Destruir a Palestina |
O Estado de Israel foi fundado em 1948 na sequência de uma guerra que os Israelitas apelidam de Guerra de Independência e os Palestinianos de Nakba – a catástrofe. Um povo atormentado e perseguido tentou encontrar um refúgio e um Estado próprios, o que conseguiu com custos horríveis para um outro povo. Durante a guerra de 1948, mais de metade da população palestiniana da época – 1 380 000 pessoas – foi expulsa da sua pátria pelo exército israelita. Embora Israel tenha afirmado oficialmente que a maioria dos refugiados não foi expulsa, mas fugiu, continua a recusar-lhes o direito de regresso, como exigia uma resolução da ONU pouco após a guerra de 1948. Por conseguinte, a terra israelita foi obtida à custa da limpeza étnica dos habitantes palestinianos indígenas.
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Mas não parou por ali. Em 1967, na sequência de uma guerra alargada contra três países árabes vizinhos, Israel conquistou e ocupou a Cisjordânia (à Jordânia), a Faixa de Gaza e a Península do Sinai (ao Egipto) e os montes Golan (à Síria). A Península do Sinai acabou por ser devolvida ao Egipto, no quadro de um acordo de paz entre os dois países. (A retirada de Israel completou-se em 1982.) Os restantes territórios adquiridos em 1967 encontram-se ainda ocupados por Israel. Durante a guerra de 1967, assistiu-se ao êxodo de uma nova vaga de refugiados palestinianos da Cisjordânia e da Faixa de Gaza. (O número de refugiados, segundo fontes israelitas, ascendia a 250 000.) Actualmente, cerca de três milhões de palestinianos vivem ainda nestas duas zonas, sob ocupação israelita e rodeados por colonatos israelitas construídos na sua terra.
O destacado filósofo e cientista israelita Yeshayahu Leibovitz lançou um aviso sobre as consequências da ocupação logo no seu início. Em 1968, escreveu: «Um Estado a governar uma população hostil de entre 1,5 e 2 milhões de estrangeiros [o número de palestinianos a viverem nos territórios ocupados à época] está condenado a transformar-se num Estado Shin Bet [Serviço de Segurança], com tudo o que tal implica para o espírito de educação, a liberdade de expressão e pensamento e a democracia. Israel será infectada pela corrupção característica de todos os regimes coloniais. A administração terá de debater-se com a repressão de um movimento de contestação árabe por um lado e com a obtenção de lacaios árabes por outro... «O exército, até este momento um exército do povo, degenerará igualmente, tornando-se um exército de ocupação, e os seus oficiais, transformados em governadores militares, não serão diferentes de outros governadores militares noutras partes do mundo.» (1)
Na atmosfera inebriada pelo poder que predominava em Israel naquela época, poucas pessoas prestaram atenção aos avisos de Leibowitz. As relações entre os EUA e Israel melhoraram após a vitória militar deste último país em 1967, que demonstrou o seu valor estratégico para os interesses americanos na região. Apoiado pelos EUA, Israel sentia-se omnipotente (2). Em 1982, o então ministro da Defesa, Ariel Sharon, conduziu Israel para uma nova aventura no Líbano, com os ambiciosos objectivos de criar uma «nova ordem» no Médio Oriente, destruir a Organização de Libertação da Palestina – que se desenvolvera nos campos de refugiados palestinianos no Líbano – e obter o controlo permanente do Sul do Líbano, que faz fronteira com Israel. O ataque vitimou mais de 11 000 libaneses e palestinianos (3).
Embora a sociedade israelita considerasse a guerra com o Líbano um fracasso, os militares israelitas permaneceram nos territórios conquistados do Sul do Líbano até Maio de 2000. A ocupação israelita dos territórios palestinianos conquistados em 1967 prosseguiu imperturbada.
O primeiro levantamento palestiniano (1987-1993) trouxe consigo uma mudança. A sociedade israelita descobriu que a ocupação militar da terra palestiniana tinha um alto preço. Muitos israelitas aperceberam-se de que o aviso de Leibovitz estava a tornar-se realidade e muitos não podiam continuar a aceitar a ocupação por razões morais. Do lado palestiniano, a luta pela independência baseava-se também – pela primeira vez – num reconhecimento explícito do direito à existência de Israel (dentro das suas fronteiras anteriores a 1967). Como veremos, o Encontro da Intifada do Conselho Nacional Palestiniano, em 1988, recomendou a partição da Palestina histórica em dois Estados independentes. A luta contra a ocupação transformou-se numa luta conjunta israelo-palestiniana, com um grande número de grupos da oposição israelita a manifestarem-se nos territórios ou a convidarem líderes palestinianos a dirigirem-se a iniciativas de professores e estudantes em universidades israelitas. Num dos muitos episódios dessa luta conjunta, vinte e sete elementos do movimento israelita «21.º Ano» (entre os quais eu própria) passaram cinco dias na prisão na sequência de uma manifestação na Cisjordânia.
Em 1993 tudo indicava que a ocupação se aproximava do fim. Muita gente acreditava que os Acordos de Oslo, assinados nesse ano em Washington, conduziriam à retirada de Israel dos territórios ocupados e à formação de um Estado palestiniano. Mas não foi assim que as coisas se passaram. Como veremos, a liderança política do campo da paz israelita transformou o espírito de reconciliação de Oslo numa nova forma, mais sofisticada, de manter a ocupação.
Sharon, agora primeiro-ministro de Israel, descreve a actual guerra contra os palestinianos como «a segunda metade de 1948». A hierarquia militar israelita servira-se já da mesma descrição em Outubro de 2000, no eclodir da segunda Intifada – o actual levantamento palestiniano. Neste momento, restam poucas dúvidas de que o sentido daquela analogia é que a obra de limpeza étnica ficou a meio em 1948, deixando demasiada terra aos Palestinianos.
Embora a maioria dos Israelitas esteja cansada de guerras e da ocupação, os dirigentes políticos e militares de Israel encontram-se ainda motivados pela ganância de terra, recursos hídricos e poder. Nessa perspectiva, a guerra de 1948 foi somente o primeiro passo numa estratégia mais ambiciosa e de mais longo alcance.
(1) Yeshayahu Leibowitz, «Territories», Yediot Aharonot, Abril de 1968; reproduzido in Ha’aretz, 16 de Março de 1969. (http://www.leibowitz.co.il)
(2) Para uma história concisa das relações entre os EUA e Israel ver a introdução de Noam Chomsky a The New Intifada – Resisting Israel’s Apartheid (Roane Carey, ed.) (London/New York: Verso, 2001). Para uma história muito mais pormenorizada, ver, do mesmo autor, Fateful Triangle – The United States, Israel, and the Palestinians, edição actualizada (Cambridge, Mass: South End Press, 1999).
(3) Robert Fisk, Pity the Nation – Lebanon at War, Oxford: Oxford University Press, 1990, p. 323.
* Da autoria de Tanya Reinhart, Editorial Caminho, colecção
Nosso Mundo, Lisboa, Fevereiro de 2004.
«O Militante» - N.º 269 Março/Abril de 2004