Transportes, problema não resolvido (*)



Membro da CAE

Anunciaram-se novos e brutais aumentos de preços nos transportes públicos da Grande Lisboa. Todos os operadores – Carris, Metro, Transtejo, CP, etc. – foram beneficiados (beneficiados?) com esses aumentos. No entanto, suspeitamos que eles não sairão tão beneficiados assim com tais aumentos de tarifário devido à elasticidade-preço da procura. Muito menos, obviamente, sairão beneficiados os utentes. E ainda menos o tráfego urbano, sempre congestionado. E nem, tão pouco, em termos energéticos o país será beneficiado.

Demonstrar as afirmações acima exige um certo nível de conhecimento das questões envolvidas, todas elas com muitos interfaces. Como método de abordagem o melhor é, sempre, ir das questões gerais às particulares. Se não tivermos previamente equacionadas e resolvidas as questões de ordem geral dificilmente (só por acaso) poderão ser resolvidas as questões particulares e pontuais, como as dos transportes em Lisboa. Comecemos portanto pelas questões de ordem geral.

Os transportes constituem um dos mais graves problemas da economia portuguesa, embora tal problema esteja ainda pouco consciencializado. Portugal tem um défice enorme na balança de mercadorias. Cerca de um quarto deste défice refere-se à factura energética e, nomeadamente, à factura petrolífera (ramas+refinados). Os dados abaixo são elucidativos:

 
Défice balança de
mercadorias (euros)
Importações petrolíferas
(euros)
Proporção do
défice total
1999
12 943,5
2000
15 017,0
3 595
23,9%
2001
14 866,5
3 298
22,2%
2002
12 832,2
2 913
22,7%

Fontes: Banco de Portugal e DGE.

Esta enorme factura petrolífera só não foi ainda maior porque Portugal beneficiou-se com a desvalorização do dólar americano em relação ao euro. Entretanto, em quantidades físicas (uns 16 milhões de toneladas/ano) as importações mantêm-se constantes, em consequência da política generalizada de incremento dos transportes em veículos particulares (desenvolvida a partir do Governo Cavaco Silva) em detrimento do transporte público. Por isso, a este enorme défice na importação de combustíveis ainda é preciso acrescentar o défice constante na balança comercial com a importação de veículos automóveis, que em 2000 montou a 2,52 mil milhões de euros (6,09 de importações e 3,57 de exportações).

É bem sabido que o dispêndio energético por passageiro é muitíssimo mais elevado num automóvel particular do que num meio de transporte público (autocarro, metro, ferroviário, etc.). Ora, o parque automóvel português não tem vindo senão a aumentar e hoje atinge cerca de 5 milhões de viaturas das quais apenas umas poucas dezenas de milhares (30 mil?) são autocarros. Pode-se dizer que Portugal já superou o limite máximo em termos de parque automóvel, com um veículo para cada dois habitantes.

Esta situação aberrante reflecte-se em aumentos do consumo energético desproporcionais ao crescimento da economia portuguesa. Verifica-se que o aumento do consumo de energia final, tanto no sector industrial como no terciário+doméstico, tem grosso modo acompanhado o crescimento do PIB. Mas no sector dos transportes o consumo de energia final disparou em flecha, como se pode verificar na tabela abaixo:

Quadro I

Consumo de energia final (10 6 tep)
1985
(10 6 tep)
1999
(10 6 tep)
Acréscimo 99/85
Indústria
3,7 (39%)
5,3 (33%)
43,20%
Transporte
2,7 (28%)
6,0 (38%)
122,20%
Terciário-doméstico
3,2 (34%)
4,7 (29%)
46,90%
Total
9,5 (100%)
16 (100%)
68,40%
Fonte: Anual Energy Review, European Commission, January 2002.

Esta tabela mostra também que o consumo do sector dos transportes – 6 milhões de toneladas equivalentes de petróleo por ano – já superou o da indústria. Ou seja, gastamos mais a movimentar (cargas e passageiros) do que a produzir.

Tal situação reflecte-se ainda na intensidade energética da economia portuguesa, ou seja, no ratio entre o consumo energético e o PIB. Verifica-se que no período 1985-1999 os sectores industriais e terciário-doméstico comportaram-se razoavelmente e conseguiram reduzir o seu consumo de energia. No entanto, o sector dos transportes aumentou o seu consumo relativo. A tabela abaixo demonstra isso:

Quadro II

Intensidade energética
(tep/106 euros de 1990)
1985 1999 Acréscimo 99/85
Indústria
88,7
77,1
-13,10%
Transporte
64
88,6
38,40%
Terciário-doméstico
76,8
351,3
-10,90%
Total
297,2
351,3
18,20%
Fonte: Anual Energy Review, European Commission, January 2002.

