Constituição europeia e referendo |
Membro do Comité Central do PCP e deputada
no Parlamento Europeu
Apesar da crise política e das próximas eleições terem atirado para segundo plano a questão do referendo sobre o novo Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa, a verdade é que este problema existe e a Assembleia da República, com a sua nova composição, após as eleições de 20 de Fevereiro, vai ter que o ratificar, e, certamente, decidir sobre a forma de realizar um possível referendo, antes da sua votação pelos deputados.
Contra a dita constituição europeia
Como é conhecido, o novo Tratado constitucional foi assinado a 29 de Outubro de 2004, em Roma, pelos governantes dos 25 Estados-membros da União Europeia.
Ainda que em breves comentários, aqui se resumem as razões fundamentais da nossa oposição a esta (mal)dita constituição europeia.
A primeira razão resulta deste Tratado abrir caminho à criação futura de um super-estado europeu, desde logo, como o próprio título de constituição europeia indicia, que, embora não o sendo de facto, não é inocente. Muitas disposições apontam claramente para isso: a atribuição da personalidade jurídica à União; a primazia do direito comunitário sobre o direito nacional (incluindo o constitucional); a criação de cargos de presidente e procurador europeu, a criação de um ministro dos negócios estrangeiros da União e de um serviço diplomático europeu, com a intenção de anular ou reduzir drasticamente as políticas externas nacionais; a possibilidade de preterir interesses fundamentais de um Estado em benefício dos interesses de uma maioria de Estados.
A segunda razão deve-se ao reforço do centralismo e da burocracia europeia, com a insistência nas políticas comuns, que se tornam únicas para todos os Estados que são membros da União, independentemente das suas situações concretas. Deste modo, como os portugueses já tão bem conhecem com a prática destas políticas, seja na agricultura, seja nas pescas, ou com as imposições estúpidas e cegas do Pacto de Estabilidade e nas políticas monetária e cambial únicas dos países da zona euro que estão a destruir o aparelho produtivo português.
Com este novo Tratado, aumentam as políticas comuns, aumenta em mais de trinta o número de decisões que deixam de ser tomadas por unanimidade e passam a sê-lo apenas por maioria qualificada, provocando um efeito centralizador com consequências muito nefastas para os países de economia mais frágil e maiores debilidades sociais como Portugal. É que, deixando de vigorar o princípio da unanimidade, um Estado não pode vetar as decisões. O direito de veto, nestes casos, apenas é concedido a três ou quatro grandes países, os quais podem vetar as decisões da maioria dos pequenos e médios. E assim, cabendo a iniciativa legislativa à Comissão Europeia, esta deixará de ter em conta os interesses específicos e as opiniões de pequenos e médios países, pelo que Portugal ficará cada vez mais periférico e com maiores dificuldades de decidir sobre o seu próprio destino, a sua produção, a defesa dos interesses produtivos próprios, o desenvolvimento e progresso social.
A terceira razão, como também refere João Ferreira do Amaral, é que a dita constituição europeia é de rejeitar porque «degrada Portugal do estatuto de Estado independente, com o seu papel reconhecido na comunidade internacional, para o de região (pouco) autónoma da Europa». Se as normas do novo Tratado, da dita constituição europeia e outra legislação comunitária subsequente, se vão sobrepor à Constituição da República Portuguesa, de facto, esta contará cada vez menos, e Portugal estará cada vez mais subordinado a tudo o que outros decidirem sem o nosso consentimento, sem a nossa opinião.
Portugal deixará de ter voz autónoma nos organismos internacionais, alargar-se-á a situação que neste momento já existe quanto à Organização Mundial de Comércio (OMC), para já não falar do Banco Central Europeu, onde a participação portuguesa já está reduzida ao mínimo por acordo dos mesmos partidos (PS, PSD e CDS) que são responsáveis por esta degradação do estatuto de Portugal independente, que corrói a nossa economia, agrava o desemprego e precariza cada vez mais o emprego.
A ratificação necessária do novo Tratado
Agora, decorre o período de ratificação em cada um dos 25 países, sem o que não é possível a sua entrada em vigor. Em diversos, está prevista a realização de referendos, permitindo que os cidadãos dêem a sua opinião sobre o novo Tratado, como já aconteceu, em momentos anteriores, seja sobre a própria adesão, como na Noruega, que optou por não aderir, seja sobre o Tratado de Maastrich e a moeda única, onde houve diferentes posições, incluindo a repetição do não à adesão da Suécia ao euro, em 2003.
Ao contrário de Portugal, em alguns países o debate está a fazer-se com grande profundidade, como em França, onde o PS francês realizou um referendo interno e cerca de 43% dos seus militantes votaram NÃO ao dito Tratado constitucional.
Que referendo em Portugal?
Em Portugal, o bloco político dos fiéis apoiantes da integração europeia tem recusado sistematicamente qualquer referendo. Inclusivamente, tem rejeitado todas as tentativas de criar as condições constitucionais para que seja possível realizar um referendo sobre tratados europeus. O PCP tem apresentado propostas nas diversas revisões constitucionais (1992, 1997, 2001 e 2004) para que passasse a ser constitucionalmente possível referendar, em termos globais, a vinculação de Portugal a tratados de integração europeia, de forma a impedir que continue uma política de factos consumados, sem qualquer debate público pluralista e transparente, e sem que os cidadãos se possam pronunciar sobre os mesmos. Mas sempre se opuseram, terminantemente, o PS e o PSD, a que se juntou o CDS na revisão de Abril de 2004, já a pensar no tratado que agora está para ratificação.
