Trabalho, saúde, educação e ÁGUA!
É urgente regar os cravos vermelhos

 


Engenheira Civil. Membro do Sector Intelectual da DORL do PCP

 

Trabalho, saúde e educação são, há muito tempo, zonas de fractura entre esquerda e direita, bandeiras políticas e de contestação, questões incontornáveis num programa político e, também, no discurso demagógico.

Hoje a água vem juntar-se a estas questões, em Portugal como em todo o Mundo. Porque toda a relação humana com a água, com o «recurso-água», com a «água-ambiente», está ameaçada.

A faceta mais evidente é a privatização dos “serviços de água” – o abastecimento de água doméstico e o serviço de esgotos (recolha e tratamento de águas residuais).

A crise económica actual torna particularmente apetecível a exploração de bens essenciais, especialmente em regime de monopólio, como os serviços de água. As multinacionais da água tornaram-se poderosíssimas e os governos neoliberais continuam a favorecê-las, realizando com estes negócios fundos de maneio rápidos com que vão disfarçando o desmantelamento da estrutura produtiva e do património dos cidadãos.

Em Portugal, o acesso universal aos serviços públicos de água é, tal como o acesso aos serviços de saúde e de educação, um direito conquistado na Revolução de Abril. Por vezes esquecemo-nos. Coexistiam, antes de 1974, serviços públicos e privados de água, de saúde e de educação, mas uma enorme percentagem da população não tinha acesso a esses serviços, não tinha capacidade económica para usufruí-los – nem lhe era reconhecido o direito a eles, nem a responsabilidade do Estado em proporcioná-los.

É a Constituição de 1976, com as leis de base que a seguem imediatamente – a lei das nacionalizações e a lei de delimitação de sectores –, que consolida este direito e torna uma obrigação do Estado, vedada a negócio privado, proporcionar os serviços de água.

Legislação muito avançada na época e ainda hoje de uma modernidade pioneira. Mais de 20 anos depois, a Holanda, considerada um dos países mais avançados do mundo nas questões da água, aprovou, em Outubro de 2004, a lei que interdita ao sector privado a exploração do abastecimento de água.

Em Portugal, pelo contrário, iniciou-se há muito o retrocesso. Culminando um processo de alterações legislativas profundas iniciadas na década de 80, em 1995 foi aberto o negócio da água. Passou a ser legal a exploração privada dos serviços de água e iniciaram-se as privatizações.

Crescendo...

A privatização transforma o objectivo do serviço – de um direito de cidadania e uma responsabilidade do Estado, transforma-se no negócio de um concessionário que comercia o acesso ou exclusão do acesso à água. Os cidadãos são expoliados da propriedade e perdem o direito à água. O património público – infraestruturas, terrenos, a própria água – é alienado para que o concessionário dele tire renda como de capital próprio. O serviço deteriora-se, a manutenção e os reinvestimentos são minimizados, a água perde qualidade, as origens degradam-se, os preços sobem e são gradualmente abandonadas, ou nunca servidas, as zonas menos rentáveis. Desaparecem os serviços gratuitos, a água deixa de correr nas fontes públicas, os fontanários são selados.

Esta história repetiu-se vezes sem conta em muitos países. E começou a surgir, um pouco por toda a parte, a defesa dos serviços públicos e do direito à água. Primeiro em grupos locais, população de cidades que sofria os efeitos da privatização. Depois esta luta cresceu em todo o mundo, geraram-se movimentos nacionais e de solidariedade entre povos. A PSI (Greenwich, Inglaterra), a associação «Public Citzens» (EUA), o «Council of Canadians» (Canada), a ACME (França e outros países), estão entre as mais conhecidas, muito activas não só nos países de origem como no plano internacional, mas existem muitíssimas mais.

Em quase todos os países cujos governos cedem à privatização da água, surgiu oposição popular, que se organizou em associações, por sua vez agrupadas em confederações, quase sempre articuladas com o movimento sindical e frequentemente com partidos políticos de esquerda, mas não só. Geram-se consensos amplos em relação à água e estas confederações podem abranger espectros muito latos, incluindo, por vezes, associações ambientalistas e até organizações religiosas, sobretudo na América Latina e em África.

