploração de portos marítimos.

Quanto aos recursos mineiros e à indústria de armamento a lei, no seu art.º 2.º e 4.º, rezava o seguinte:

Sector mineiro: “A exploração dos recursos do subsolo e dos outros recursos naturais que, nos termos constitucionais, são pertencentes ao Estado será sempre sujeita ao regime de concessão ou outro que não envolva a transmissão de propriedade dos recursos a explorar, mesmo quando a referida exploração seja realizada por empresas do sector público ou de economia mista”.

Indústria de armamento: “O regime de acesso à industria de armamento e do exercício da respectiva actividade será definido por decreto-lei, por forma a salvaguardar os interesses da defesa e da economia nacionais, a segurança e a tranquilidade dos cidadãos e os compromissos internacionais do Estado”.

Depois de tudo isto uma pergunta se impõe: com que dimensão ficou o SEE após o consulado guterrista?

De 1996 a 2001 o governo Guterres concretizou dezenas de operações de privatização, cujo encaixe de 15 919,8 milhões de euros, a preços correntes, excedeu não só as expectativas iniciais como superou em mais do dobro as receitas obtidas entre 1989 e 1995 pela governação Cavaco Silva, que totalizaram, a preços correntes, 6 827,3 milhões de euros.

Mercê deste conjugado empenhado e bipolar esforço privatizador, ora do governo Cavaco Silva, ora do governo Guterres, o SEE, que em consequência do processo revolucionário chegou a representar cerca de 23% do VAB, passou para os residuais 5,1%, em finais de 2000.

A António Guterres coube entregar à direita, que lhe sucedeu no poder, cerca de metade do SEE que dela havia recebido. Paralelamente a esta devastação convém dizer que, no outro prato da balança, a capitalização bolsista da Bolsa de Valores (a justamente apelidada de economia de casino) no final de 2001 era de 96 178 milhões de euros, contra 12 792 milhões de capitalização bolsista accionista em 1995, ou seja aumentou 652% num período em que o salário mínimo cresceu apenas 29% e em que a população portuguesa a viver no limiar da pobreza atingia o dramático número de 2.300.000 pessoas.

Durão Barroso e Santana Lopes – XV e XVI Governos constitucionais

Neste processo de privatizações levadas a cabo pelos governos PS, PSD e CDS-PP, que papel coube à coligação destes dois últimos partidos? A sua atenção focalizou-se nas áreas da energia, do papel, dos transportes aéreos, da indústria de armamento, do turismo, das águas, dos portos e áreas portuárias e do pouco que restava do sector financeiro.

É certo que, com a sua demissão, não conseguiu levar por diante tudo o que pretendia. Os três anos de (des)governação não lhes deram essa oportunidade, embora isso não os afectasse muito na medida em que há uma verdadeira compita entre a direita e o PS no acesso ao pódio dos campeões das privatizações. Mas se a dimensão das privatizações não pode ser equiparada ao que aconteceu no cavaquismo, e muito menos no guterrismo, importa salientar o encerramento definitivo da participação do Estado na actividade bancária (exceptuando o Grupo CGD), com a venda do que restava do Banco Comercial dos Açores, e a alienação de uma parte das OGMA, indiciando o início do ataque à indústria de armamento e às oficinas a ela ligadas.

Entretanto, em Março do corrente ano tomou posse o novo governo PS, sem Guterres mas com ministros que o haviam servido, incluindo o actual Primeiro-Ministro.

Importa referir que o guterrismo havia expressamente decidido privatizar, entre outras, a TAP, a ANA, a Companhia das Lezírias, a par de implícitas privatizações na área da água e dos portos.

Há poucos dias o PSD, pela voz de Marques Mendes, candidato a líder desse partido, anunciou que o processo das privatizações deveria ser alargado aos transportes urbanos de Lisboa e Porto (Carris, Metro e STCP).

Ligando as decisões antigas do PS com os novos desejos do PSD, tudo indica que continua na ordem do dia a cavalgada da direita e das políticas de direita contra o SEE, à revelia, naturalmente, da maioria da opinião pública que, recentemente, em eleições legislativas, apresentou claramente não o cartão amarelo, mas sim o cartão vermelho à política de direita!

«O Militante» - N.º 276 Maio/Junho 2005