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Membro da Comissão Central de Controlo
do CC do PCP
O Estado em Portugal (notas do tempo recente)
A questão do Estado e das alterações que tem vindo a sofrer – na sua natureza de classe, o mais essencial e alvo de todas as mistificações e políticas de direita; na inter-conexão com a superestrutura da sociedade, que determinada pela base económica em evolução, sofre a influência das políticas e instituições estatais; e nos seus aparelhos de exercício e coerção de poder – é, desde sempre, matéria fundamental de estudo e preocupação dos comunistas, para a definição e justeza da intervenção e orientação do PCP.
Partindo d’«a teoria marxista da luta de classes que permite explicar a origem e a natureza do Estado e os seus diversos tipos e formas» (1), considerando-o um produto vivo da história social e «máquina para a opressão duma classe sobre outras» (2), para assegurar o seu domínio e prossecução de objectivos – o PCP, em 1965 no VI Congresso, clarificou a natureza de classe do Estado fascista – «ditadura terrorista dos monopólios, associados ao imperialismo, e dos latifundiários» (3) –, apontou a sua destruição e substituição por um Estado Democrático como «objectivo central da Revolução Democrática e Nacional e... condição primeira e indispensável para a realização dos seus outros objectivos» (4), e apontou «o levantamento nacional»(5) para o seu derrube como orientação central do Partido.
Após o 25 de Abril, as forças revolucionárias travaram duras batalhas para levar a bom termo aquela «condição primeira», sobretudo no caso dos aparelhos fascistas que sobreviveram ao levantamento militar e popular. Mas a insuficiente concretização de outros objectivos da revolução antifascista, a feroz oposição das forças reaccionárias e conservadoras, os conflitos entre militares progressistas e a liquidação do MFA, resultaram numa situação «em que foi destruído o essencial mas não todos os aspectos do Estado fascista, em que surgiram elementos característicos do Estado Democrático sem que este tenha sido completamente construído»(6).
A revolução de Abril, «revolução inacabada»(7), criou e verteu na ordem jurídica mais fundamental – a Constituição da República (CRP) – a situação excepcional resultante do equilíbrio relativo das forças de classe em presença, um Estado de Direito Democrático – expressão de democracia participada, de relevantes conquistas populares e suporte para novas mudanças progressistas.
Desde então, o Estado de Direito Democrático foi causa de importantes combates entre os grandes interesses, as forças de direita, social democratas rendidas à direita e «desistentistas», que promovem ou facilitam a sua regressão e liquidação, e os comunistas e outros democratas empenhados na sua defesa e consolidação.
Na base de múltiplos entendimentos do PS com os partidos de direita e da «comunhão de ideias, projectos e práticas políticas em questões capitais... da arquitectura dum regime jurídico-constitucional que dê corpo às responsabilidades comuns na liquidação das transformações... da Revolução de Abril»(8), tem vindo a consumar-se, passo a passo, uma regressão efectiva do quadro legal e sobretudo do conteúdo real do Estado de Direito Democrático.
A ofensiva global (traços em relevo)
A ofensiva de direita, que há tantos anos enfrentamos, sendo um elemento intrínseco da situação nacional e decorrendo dos projectos reaccionários de «ajuste de contas com o 25 de Abril», tem entretanto profundas conexões e causalidades num quadro internacional de brutal ofensiva imperialista para alargar e consolidar a «nova ordem» da globalização capitalista, a «recolonização» e a «tirania planetária» dos Estados Unidos (EUA).
O que, em última instância, determina esta ofensiva imperialista é a economia – a fase actual do capitalismo e a sua crise estrutural, com a queda das taxas de crescimento do produto mundial e a redução das taxas de lucro da esfera produtiva, parasitada pela hiper-«financeirização» do capital, e as decorrentes «guerras» pelo domínio planetário dos mercados e matérias-primas, com a enormíssima concentração e centralização de capitais, as megafusões e o reverso das megafalências e «fraudes globais», e os novos e reformulados expedientes da luta pelo «lucro máximo» – as deslocalizações, a sobre-exploração, a relativa e (tantas vezes) absoluta «pauperização» dos trabalhadores e dos povos.