Esta tabela mostra também que o consumo do sector dos transportes – 6 milhões de toneladas equivalentes de petróleo por ano – já superou o da indústria. Ou seja, gastamos mais a movimentar (cargas e passageiros) do que a produzir.

Tal situação reflecte-se ainda na intensidade energética da economia portuguesa, ou seja, no ratio entre o consumo energético e o PIB. Verifica-se que no período 1985-1999 os sectores industriais e terciário-doméstico comportaram-se razoavelmente e conseguiram reduzir o seu consumo de energia. No entanto, o sector dos transportes aumentou o seu consumo relativo. A tabela abaixo demonstra isso:

Intensidade energética
(tep/106 euros de 1990)
1985
1999
Acréscimo 99/85
Indústria
88,7
77,1
-13,10%
Transporte
64
88,6
38,40%
Terciário-doméstico
76,8
351,3
-10,90%
Total
297,2
351,3
18,20%
Fonte: Anual Energy Review, European Commission, January 2002.

Diga-se de passagem que a generalidade dos países da UE tem conseguido reduzir as suas intensidades energéticas totais. O comportamento energético português vai, portanto, na contracorrente da tendência europeia. É realmente estranho que pouco se fale disso aqui em Portugal.

Esta situação nos transportes é lesiva não só do ponto de vista da energia e da balança de pagamentos como também da qualidade de vida dos portugueses. O congestionamento de Lisboa e Porto prejudica severamente os utentes em termos de dispêndio de tempo (em Lisboa há um movimento pendular de 250 mil viaturas por dia, entram na cidade de manhã e saem ao fim da tarde) e também em termos de emissões poluentes. Vê-se, pois, porque 65% da energia consumida em Lisboa município no ano de 1996 foram com transporte terrestre. Isso significou um gasto da ordem das 497 mil toneladas de equivalente petróleo, dos quais 283 mil foram em gasolina e 208 mil em gasóleo.

A situação de facto aqui descrita vem agravar as próprias soluções urbanísticas que bem ou mal, mais mal do que bem, as autarquias e o governo central vão executando ao acaso e sem planeamento. Alguns exemplos a esmo de más soluções: a triplicação das pistas IC-19 (Lisboa-Sintra), que já estarão congestionadas no próprio dia da inauguração; a construção de caríssimos parqueamentos subterrâneos na baixa de Lisboa, atraindo mais carros para ali; o túnel das Amoreiras (orçamentado em 25 milhões de euros) que, a ir por diante, poderá agravar problemas já existentes; o caríssimo metro elevado de Oeiras, que nada resolve e gastou recursos que poderiam ser aplicados em boas soluções; etc. Em resumo as autarquias e o governo central quando actuam muitas vezes fazem-no mal e desperdiçam dinheiros públicos.

Nada disto é sustentável. Vivemos num mundo precário, mas a força poderosa dos lobbies faz todo o possível para fazer esquecer que estamos num fim de era: o da era do petróleo. Como é mal e insuficientemente sabido, o pico da Curva de Hubbert (1) já foi atingido e o abastecimento petrolífero planetário irá inexoravelmente reduzir-se ao longo dos próximos 40 ou 50 anos (ver http://resistir.info/jf/petroleo.html). E, consequentemente, o preço do barril irá aumentar. É fisicamente impossível sustentar tal crescimento por um tempo indefinido.

O que fazer?

Uma vez traçado este panorama geral, ainda que de forma muito sumária, há que colocar a pergunta: como sair de uma situação péssima e insustentável para uma situação pelo menos razoável (pois o óptimo será impossível a curto prazo). As respostas têm de ser por partes. Em primeiro lugar, e a nível de governo central, para soluções sérias e a longo prazo haveria que relançar o planeamento energético e o planeamento dos transportes. Actualmente não existem nem um nem outro. O Plano Energético Nacional foi extinto e os gabinetes onde funcionava foram entregues a outra entidade. Quanto ao planeamento dos transportes terrestres, ele ficou prejudicado com a privatização selvagem da Rodoviária Nacional, que pulverizou o sector entre operadores privados (muitas vezes fracos financeiramente). Para a ideologia que domina neste governo, o deus mercado seria suficiente para resolver todos os problemas...

