Sobre a arrumação e correlação
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A questão da arrumação e da correlação das forças de classe reveste-se, para os comunistas, de uma importância de princípio.
O domínio da teoria marxista da luta de classes como motor do processo de transformação da sociedade tem de ser acompanhado do conhecimento, em concreto, da composição de classe da sociedade e das principais tendências da sua evolução, tanto no plano da situação objectiva como no plano subjectivo, da consciência de classe. Isso é da maior importância para o acerto das análises e decisões para o desenvolvimento da luta.
Por isso O Militante valoriza muito o que a este respeito está proposto no projecto de Teses/Resolução Política para o XVII Congresso, actualmente em discussão no Partido [ponto 3.1., pág. 44 a 49].
Este artigo – do camarada Manuel Brotas, membro da Direcção da Cidade de Lisboa do PCP, em ligação com o Grupo de Trabalho para as Questões dos Trabalhadores e da Realidade Social – visa justamente chamar a atenção para este tema das Teses/Resolução Política e promover o debate e as contribuições dos militantes para o aperfeiçoamento do seu conteúdo.
A análise crítica de uma multiplicidade de fontes estatísticas, de que sobressaem os recenseamentos gerais da população, permite-nos formar uma imagem aproximada da composição social da sociedade portuguesa.
É bem sabido que na vida social, mais ainda que na natureza, não há fronteiras rígidas, sendo frequentemente muito difícil, e por vezes impossível, encaixar determinados elementos nos subconjuntos sociais considerados.
Mas, dada a natureza capitalista da formação económica e social específica que é a sociedade portuguesa deste início de século, podemos fazer um esforço, sempre aproximado, mas tão próximo da realidade quanto formos capazes, de arrumar a população, e antes de mais a população com actividade económica, em quatro grandes sectores sociais: as duas classes fundamentais, a burguesia e a classe operária, e dois agrupamentos sociais intermédios, as camadas intermédias assalariadas e as camadas intermédias não assalariadas.
Desde já, duas notas relacionadas. A primeira, para explicar que, como é extraordinariamente difícil distinguir na informação estatística os micro-empresários que pertencem às camadas inferiores da burguesia e os pequeníssimos empregadores que já se enquadram na pequena-burguesia, é preferível considerar estes dois segmentos englobados no agrupamento das camadas intermédias não assalariadas. A segunda, para explicar que as camadas intermédias, em particular as camadas intermédias não assalariadas, assim se designam, não por intermediarem a burguesia e o proletariado, mas por se situarem entre a grande burguesia e o proletariado, os dois pólos aglutinadores da vida e lutas sociais.
Na primeira parte deste artigo vamos cingir-nos a estas “quatro grandes fatias do bolo social”, mas antes de passar a uma breve descrição das respectivas composições e evoluções, é importante referir que a população total residente em território português, nacionais e estrangeiros, aumentou nos dez anos que medeiam os censos de 1991 e 2001 cerca de 5%, para 10,356 milhões de habitantes; que a população activa aumentou cerca de 13,5%, tendo a taxa de actividade crescido de 44,6% para 48,2%; e que o assalariamento progrediu ainda mais rápido, tendo o número de trabalhadores por conta de outrem aumentado cerca de 20%, para 3,794 milhões.
A classe operária
No que respeita à classe operária é preciso ter consciência de que, a par do proletariado tradicional da indústria, agricultura e pescas, nela se englobam hoje muitos milhares de efectivos que, numa visão clássica, mais restritiva e desactualizada, seriam relutantemente considerados como operários. Isto não deve surpreender, pois a dificuldade começa logo com muitos destes trabalhadores a não se reconhecerem nessa condição. E no entanto... vivem da venda da sua força de trabalho, criam mais-valia, não desempenham funções de extorsão da mais-valia (por exemplo de direcção superior, de enquadramento ou vigilância dos trabalhadores), inserem a sua actividade no trabalho colectivo que assegura a realização da produção material.
Falamos de uma parte crescente dos trabalhadores dos serviços, no que se pode designar por proletariado dos serviços, e de uma parte também crescente dos assalariados intelectuais e quadros técnicos (no que se poderia talvez designar por proletariado intelectual). Exemplo dos primeiros pode ser um empregado de escritório de um transitário, incumbido de transmitir as ordens de cargas e descargas aos camionistas. Exemplo dos segundos pode ser um engenheiro funcionário de uma construtora civil, que faz o cálculo de estruturas da construção de edifícios.
Se considerarmos restritivamente os operários com emprego na indústria, agricultura e pescas, o seu número, entre os censos de 1991 e 2001, passou de cerca de 1,537 para 1,582 milhões. Mas se considerarmos numa visão mais ampla, integrando a componente dos serviços e parte dos assalariados intelectuais e quadros técnicos, a classe operária, estimada por defeito, deve ter aumentado, no mesmo período, de cerca de 1,845 para 1,985 milhões de assalariados.