Os efeitos da globalização capitalista estão à vista na mais brutal disparidade de rendimentos da história da humanidade: os 225 maiores patrimónios privados ultrapassam o bilião de dólares, tanto como o rendimento anual de 2,5 mil milhões (41%) de habitantes do planeta, nos EUA a fortuna de Bill Gates é igual à de 106 milhões de desfavorecidos(9), em Portugal há «dois milhões de pobres,... no país mais desigual da União Europeia,... em que é maior o fosso entre os 10% mais ricos e os 10% mais pobres»(10).
Os sibaritas deste esbulho planetário apoiam-se num estafado mas omnipresente suporte de mistificação ideológica, copiado do mercantilismo do século xviii – o neoliberalismo de Milton Friedman e da Escola de Chicago, da Heritage Foundation e do Hudson Institute, dos oligopólios e da ultra direita dos EUA; preconizam uma «statless global governance» (governação global sem Estado), um mercado mundial unificado e «auto-regulado».
Baseiam-se no «Consenso de Washington»(11), um conjunto de acordos dos anos 80, entre as transnacionais e bancos de Wall Street, o Federal Reserve Bank, o Banco Mundial e o FMI, com vista ao «enterro do Estado Providência» e à «liquidação do Estado burocrático», para conferir o poder total ao funcionamento «natural» das leis do mercado, o lucro máximo, à máxima velocidade, a «liberdade absoluta» de especular e a «privatização do mundo» – uma «lei da selva» em simbiose com a internet.
É esta ortodoxia neoliberal, também vertida no rumo da integração europeia, que, um pouco por todo o lado, tem sido consumada na destruição de elementos significativos do Estado – no sector público da economia, nas funções sociais redistribuídoras, nos serviços públicos e nos direitos sociais.
O resultado é o «Estado mínimo» para os trabalhadores e os sectores sociais desfavorecidos – minimalista na defesa dos seus interesses e direitos. Porque, para os grandes interesses é o «Estado máximo», «alavanca indispensável e insubstituível para a concretização das políticas neoliberais»(12), para a concentração e centralização do capital. Tal qual tem acontecido no nosso país, com este e anteriores Governos de obediência neoliberal, e como, à sua «maneira» e no seu tempo fez o fascismo, em apoio dos «seus» grupos económicos.
A ofensiva imperialista desenvolve-se em todos os terrenos – na «nova ordem comunicacional», com a enorme concentração da propriedade nos media e o controlo planetário da «era das grandes manipulações»(13), e na arrogante cavalgada para o domínio militar do mundo pelos EUA, que fizeram dos crimes terroristas de 11 de Setembro o pretexto das suas guerras de conquista e do petróleo – cuja factura tentam que sejam outros a pagar – e da ainda maior militarização da sua economia, que assim foge da crise e enche de lucros os «negócios da guerra»(14). Thomas Friedman, antigo conselheiro de Madeleine Albright explicita: «para que a globalização funcione, a América não deve recear agir como superpotência invencível que de facto é... A mão invisível do mercado nunca funcionará sem um punho visível. McDonald’s não pode expandir-se sem MCDonnel Douglas, o fabricante do F-15»(15).
A ofensiva imperialista e neoliberal assume-se como «cruzada antiestatizante», pelos «direitos humanos» e a «sociedade civil», mas o que resulta é perda de direitos, imposição duma «uniformização totalitária do pensamento», cassação da «cidadania participativa» e «desvirtuamento da própria democracia política».
E resulta a chamada «crise da política», no fundo muito mais uma «crise do sistema de representação demoliberal, no quadro de grandes mudanças ... no Estado nacional e no sistema de poder capitalista»(16), em que, cada vez mais, são os grandes interesses a decidir, em instâncias confidenciais, às vezes com nexo criminógeno, sem ponta de legitimidade democrática, e em que, «à escala regional e mesmo mundial»(17), cresce o domínio do poder económico, fundido com o poder político no capitalismo monopolista de Estado.
Em Fevereiro de 1996, no Forum de Davos, perante mil governantes e «decisores» do grandíssimo capital, Hans Tietmeier, presidente do Bundes-Bank, afirmou: «doravante estais sob o controlo dos mercados financeiros»(18), – aplausos, ninguém protestou, nem os socialistas do Governo de Portugal – era «apenas» o cerimonial de reconhecimento da «nova ordem» da globalização capitalista.
