Até Amanhã, Camaradas
Da sobrevivência de um livro
e dos truques do preconceito

 



Professor universitário Membro do Comité Central do PCP

 

Vem este artigo a propósito de uma série televisiva exibida em dois blocos de três episódios cada um e que é uma adaptação do romance Até amanhã, camaradas. Compreende-se que desde há anos este romance atraísse quem pensa, vê ou imagina imagens, quem trabalhe produzindo imagens. As razões dessa atracção serão de natureza vária: interesse pelo livro e pelo mundo que ele (re)constrói e evoca, simpatia ou respeito pela acção daquelas personagens, fascínio pela personalidade do seu autor, etc.. Mas manterei em fundo as razões directamente políticas e demorar-me-ei sobre aquelas que, mesmo que não completamente dissociáveis destas, se prendem com processos técnico-formais ou estéticos e os seus efeitos de sentido (políticos).

Até amanhã, camaradas é um livro que, desde o primeiro parágrafo, conta dando a ver, como se a linguagem desencadeasse imagens na mente de quem lê. Quer isto dizer que as descrições e certos aspectos da própria maneira de contar produzem efeitos de visualização, criam “climas” que podemos associar à pintura, mas sobretudo ao cinema, fazendo pensar de forma particularmente nítida na montagem cinematográfica. Pode pois dizer-se que de certa maneira é como se o texto desejasse ou antecipasse a sua transposição para outro tipo de imagens que não as imagens verbais.

Quando o pintor Rogério Ribeiro, no posfácio do seu livro 47 Ilustrações para o romance de Manuel Tiago Até amanhã, camaradas, nos relata como se encontrou com o livro e como foi trabalhando, ele próprio dá conta dessa espécie de atracção mútua entre as imagens que ele vê sugeridas pelas palavras e aquelas que ele virá a pintar.

Dois outros grandes campos técnicos e artísticos que produzem imagens são a fotografia e o cinema, que enquanto arte de imagens em movimento, das formas do tempo e da duração, gerou um campo de interacção com as várias formas da narrativa literária, do conto ao romance.

Dou apenas um exemplo, que se pode desdobrar, daquilo que motiva a interacção entre estas duas artes. O contar, ou a narração, está sempre obrigado à linearidade temporal, embora tente constantemente superá-la. Há várias maneiras de tentar fugir a essa linha do tempo: quer antecipando acontecimentos que só mais tarde terão lugar na história contada, quer recordando acontecimentos muito anteriores àqueles que estão a certa altura a ser contados. Conhecemos esta recordação que interrompe a ordem temporal sobretudo pelo nome que ela recebeu no cinema – é o flashback. Ora isso já a narrativa literária (não só o romance, mas o próprio poema épico) o pratica desde há muito, e tem nos estudos sobre ela um nome técnico (que não vem agora ao caso). É, entretanto, provável que o cinema tenha agilizado e multiplicado as funções do flashback. Outro problema com a linearidade do tempo que qualquer destas duas artes teve que enfrentar e de “resolver” de formas várias é o problema (ou uma certa impossibilidade) de contar em simultâneo acções simultâneas. Este problema torna-se ainda mais nítido quando a simultaneidade das acções contadas se liga com o facto de estarmos perante narrativas (literária e cinematográfica) de herói colectivo. Sabemos que a ficção televisiva, tal como o cinema, é tendencialmente uma arte de produção colectiva, o que não exclui a noção de autoria, mas a recoloca de tal maneira que a certa altura houve quem tivesse sentido a necessidade de inventar a expressão “cinema de autor”, para distinguir as obras assim designadas de outras que seriam produtos industriais, em que o realizador não seria em plenitude o seu autor.