A este número há que acrescentar muitas dezenas de milhar de imigrantes clandestinos, parte dos falsos trabalhadores independentes e ligeiramente menos de metade da população desempregada. O que dá um total de, pelo menos, 2,145 milhões de efectivos.
No entanto, a percentagem de operários na população activa, devido ao maior crescimento desta, reduziu-se, entre 1991 e 2001, sempre numa estimativa por defeito, de 45% para 43%. Actualmente, cerca de um em cada dois assalariados é operário.
A classe operária em Portugal apresenta-se assim, à entrada deste novo século, numerosa mas menos representativa no conjunto dos assalariados, mais diversificada étnica e nacionalmente, com cerca de um sétimo de estrangeiros, mais precarizada laboralmente (em 2002, a percentagem de assalariados contratados a prazo era de 21,8%, a mais alta da UE), sem alterações significativas na sua composição de género, com cerca de 33% de mulheres, mais envelhecida, mais mas muito insuficientemente qualificada, menos concentrada, mais heterogénea, com diminuição ligeira do peso dos seus efectivos industriais e diminuição substancial, a caminho de se tornar residual, do peso dos seus efectivos agrícolas e das pescas na população activa.
As camadas intermédias assalariadas
O outro grande sector dos assalariados é o conjunto das camadas intermédias assalariadas, constituídas basicamente por todos os assalariados não operários. Excluem-se os falsos assalariados, que pertencem às camadas superiores da burguesia, como os directores e os membros dos conselhos de administração das grandes empresas, e aqueles que, com funções superiores de direcção e enquadramento, seja nas grandes empresas privadas, seja na administração e nas instituições públicas, são os seus auxiliares directos na manutenção do regime de exploração e respectiva ordem social.
As camadas intermédias assalariadas são muito diferenciadas internamente e integram assalariados com funções de exploração, como gerentes de pequenas empresas, ou de manutenção da ordem social, como agentes de polícia.
Mas incluem fundamentalmente a esmagadora maioria dos assalariados administrativos, do comércio, dos serviços e das profissões intelectuais e científicas. Trabalhadores não intervenientes na produção material, improdutivos de mais-valia, mas que se encontram despojados de meios de trabalho, obrigados a vender a sua força de trabalho, explorados como os operários.
Os efectivos das camadas intermédias, incluindo desempregados, aumentaram perto de meio milhão entre 1991 e 2001, para cerca de 1,820 milhões, representando 44% da massa assalariada e 37% da população activa, excluindo, pela sua especificidade, as forças armadas. Um crescimento superior ao do assalariamento, que traduz a continuada extensão dos serviços pessoais e colectivos, nomeadamente estatais, e as dificuldades crescentes de realização da mais-valia, empolando o sector financeiro e exigindo um destacamento crescente de assalariados para as funções comerciais, de publicidade e administrativas das empresas. Por exemplo, no intervalo dos censos, os assalariados de nível intermédio de serviços financeiros e comerciais em conjunto com os agentes comerciais e corretores assalariados aumentaram mais de duas vezes e meia; igualmente ilustrativo, os assalariados no ramo da publicidade que quase duplicaram.
As condições de vida e de trabalho dos empregados de escritório ou comércio, dos serviços pessoais e gerais, que pertencem na sua grande maioria às camadas intermédias assalariadas, tendem a alinhar-se pelas dos operários em geral. Mesmo subjectivamente, desapareceu em larga medida a presunção de pertencer a uma “classe” à parte. Este é um facto de crucial importância, que vem dar mais substância à política de alianças entre o proletariado e as camadas intermédias.
As camadas intermédias não assalariadas
Fora dos assalariados, as camadas intermédias incluem a pequena-burguesia e camadas inferiores da burguesia. Trata-se de um agrupamento social biclassista:
O tratamento conjunto justifica-se pela imprecisão da linha divisória entre as duas componentes, que não deixa, contudo, de ser uma fronteira de classe, fundamentalmente determinada pela existência e dimensão da contratação de trabalho assalariado. Uma extensa comunidade de interesses une-as, por um lado, na dependência, por outro, no conflito com a burguesia monopolista.
As camadas intermédias não assalariadas, incluindo desempregados, diminuíram um pouco mais de 10%, entre 1991 e 2001, para cerca de 810 milhares de efectivos, numa estimativa por excesso, reduzindo o seu peso na população activa para cerca de 16%. Esquematicamente: duplicou o número de pequenos patrões, que, contando com os desempregados e familiares não remunerados, atingiram cerca de 480 milhares. Em contrapartida, a pequena-burguesia encurtou-se substancialmente, com a sua fracção não empregadora reduzida a metade, menos de 330 milhares. Mesmo tendo presente a indefinição e mobilidade sociais, o intervalo dos censos forneceu uma demonstração concludente da instabilidade social da pequena-burguesia.