A situação que vivemos (factos e observações)
Nestes vinte e oito anos, metade vividos numa relação de forças internacional favorável ao imperialismo, «os sucessivos governos (do PS, PSD e CDS, em coligação ou nem tanto) adoptaram como objectivo estratégico e linha de força de todas as políticas sectoriais, a restauração do capitalismo monopolista»(19), com o controlo do poder político e a subversão do Estado de Direito Democrático. Este Governo tornou essa «ofensiva extraordinariamente perigosa... e de devastadoras consequências... contra as componentes fundamentais do regime democrático-constitucional» (20).
O resultado está à vista. Por queda da protecção constitucional, ou por via de legislação ordinária, verificou-se uma redução significativa dos conteúdos da democracia portuguesa, cada vez mais afastada da sua substância original.
No plano económico, foi liquidada e posta às avessas a subordinação do poder económico ao poder político democrático e foi destruída a dinâmica de igualdade dos cidadãos face aos principais meios de produção.
No plano social, foram gravemente cerceados os direitos dos trabalhadores, em sucessivos «pacotes laborais», e significativamente reduzida a qualidade de vida e os benefícios sociais.
No plano cultural, foi mercantilizado e elitizado o acesso, criação e fruição da cultura e agravaram-se os factores de manipulação.
No plano político, foi imposto o constrangimento do projecto federalista de integração europeia, foi entreaberta a possibilidade de adulterar a democraticidade eleitoral, avançaram peças gravosas da chamada «reforma do sistema político», particularmente as Leis dos Partidos e do seu financiamento, e foram destruídos ou diminuídos importantes direitos cívicos.
Este é um quadro em que – digamos assim – a democracia em que vivemos é cada vez menos democrática, em que o seu carácter de classe se afasta cada vez mais da proposta orginal – um «regime democrático escolhido pelo próprio povo»(21) – e do seu conteúdo efectivo, resultado do equilíbrio das forças de classe na «revolução inacabada» de Abril, e se aproxima dos grandes interesses económicos.
Um quadro em que, em vez da afirmação do valor intrínseco da democracia política e simultânea concretização da democracia económica, social e cultural – «governo do povo, pelo povo e para o povo», realização integral de direitos e igualdade social efectiva –, se vai forjando uma democracia tendencialmente formal-burguesa, cada vez mais «estreita, amputada, falsa, hipócrita, paraíso para os ricos, uma armadilha e engano para os explorados»(22), cada vez menos participada, cerceada de direitos e em «crise de credibilidade», tornada para a maioria dos cidadãos, reduzidos a «eleitores», em pouco mais que uma «pseudo escolha» periódica da «elite» de serviço aos interesses e às políticas neoliberais do grande capital.
Um quadro em que, sendo verdade insofismável «que a CRP continua ainda a ser uma das constituições mais progressistas do mundo»(23), em condições de dar sustentação a um projecto progressista de «democracia avançada»(24), é igualmente verdade que o Estado de Direito Democrático é vítima dum processo de efectiva e significativa regressão, que altera muito negativamente a sua substância em matéria de Direito – no ordenamento constitucional e jurídico – e em matéria de conteúdo democrático – na sua natureza de classe e na estrutura, composição e reprodução das suas instituições e aparelhos.
Em conflito evidente e crescente com a CRP e a resistência dos trabalhadores e das forças progressistas, vão avançando aspectos relevantes do capitalismo monopolista de Estado – a fusão dos grandes interesses com áreas importantes do poder político e «a rotação de quadros entre altas funções de Estado e estruturas decisórias de grupos financeiros ... transnacionais»(25).
Vão-se consumando alterações «conservadoras» em instituições essenciais à garantia da legalidade democrática e da soberania nacional – governamentalização e privatização na Justiça, privatização e militarização na Segurança Interna, centralização e aproximação ao conceito de «inimigo interno» nos Serviços de informações. Nas Forças Armadas é a transformação em «força armada» para intervenção externa, a intromissão na segurança interna e o definhamento das missões de defesa nacional.
E continua a «tomada de assalto do aparelho de Estado»(26), com as milhares de nomeações, sem concurso, de boys e girls. Foram 12 000 os escolhidos pelo primeiro Governo PS, 5000 pelo segundo em menos de dois anos, e são agora outros 5000 já nomeados pelo PSD/
/CDS-PP em vinte e um meses. É um «crescente domínio do poder político pelo poder económico e... organizações formais e informais, não sujeitas a mecanismos de controlo democrático»(27).