É neste quadro que surge, em 18 de Novembro passado, na Assembleia da República, uma pergunta para um referendo em torno da chamada constituição europeia. Mas aquilo que poderia ter sido um acto positivo, foi, de facto, apenas uma farsa. É que se trata de uma pergunta confusa, parcial e incompreensível para a generalidade da população.
De facto, a pergunta aprovada na Assembleia da República - «Concorda com a Carta dos Direitos Fundamentais, a regra das votações por maioria qualificada e o novo quadro institucional da União Europeia, nos termos constantes da Constituição para a Europa?» - é de uma tal complexidade que a torna incompreensível, além da clara e objectiva manipulação que a primeira parte da pergunta indicia.
Esta questão, que, na realidade, inclui três perguntas, sem ligação directa entre si, sobre aspectos muito parcelares, exige um conhecimento comparativo e pormenorizado dos Tratados, o que a generalidade da população não tem.
Mas, para além disso, deixa de fora questões essenciais, designadamente: a atribuição da personalidade jurídica à União, as competências exclusivas e partilhadas, onde se insere a problemática central do primado do direito, incluindo o constitucional, e, por exemplo, toda a polémica recente da competência exclusiva na conservação dos recursos biológicos do mar, no âmbito da política comum das pescas.
Ficam igualmente de fora questões tão importantes como as políticas e acções internas, incluindo a política de concorrência e as privatizações que lhe aparecem associadas; o espaço de liberdade, segurança e justiça, as restrições das liberdades e os ataques aos direitos dos imigrantes; a política externa e de segurança comum e a política comercial comum. Fica também de fora toda a problemática em torno da cooperações reforçadas, que pretende acelerar a centralização do poder nas mãos dos países mais poderosos.
Ora, nestes temas estão incluídos aspectos fundamentais, com consequências especialmente perigosas para a defesa dos interesses portugueses, como os têxteis, as pescas, a agricultura, as deslocalizações de multinacionais, a vinculação a uma política externa eventualmente belicista, ou, ainda, situações tão importantes como a inclusão do país no exército europeu e o aprofundamento do neoliberalismo.
Assim, resta saber o que pretendem o PSD, o PS, e o CDS com a tal pergunta. Baralhar os portugueses? Desmobilizar as pessoas da participação no referendo? Provocar a declaração de inconstitucionalidade, para que não haja qualquer referendo? Os próximos tempos vão clarificar um pouco os seus objectivos. Mas, para já, trata-se de uma autêntica farsa, que pode ter implícita uma verdadeira fraude face à vontade manifesta da maioria dos portugueses se querer pronunciar, através de um referendo, sobre o conteúdo global da dita constituição europeia, de uma forma clara e precisa. Para o que bastaria ter aceite as propostas que o PCP tem apresentado, incluindo na última revisão constitucional, quando, em vésperas do 25 de Abril de 1974, PS, PSD e CDS negociaram e aprovaram uma revisão constitucional com o objectivo expresso de permitir que o novo Tratado constitucional pudesse ser subscrito por Portugal, abrindo caminho ao primado do direito comunitário sobre o direito constitucional português.
A dissolução da Assembleia da República e a eventual queda da pergunta referendária, não resolve a questão de fundo da ratificação da (mal) dita constituição europeia. É que, após as eleições legislativas de 20 de Fevereiro, a questão volta a colocar-se com a mesma premência. E, assim, aqui ficam três questões essenciais:
- Vai ou não realizar-se um referendo antes da ratificação do novo Tratado Constitucional?
- Qual o valor jurídico do referendo, se, de facto, este for decidido?
- Qual a pergunta que irá ser referendada?
Recorde-se que o PS recusou uma revisão constitucional "cirúrgica", como referiu Vítor Dias no 17º Congresso do PCP, que permitisse a pergunta que se impõe, ou seja, saber se os portugueses concordam "com a vinculação de Portugal ao novo Tratado que institui uma Constituição para a União Europeia". O PSD até manifestou abertura para a referida revisão constitucional, talvez porque sabia que o PS não a aceitava.
Após as próximas eleições de 20 de Fevereiro, tudo volta a estar em aberto, sendo certo que não se pode aceitar a pergunta enganadora e enganosa com a armadilha da Carta dos Direitos Fundamentais que o PS propôs e o PSD e o CDS aceitaram. Não se pode aceitar uma farsa de referendo.
A luta contra o novo Tratado
e por um verdadeiro referendo em Portugal
Por isso, a luta do esclarecimento sobre o que se está a passar na União Europeia é da maior importância para impedir que se subalternize ainda mais o nosso País, se percam mecanismos fundamentais de defesa dos interesses nacionais nas mais diversas áreas, designadamente produtivas, se mantenham alavancas fundamentais para a defesa do nosso futuro comum, numa Europa que queremos mais solidária, mais democrática, empenhada na coesão económica e social, no desenvolvimento e na paz.
Por isso, também, é importante continuar a pugnar por um verdadeiro referendo com a pergunta global que o PCP propôs, que respeite a inteligência dos portugueses e permita uma resposta clara e sem equívocos sobre este inadmissível novo Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa.
«O Militante» - N.º 274 Janeiro/Fevereiro de 2005