Algumas vitórias fortaleceram a confiança na luta. Grenoble (França) foi uma das primeiras cidades a ganhar, num processo longo e difícil, a re-nacionalização dos serviços de água privatizados. E houve já vários outros casos de vitória, alguns após lutas particularmente dramáticas, como em Cochabamba (Bolívia), onde houve confrontos violentos e repressão armada, que fez uso de gases químicos, provocando dois mortos e a cegueira de várias pessoas; e no Gana, onde a exclusão de acesso e o fecho dos fontanários originaram uma epidemia de cólera.

As associações que protagonizam a defesa do acesso à água tiveram um papel crucial ao trazer ao conhecimento público a ameaça do “GATS” (Acordo Global sobre Comércio de Serviços), um clausulado, preparado pela Organização Mundial do Comércio, para sujeição às regras de comércio liberalizado de todos os serviços, incluindo a água, a saúde e a educação. As denúncias da canadiana Maude Barlow (Council of Canadians) foram traduzidas, publicadas e divulgadas em todo o mundo, sobretudo as associadas à privatização da água.

A questão da água continua em evidência nas posteriores negociações regionais do GATS, designadamente na UE, na discussão do “Acordo sobre serviços de interesse geral”. E com algum resultado. Em Março de 2004, o PE obriga a excluir os serviços de água da liberalização completa, proposta pela Comissão: “[o Parlamento Europeu] recusa que a água e os serviços relacionados com a água ou a eliminação de resíduos sejam objecto de directivas sectoriais do mercado único; considera que não deve levar-se a cabo a liberalização do abastecimento de água (incluindo as águas residuais), devido às características regionais do sector e à responsabilidade local de abastecimento de água potável, assim como a outras condições relativas à água potável;” (P5_TA-PROV(2004)0018 A5-0484/2003 European Parliament resolution on the Green Paper on services of general interest)

Esta resolução do PE indicia o peso político que a defesa do serviço público de água começa a ter nos países da UE. Naqueles em que houve privatização e onde a contestação está a obrigar à rescisão de concessões, como a França, e naqueles onde, sendo públicos todos os serviços de água, foi considerado necessário estabelecê-lo em lei, como a Holanda.

Não se trata, no entanto, em nenhum dos casos, de reorientação social ou sequer abrandamento da linha liberalizadora pura e dura, mas antes da ponderação de efeitos «politicamente inoportunos» que a insistência na privatização da água poderia acarretar em desgaste eleitoral, e na imagem da «Europa social» que pretendem apresentar aos seus eleitores. Demonstram-no as posições privatizadoras em relação à saúde e à educação; as políticas externas da UE e dos mesmos países membros, incluindo a própria Holanda, na agressividade privatizadora em relação à água de países terceiros; o deferente acolhimento na UE das transnacionais da água, que têm assento no «Forum Europeu dos Serviços» (ESF), acreditado como ONG e formalmente interveniente nos processos de decisão.

Um permanente “medir de forças” entre movimentos unitários, em confronto com os interesses das transnacionais da água e os seus sequazes políticos, tem contido, luta por luta, caso por caso, algumas arremetidas nos órgãos nacionais, regionais e mundiais. Não só em relação aos serviços de água, mas também à «água da natureza», objecto de um ataque mais violento mas também mais subtil, e por isso de combate mais difícil.

Evitaram-se no GATS e na Directiva Quadro da Água cláusulas impondo a instalação do «mercado da água», da comercialização de «direitos» de poluir e de «direitos» de utilização, desejadas por transnacionais e muitos governos. Impediu-se a «obrigatoriedade» – pelo menos provisoriamente e até novos ataques, que não tardarão. Mas, em cada país, do confronto de forças resultará a opção nacional.

Em Portugal, o impenetrável silêncio dos média encobriu, no princípio de 2004, a tentativa do Governo aprovar uma «Lei da Água» que, sob a capa de transposição da Directiva Quadro da Água (que não transpunha), instalaria em Portugal um selvagem mercado da água sem paralelo noutro país. Foi contido este primeiro ataque, mas a mesma proposta, com nova roupagem, reapareceu, silenciosamente, em Dezembro de 2004. Referências nos programas eleitorais do PSD, do PS e do CDS-PP, o silêncio sobre os dois processos, tornam patente que o conteúdo não só é consensual a esses três partidos, como são coniventes em ocultá-lo dos portugueses. E continuamos a luta de resistência.

Uruguai

Há também grandes vitórias. O Uruguai demonstrou-o. Em 31 de Outubro de 2004 houve eleições no Uruguai. Ganhou a esquerda, pela primeira vez na história nacional. E houve também um plebiscito. Nesse plebiscito, pela primeira vez no mundo, o voto popular recusou a privatização da água, afirmou que a água é um direito de todos e institui a participação popular na gestão da água.