A primeira observação que farei consiste em tomar como simbólicos alguns factos (e incertezas). A série é realizada por Joaquim Leitão, a partir de um argumento escrito por um outro realizador de cinema, Luís Filipe Rocha (que não sei bem porque terá desistido da realização), sobre o livro de Manuel Tiago (que sabemos ser o pseudónimo literário de Álvaro Cunhal), e produzida por Tino Navarro, cujo empenho terá sido fundamental para a concretização do projecto. Quer o autor do argumento quer o realizador do filme terão conversado com o autor do livro. Para além disso, há a música de Luís Cília e a intervenção de inúmeros e indispensáveis técnicos, actores e figurantes. Sem apagar o papel de Joaquim Leitão, é para mim uma tentação irresistível dizer que estamos, neste caso, perante uma espécie de autoria colectiva que parece corresponder a um aspecto da autoria do livro. Quando o líamos sob um nome de autor que não designava uma pessoa identificada, essa não identificação podia ser tomada como produzindo um efeito de anonimato, ou de um pseudónimo ditado pela óbvia clandestinidade do seu autor, ou como sugerindo precisamente uma autoria colectiva, pelo menos num plano alegórico. A revelação do nome que o pseudónimo escondia e a manutenção desse pseudónimo em edições do mesmo livro e em obras posteriores recolocam a questão, mas não apagam esse efeito sugerido. Esta “autoria colectiva” corresponderia, então, simbolicamente ao facto deste romance ser não só um dos poucos romances de herói colectivo na literatura portuguesa, mas ser também um dos poucos romances que se concentra expressamente sobre a acção e a luta de um colectivo de indivíduos, militantes comunistas, que dedicam a sua vida a organizar, com outros, a luta económica e social e a projectar o seu sentido e alcance políticos.

As reacções escritas que conheço condideram-na a melhor série de ficção produzida para a televisão portuguesa. Não podendo fazer a comparação, posso pelo menos partilhar do juízo de que é muito boa a sua qualidade enquanto obra autónoma.

O primeiro aspecto a destacar é o da agilidade narrativa com que se procede à narração das acções simultâneas e o modo como se constrói a diferença rítmica que marca as três grandes “sequências” da matéria narrativa: a da acção organizativa e de preparação da greve; a da realização desta e das marchas da fome; e finalmente a da repressão e da reorganização.

A primeira “sequência” da acção narrada, por exemplo, punha problemas especiais, designadamente o da modulação do tempo narrativo, bem como o da compreensão dos próprios acontecimentos, por exemplo, das discussões sobre a acção a desenvolver ou não nas praças de jorna. Uma opção que tivesse sido mais explicativa, procurando compensar o previsível efeito de estranheza gerado em espectadores que não conhecem aquele tipo de organização, de funcionamento e de acções, arriscar-se-ia a ser um fracasso estético. A opção feita pela montagem de fragmentos ou movimentos parcelares e pela elipse, que apenas sugere ou dá breves indicações sobre aquilo que representa, exigindo maior atenção do espectador, foi do ponto de vista artístico a solução justa.

Um outro plano que me parece de grande acerto e qualidade é o da escolha e direcção de actores, bem como o do seu desempenho. No tipo de romance que esta série adapta (tal como aliás em outros géneros e subgéneros narrativos, mas é deste que estamos agora a tratar) não podemos esperar certas formas de construir a complexidade psicológica das personagens, porque essas formas não fazem parte das convenções e das componentes estruturais desses géneros. Entretanto, sempre li como uma das qualidades do romance a capacidade de, em poucos traços, conseguir individuar a personagem no colectivo. Sempre me pareceu que, desde logo nas personagens mais presentes, o romance se preocupava em distingui-los, até nos seus próprios trajectos e não os amalgamar num suposto militante-tipo ou tipo de militante. Um dos casos mais nítidos será talvez o de Paulo, alguém por quem quase não dávamos e que nos surpreende (assim como a si próprio e aos seus camaradas), quando na “sequência” final da narrativa revela qualidades que não lhe conhecíamos. Um outro seria o caso de Afonso, que vai mudando com as situações e a acção.

Ora esta narrativa fílmica, jogando com a sua própria diferença em relação à literatura, consegue tornar mais perceptível a distinção ou a singularização das personagens, que vem do romance. Porque vemos o corpo e ouvimos a voz dos actores, vamos observando a sua maneira de andar, os seus gestos e o seu jogo fisionómico. Por exemplo, a escolha dos actores que fazem os papéis de Ramos, de Afonso e de Paulo, assim como as maneiras como eles representam marcam à partida e sustentam ao longo dos episódios essa inapagável individualização das personagens.

