A crise da social-democracia alemã |
Professor, Colaborador da Secção
Internacional
A social-democracia está mergulhada numa das maiores crises da sua história e na mais grave desde a existência da República Federal. Esta crise, que já se começara a fazer sentir com as primeiras ameaças e tentativas de desmontagem do Estado-social por parte do chanceler Helmut Schmidt, intensificou-se ao longo da década de noventa com o entendimento verificado entre o Partido Social-Democrata da Alemanha (SPD) e a democracia-cristã no processo de anexação e liquidação da República Democrática Alemã (RDA) e na total rendição ao neoliberalismo e ao militarismo. Só desde 1990 já abandonaram o SPD 286 mil membros, 100 mil dos quais desde a chegada ao governo do "camarada dos patrões", Gerhard Schröder. Poucos meses após a formação do governo, o então presidente do SPD, Oskar Lafontaine, abandonou subitamente as suas funções de Ministro das Finanças e de dirigente do partido. Interrogado sobre os motivos de tão repentina demissão, Lafontaine esclareceu que “Schröder não estava a cumprir os compromissos assumidos com ele e com o SPD no campo da política económica e social e começara a preparar a Alemanha para participar na agressão contra a Jugoslávia”. À aceitação do novo conceito estratégico agressivo da NATO em Abril de 1999, seguiu-se a assinatura de uma declaração conjunta entre Schröder e Blair pouco antes das eleições para o Parlamento Europeu, onde aqueles dois estadistas manifestaram a sua confiança ilimitada no poder dos mercados. Apenas um ano depois da vitória eleitoral que conduziu Schröder ao governo, o SPD perdeu, nesse acto eleitoral, 12 milhões de votos. Os comentadores da TV alemã compararam, nessa altura, o súbito abalroamento eleitoral do SPD com o naufrágio do Titanic. Nunca na história da Alemanha Federal se tinha verificado um tão rápido desgaste governamental. Desde então a social-democracia tem perdido praticamente todas as eleições para os Estados federados e para as autarquias. Baixou sistematicamente a votação, numa média de 10 a 15 pontos percentuais. Foi afastada dos governos da Saxónia-Anhalt, Baixa-Saxónia e Hamburgo e sofreu perdas espectaculares na Baviera e no Hessen, estando em risco de, nas próximas eleições que se realizarão este ano em Estados onde o SPD governa há décadas, como a Renânia-do-Norte-Vestefália, ficar mesmo sem a escassa maioria que ainda detém no Conselho Federal (Bundesrat). Estes resultados são ainda mais elucidativos se tivermos em conta que Schröder goza do apoio do grande capital e que a debandada do eleitorado social-democrata não se traduz numa assinalável transferência de votos para a democracia-cristã. O eleitorado tradicional da social-democracia recusa-se pura e simplesmente a votar. Nas últimas eleições autárquicas no Brandenburgo, a participação eleitoral baixou de 75% (1999) para 45% (2003). Os eleitores não acreditam que o seu voto sirva para mudar o que quer que seja. A social-democracia tem dado um contributo decisivo para o descrédito da actividade político-partidária, parlamentar e governamental. As infracções à Constituição em questões fundamentais como o abandono do carácter defensivo da Bundeswher e a sua transformação num exército de intervenção ou a liquidação dos imperativos sociais do Estado através da “agenda 2010” tornaram-se rotina nas medidas governamentais tomadas em Berlim. Schröder recorre frequentemente à chantagem sobre os deputados e membros do SPD, ora ameaçando demitir-se caso os parlamentares da maioria governamental recusem submeter-se, ora tomando decisões contra a vontade dos sindicatos, frequentemente acompanhadas de expressões carregadas de autoritarismo como “basta!, eu agora é que decido”. No último 1° de Maio, o social-democrata Michael Sommer, presidente da Confederação dos Sindicatos Alemães DGB, viu-se obrigado a relembrar ao chanceler que “a Alemanha ainda não era nenhuma República do basta!”.