O antigo e o recém constituído pequeno patronato depara-se também com a degradação da sua situação social, com a miragem da independência económica a desfazer-se pelos preços praticados, pela regulação comercial, crédito, seguros, fiscalidade, investimento público, apoios comunitários, energia, telecomunicações e transportes sujeitos aos interesses dos grandes grupos económicos e, expressivamente, pela subcontratação e dependência das encomendas desses grupos. Com o franchising, as pequenas empresas transformam-se em meros apêndices das transnacionais. Aprofunda-se a integração do pequeno patronato, em posição subordinada, na actividade do grande capital, por conta de quem explora o trabalho assalariado.
A burguesia
A classe social dominante do regime social é a burguesia, constituída fundamentalmente pelos proprietários dos meios de produção e de troca, que vivem da exploração do trabalho alheio. Compreende os dirigentes e grandes accionistas das empresas e sociedades financeiras; os empresários de todos os sectores e os patrões que empregam trabalho assalariado, salvo quando em número muito reduzido; os especuladores, nomeadamente da bolsa; os grandes detentores de activos financeiros; os grandes promotores e proprietários imobiliários; os grandes proprietários rurais; todos quantos vivem de grandes rendimentos da propriedade ou dispõem de meios para abocanhar fracções significativas da mais-valia produzida socialmente.
Apesar de grande parte pertencer às camadas inferiores da burguesia, os micro-empresários e os pequenos patrões de todas as profissões já se consideraram, englobados com a pequena-burguesia, nas camadas intermédias não assalariadas.
Em contrapartida, considera-se, no âmbito da burguesia, o conjunto dos altos funcionários, como os directores gerais de empresas, os quadros superiores da função pública ou os comandos superiores das forças armadas e de segurança, que, apesar de assalariados, pertencem na realidade à burguesia ou são os seus auxiliares directos.
A burguesia sem o pequeno patronato, conjuntamente com os seus auxiliares directos, aumentou, de 1991 a 2001, em quase metade os seus efectivos, elevando o seu peso na população activa aproximadamente de 1,9% para 2,5%.
Para se ter uma ideia do peso das suas camadas superiores, refira-se que, em 2003, as 1.237 grandes empresas (com pelo menos 250 pessoas ao serviço ou volume de negócios não inferior a 40 milhões de euros), num universo de 347.683 empresas, representavam 48,3% do volume total de negócios.
Mas uma melhor ideia pode ser dada se referirmos que, em 2002, 58 grupos económicos, na sua esmagadora maioria privados ou quase integralmente privatizados, tinham uma facturação equivalente a cerca de 60% do PIB. Os maiores lucros resultam não só de melhorias de produtividade, vantagens de escala, especulações, favorecimento estatal, mas também da efectiva monopolização da economia portuguesa, bem evidenciada na progressiva concentração do volume total de negócios nas grandes empresas.
Acompanhando e impulsionando a terciarização da economia, cresce o poder económico da grande burguesia comercial, bem visível na grande distribuição e no facto da parte das grandes empresas comerciais no volume nacional de negócios ter crescido, entre 1993 e 2001, aproximadamente ao dobro do ritmo da parte das grandes empresas em conjunto. Actualmente, as grandes empresas comerciais representam cerca de 31% e as grandes empresas financeiras cerca de 17% do volume de negócios das grandes empresas.
Os altos dirigentes, os membros dos conselhos de administração, os grandes accionistas dos grandes grupos económicos comandam, em crescente inter-relação e dependência dos estados-maiores das transnacionais estrangeiras, a economia nacional. O grande capital nacional integra-se e funde-se crescentemente com o grande capital transnacional, que acentua o domínio sobre a economia e a sociedade portuguesa. Por isso, a luta contra a burguesia monopolista é também uma luta pela independência e soberania nacionais, capaz de chamar à acção comum sectores da própria burguesia.
Apoiada no reforço do seu poderio económico, a burguesia monopolista acentuou a sua influência na vida social e política, bem expressa na concentração da propriedade dos principais media nacionais em meia dúzia de grandes grupos, com a redução drástica do espaço para a expressão das necessidades e reivindicações sociais.
É esta fracção monopolista da burguesia que constitui o principal inimigo da classe operária e seus aliados, do desenvolvimento e progresso do nosso país.
«O Militante» - N.º 273 Novembro/Dezembro de 2004