É difícil separar as duas vitórias. A luta da água terá sido decisiva no resultado eleitoral, mas sem o poder político como seria cumprida a vontade expressa na votação do plebiscito?

A coligação de esquerda, «Frente Amplio», que inclui vários partidos e formações, entre os quais o Partido Comunista do Uruguai, concorre há 30 anos às eleições. Mas sempre, até agora, as eleições se bipolarizaram entre dois outros partidos, semelhantes entre si, que alternaram no poder. «Só estes podem ganhar», diziam. Mas no dia 31 de Outubro a «Frente Amplio» obtém mais de 50% dos votos.

A luta pela água foi liderada pela «Comissão Água e Vida» (Comissão Nacional em Defesa da Água e da Vida - CNDAV) que se formou em 2002, após o governo uruguaio ter assinado, com o FMI, uma Carta de Intenção comprometendo-se a privatizar os serviços de água em todo o país. Este processo iniciou-se com uma primeira concessão à «Águas da Costa» (denominação local para uma delegação da «Águas de Barcelona», subsidiária espanhola da multinacional Suez Lyonnese-des Eaux), seguida de uma segunda às «Águas de Bilbao», outra multinacional com sede em Espanha. Mas não são apenas os serviços que estão em causa: o Uruguai é um dos países do mundo com abundância de água, superficial e subterrânea, em geral de boa qualidade – preservar a soberania sobre a água, protegê-la da cobiça, da poluição e do uso desregrado é também um dos objectivos centrais dessa luta.

A luta pela água teve expressão diferente em zonas de características sócio-económicas diversas – no litoral centrou-se na qualidade da água e no preço dos serviços, processando ainda a concessionária por danos ambientais decorrentes da sobre-exploração da origem de água utilizada, enquanto que, no interior, se priorizou a defesa dos fontanários públicos. Mas a luta não se limitou à resistência local. A CNDAV lançou uma iniciativa de «acção popular» para garantir na Constituição Uruguaia que a «água é de todos».

Numa campanha activíssima, que envolveu milhares de pessoas e incluiu materiais explicativos, bancas e manifestações de rua, debates em todo o país, 250 000 uruguaios subscreveram uma proposta legislativa de emenda constitucional que foi apresentada ao Parlamento. O alcance é muito mais amplo que uma delimitação de sectores. São os princípios de direito da água, de uma gestão justa, soberana, ecológica e solidária.

A maioria parlamentar recusou-se a aprovar a proposta de emenda, mas não podia ignorá-la: optou por convocar um plebiscito, coincidente com as eleições legislativas.

A água foi tema central numa campanha eleitoral em que os partidos maioritários diabolizaram de todas as formas a oposição e fizeram tremendas ameaças de miséria e penalizações para o país caso a proposta de emenda fosse aprovada. A CNDAV recrudesceu a mobilização, apoiada pela «Frente Amplio». As questões da água demarcavam uma fronteira bem definida entre «esquerda» e «direita» – e foi uma campanha de discussão política.

Com uma afluência às urnas de mais de 80% dos eleitores, no dia 31 de Outubro de 2004 o povo uruguaio escolheu a «Frente Amplio», por mais de 50% dos votos, e a emenda constitucional foi aprovada por mais de 60%.

O Uruguai tornou-se o primeiro país do mundo a fazer uma alteração legislativa desta amplitude por iniciativa popular. Ganhou o povo uruguaio. Uma vitória enorme, mas que exige agora uma luta firme e difícil.

Três meses depois, a mensagem que encontramos no «sítio» oficial do Partido Comunista do Uruguai é «defender a alegria»:

« (...) e está na hora de defender a nossa alegria. A que hoje celebramos, porque desde aqueles que sobre um caixotito apelavam à unidade da classe trabalhadora, à unidade de esquerda, desde aqueles que nos anos sessenta forjaram o cimento do que se concretizou em 1971 e se chamou Frente Amplio (...) nos ensinaram que o nosso objectivo único é a pública felicidade; (...) Defendamos a alegria como uma trincheira, adverte-nos Benedetti num dos seus inolvidáveis poemas. (...) A alegria que arrancámos ao poder dominante com, literalmente, sangue, suor e lágrimas. A alegria do que nos espera e que exige cada um de nós.»

E em Portugal? Também com «água de todos» se regam os cravos vermelhos...

 

«O Militante» - N.º 275 Março/Abril 2005