Neste momento o aparelho de Estado português enfrenta um grave problema institucional, que é o da pulverização de competências. Já não existe nenhum organismo que por si só tenha poderes suficientes para decidir e fazer coisas novas. Isto, conjugado com os inevitáveis lobbies de defesa de interesses que se seguiram às privatizações, conduz a uma paralisação geral. Basta ver por exemplo as Autoridades Metropolitanas de Transporte de Lisboa e do Porto, que nunca saíram do papel. Ou então a "dança" de pacotes accionários nas antigas empresas estatais de energia, em que os interesses poderosos do capital financeiro (nacional e estrangeiro) dão as cartas – uma verdadeira caricatura de uma política energética que não existe.

Como se depreende, a boa solução – o planeamento – exige um outro governo e uma outra política. No entanto, enquanto isso não for possível, há certos princípios gerais que deveriam ser defendidos a fim de minimizar o caos do sector de transportes. Poderiam ser avançadas soluções locais e pontuais, com imaginação e por técnicos de bom nível, que se conformassem a esses princípios gerais. As próprias políticas tarifárias, com sistemas modernos de bilhética, deveriam ser enformadas por essa filosofia geral.

Quais são esses, digamos, princípios gerais? Sem a pretensão de esgotar o problema, atrevemo-nos a enunciar alguns:

A questão tarifária

Uma vez enunciados estes princípios gerais, convém falar da questão tarifária. Se abordarmos a questão na óptica das empresas operadoras de transporte, verificar-se-á que grande parte delas têm uma situação financeira periclitante. Estas empresas saídas do processo de privatização são fracas e descapitalizadas. Muitas delas (sobretudo na província) sobrevivem porque compram autocarros velhos na Alemanha e pagam salários baixos aos seus funcionários. Elas precisam dos aumentos tarifários para cobrirem os seus custos de exploração e não conseguem prestar um bom serviço aos utentes.

Entretanto, numa óptica macroeconómica a questão tarifária muda de aparência. Os combustíveis gastos pelos quase 5 milhões de automóveis privados que circulam em Portugal constituem um ónus pesado sobre a economia portuguesa. O problema consiste, portanto, em transferir este meio de transporte energética e financeiramente caro – o automóvel – para aquele que é energética e financeiramente mais barato – o transporte público. Se o assunto for abordado nesta óptica macro, a questão dos preços muda de figura. A nosso ver, esta é a óptica correcta em que o assunto deve ser tratado: a da economia nacional. Se nos afastarmos disso, entramos no jogo de pressões e contrapressões dos operadores de transporte público, sempre aflitos em termos financeiros.

Assim, o problema dos preços deve ser colocado a nível geral. Se o assunto for abordado a esse nível, como se se fizesse um zoom, há uma série de consequências que daí decorrem. Dessa forma, será correcto onerar os combustíveis para o privado e desonerá-los para os concessionários de transportes públicos (preços especiais de gasóleo para os mesmos, por exemplo, à semelhança do gasóleo verde para os agricultores). Subsídios indiretos ou directos que, a nosso ver, podem ser correctos. Além disso, será necessário forçar os operadores de transporte a saírem da sua posição passiva actual. Eles têm necessariamente de enveredar pelo caminho da intermodalidade, dos combustíveis alternativos (mais baratos que o gasóleo), da manutenção do passe social em condições favoráveis aos utentes, etc. Quanto a este último ponto, o Estado deveria intervir para resolver a questão da repartição das receitas do passe social, tornada espinhosa devido às privatizações.

Na óptica mesquinha de cada um dos intervenientes neste processo, a solução para o problema dos transportes é praticamente insolúvel. Assim, na óptica do Ministério das Finanças, a preocupação é com a arrecadação de impostos (quanto mais melhor); na óptica dos operadores de transportes públicos, a óptica é sobretudo com a cobertura dos custos de exploração; na óptica dos utentes, a preocupação é com a qualidade do serviço. Mas a defesa dos interesses de cada um destes intervenientes não significa que se chegue à boa solução em termos de economia nacional. Neste caso, a soma dos óptimos parciais não resultam no óptimo global. Atingir o óptimo global seria o papel do Estado, um Estado que anda cada vez mais esvanecente nestes tempos de neoliberalismo.

(1) Ver O Militante, Nº 258, Maio-Junho/2002.

(*) Este artigo foi elaborado em Março de 2004; ulteriores evoluções só reforçaram a sua actualidade.

«O Militante» - N.º 273 Novembro/Dezembro de 2004