A série joga também de forma segura e sugestiva com o tratamento da luz e da cor de modo a multiplicar as diferenças de espaço, de situação e de ambiente – diferenças entre as estações do ano, entre exteriores e interiores, urbanos e rurais.

Sem ênfase demagógica, a série expõe em “flashes” articulados a acção de pessoas comuns que configuram, num dado período histórico de referência, esse singular empreendimento histórico, político e cultural que é o Partido Comunista Português.

Ora isto custa ainda muito a alguma gente, que por isso faz por esquecer ou opta por desfigurar aquilo que não pode ser apagado. O esquecimento e a desfiguração podem ser mostrados a partir de um só exemplo. Refiro-me às leituras que, com alguns matizes, procuram no livro a personagem ou personagens que seriam o auto-retrato e a representação do pensamento do seu autor. Uma variante desta leitura foi desta vez a de Cintra Torres, mas já há anos foi a leitura de outros.

Num texto publicado como carta do leitor, no jornal O Público de 11 de Fevereiro passado, Carina Infante do Carmo descreve acertadamente o que marca a leitura de Cintra Torres: uma orientação “biografista e inverificável” e “a estranheza incomodada pela sobrevivência do livro”. É justamente sobre a questão da ficção que terminarei. Compreende-se que o efeito de representação de uma dada realidade seja neste livro tão forte que ponha certos leitores à procura de identificar pessoas sob o nome de determinadas personagens; mas isso não só rasura a dimensão inescapavelmente ficcional do romance, como pode aparecer, mais do que como mera curiosidade, como instrumentalização ideológica do livro para caricaturar a ideologia do seu autor. Rasurar a ficção significa aqui não compreender (ou não querer compreender) que, mesmo neste tipo de ficção realista ou sobretudo nele, uma personagem pode ser um feixe de qualidades atribuíveis a diferentes pessoas singulares. Significa não querer compreender que o efeito de presença de um autor no seu livro é tendencialmente muito mais esquivo e disseminado.

Repare-se que Vaz, previamente reduzido ao estereótipo a combater, tem sido insistentemente a personagem que certa crítica tende a eleger como cumprindo o papel de porta-voz do autor do livro ou o de modelo ou ideal de militante que ele defenderia. Ora, a estrutura do herói colectivo é, neste livro, suficientemente flexível para individuar as personagens e, nesse sentido a polarização em Vaz não só destrói a multipolaridade, mas falha, também, de forma irremediavelmente errada, a importância de uma personagem como Paulo e, no fundo de todas as personagens que vão “crescendo” ao longo da acção. Por outro lado, mesmo jogando o jogo das identificações, podemos argumentar que Vaz é construído por vários traços, alguns dos quais podemos relacionar (através de algumas semelhanças aproximativas e informações verificáveis) com alguns dados da biografia de Soeiro Pereira Gomes. No romance, Vaz, que sabemos estar doente e, pelos sintomas que apresenta, podemos supor tuberculoso, desaparece completamente. Ele é por outro lado o protagonista (com Ramos) da aplicação da orientação definida sobre as praças de jorna. Ora, Soeiro Pereira Gomes morre tuberculoso em 1949, poucos anos depois das greves e marchas da fome que podem ser em parte as que são referidas no romance e é o autor de um artigo publicado no Militante onde se define a orientação que viera a ser aprovada pela Direcção do Partido sobre a acção a desenvolver nas praças de jorna. Mas mesmo estas correspondências são fruto da reconfiguração ficcional e não me levam a dizer que Vaz é uma representação de Soeiro Pereira Gomes.

Aqui chegados, direi que a série transpõe bem o romance, o que não significa que “esteja lá tudo”, ou que não haja momentos inexistentes no romance. Mas esse é o direito de quem constrói a sua invenção sobre a invenção de um outro. O rigor de que falo tem a ver com o facto de que a série compreendeu ou teve a intuição de que a história contada é uma parte daquilo a que chamarei a pré-história do processo da revolução portuguesa, que designamos pela data: 25 de Abril de 1974.

«O Militante» - N.º 275 Março/Abril 2005