Esta é a situação em que nos encontramos. O Estado de Direito Democrático está confrontado com o assalto – antidemocrático, sistemático e virulento – dum projecto de reconstrução do capitalismo monopolista de Estado. Está confrontado com a possibilidade de voltar a ser a «comissão para administrar os negócios colectivos»(28) do grande capital, associado às transnacionas e ao imperialismo, e a «organização especial da força»(29) «pela qual os indivíduos da classe dominante fazem valer os seus interesses comuns»(30).
Mas o Estado de Direito Democrático persiste. Está mais fraco mas continua a ter forças para resistir. Apoiado na luta da classe operária, dos trabalhadores e das forças progressistas, na intervenção das e nas instituições democráticas. E sustentado na Constituição da República.
Por isso «está longe de ter terminado a longa e violenta guerra que a direita... move»(31) à Constituição.
E está – lutamos por isso – ainda mais «longe de ter terminado o tempo em que (a Constituição da República) pode ser invocada em nome e em favor da política de esquerda necessária e indispensável para o progresso do país» (32), em nome e em favor da defesa, consolidação e afirmação do Estado de Direito Democrático, saído da Revolução de Abril.
Notas:
(1) Álvaro
Cunhal, A questão do Estado – questão central de cada
revolução, p. 9, Edições «Avante!»,
1977.
(2) F. Engels, «Introdução
à edição de 1891 de A Guerra Civil em França»,
Marx/Engels Obras Escolhidas, T II, p. 206, Edições «Avante!»,
1983.
(3) e (4) Programa
e Estatutos do PCP, Edições «Avante!», 1974.
(5) Álvaro Cunhal, Rumo à Vitória
– As Tarefas do Partido na Revolução Democrática
e Nacional, p. 185, Edições «Avante!», 1979.
(6) Luis Sá, Introdução
à Teoria do Estado, p. 33, Editorial Caminho, 1986.
(7) (19) (24)
Programa e Estatutos do PCP, Edições «Avante!»,
1997.
(8) (16) (17)
(25) (26)
(27) Resolução Política
do XVI Congresso do PCP, Edições «Avante!», 2001.
(9) PNUD (Programa da ONU para o Desenvolvimento),
Human Development Report 2000, Nova York, 2001.
(10) Carlos Carvalhas, intervenção
no Encontro sobre «pobreza e exclusão social», Lisboa,
12.12.2003.
(11) O «consenso de Washington»
foi formalizado em 1989 por John Williamson, Vice-Presidente do Banco Mundial,
Cf. Jean Ziegler, Os novos Senhores do Mundo e os seus opositores, p. 49,
Terramar, 2003.
(12) A questão social, a esquerda
e o actual momento europeu, intervenção do Partido Comunista
Português no Encontro de Almada de partidos comunistas e outros partidos
de esquerda da Europa, Setembro de 2003, O Militante n.º 267.
(13) Philipe Breton, A Palavra Manipulada,
p. 12, Editorial Caminho, 2001.
(14) O Clã Bush tem interesses no
Carlyle Group, um dos maiores beneficiários dos actuais negócios
da guerra, Paul Krugman, Revista Cash, Zurique, 08.02.2002.
(15) a (18)
Cf. Jean Ziegler, Os novos Senhores do Mundo e os seus Opositores, p. 91,
Terramar, 2003.
(20) Comunicado do Comité Central
do PCP, 06.12.2003.
(21) Definição do VI Congresso
do PCP de 1965, reiterada pelo VII Congresso Extraordinário de Outubro
de 1974.
(22) V. I. Lénine, A Revolução
Proletária e o Renegado Kautsky, Obras Escolhidas, T III, p. 15, Edições
«Avante!», 1979.
(23) (31)
(32) Carlos Carvalhas, intervenção
no debate «Sistema político, democracia e Constituição»,
Lisboa, 02.04.03.
(28) K. Marx/F. Engels, Manifesto do Partido
Comunista, Obras Escolhidas, T I, p. 109, Edições «Avante!»,
1982.
(29) V. I. Lénine, O Estado e a Revolução,
Obras Escolhidas, T II, p. 238, Edições «Avante!»,
1978.
(30) K. Marx/F. Engels, A Ideologia Alemã,
T I, p. 95, Editorial Presença, 1974.
«O Militante» - N.º 269 Março/Abril de 2004