Paralelamente à marginalização do Parlamento e das organizações constitucionalmente reconhecidas como representativas dos trabalhadores e de outros sectores sociais, aparecem os chamados consultores empresariais a definir abertamente qual deve ser a política do governo. O mais célebre desses consultores Roland Berger, director da “Roland Berger Strategy Consultants”, concorrente da Mckinsey, é conhecido na Alemanha pelo chanceler dos chanceleres. O Le Monde (16.4.02) escreve que “o senhor Berger gaba-se de aconselhar simultaneamente o chanceler social-democrata e o seu rival às eleições legislativas de Setembro, o conservador social-cristão Edmund Stoiber (CSU). Ele diz que trata o primeiro por tu, mas que teve um papel decisivo em convencer o segundo a lançar-se na corrida para a chancelaria. E o diário parisiense transcreve a análise que Berger faz da política do SPD: “o governo de Schröder reformou os impostos, a segurança social, a política de imigração... mas ainda não foi suficientemente longe na desregulamentação do mercado do trabalho, na reforma do sistema de saúde e do sistema educativo”. Os milhares de milhões que o governo de SPD tem entregue ao grande capital em benefícios fiscais, assim como a redução das contribuições patronais para a Segurança Social e as políticas repressivas contra os imigrantes, são louvados por aquele estratego do neoliberalismo. Mas Roland Berger exige ainda a liberalização dos despedimentos, a liquidação dos contratos colectivos de trabalho, a total privatização e desmantelamento do princípio da solidariedade no sistema de saúde e um ensino à medida das elites endinheiradas. É exactamente este o programa que Schröder está a aplicar desde que conseguiu, em circunstâncias muito especiais, ser eleito por uma escassa maioria em Setembro de 2002, explorando as rivalidades existentes entre a Alemanha e os EUA em relação ao Iraque e escondendo totalmente ao eleitorado e aos membros do seu partido tais intenções.
Enquanto os actuais dirigentes social-democratas se encontram em pleno delírio neoliberal, cresce entre os trabalhadores alemães a consciência da perda incomensurável que significa o colapso do socialismo na URSS, no Leste europeu e particularmente na RDA.
No seu livro mais recente destinado a desmascarar a política de Schröder e de Fischer, intitulado “A revolta aumenta”, o ex-presidente do SPD, Lafontaine, afirma que “desde o colapso do comunismo e da União Soviética, o capitalismo de rapina tornou-se ainda mais brutal e agressivo. O comunismo, com as suas normas sociais, obrigava as sociedades capitalistas a conterem o princípio do direito do mais forte”.
É neste contexto de entrega total aos interesses do grande capital, que Olav Scholz, secretário-geral do SPD e homem da confiança de Schröder, na véspera do Congresso de Novembro, propôs eliminar do programa da social-democracia expressões como “socialismo democrático” ou “justiça social”. Desde Bernstein que a utilização da expressão “socialismo democrático” se destina fundamentalmente a esconder o papel histórico da política oportunista dos dirigentes mais direitistas da social-democracia na divisão do movimento operário e na consolidação do sistema capitalista. Ao contrário do que alguns sectores social-democratas, sobretudo depois da segunda guerra-mundial, pretenderam sugerir, e tal como o SPD está hoje a demonstrar abertamente na Alemanha – e Mário Soares já o demonstrou sobejamente em Portugal com o embuste do seu “socialismo em liberdade” que levou o Partido Socialista a aliar-se à contra-revolução e ao imperialismo norte-americano contra as conquistas do 25 de Abril –, não estamos perante a defesa de um modelo destinado a corrigir os erros e excessos centralizadores do socialismo na antiga Europa do Leste. A expressão “socialismo democrático” tem sido fundamentalmente utilizada pela social-democracia por oposição ao socialismo científico, como negação da possibilidade real da humanidade se libertar da exploração do homem pelo homem e como justificação para a concretização de uma política que visa, no essencial, fundamentalmente assegurar a manutenção e a continuidade do sistema capitalista. Mesmo assim os dirigentes do SPD entendem que devem retirar do programa do partido tudo aquilo que seja susceptível de criar no seio da oligarquia financeira quaisquer dúvidas sobre a sua total disponiblidade em servi-la.
O padre jesuita Friedhelm Hengsbach, professor de ética social e económica da Faculdade de Teologia de Frankfurt, numa entrevista à revista Stern (48/2003), confirma que “Schröder quer agradar às elites económicas. Deixa-se impulsionar por elas e ataca os que estão no último degrau da escala social. É uma ironia da História que seja um chanceler social-democrata a executar o programa Lambsdorff-Tietmayer de 1982 (programa dos Liberais que levou à queda de Helmut Schmidt e à formação do governo de Helmut Kohl). A “agenda 2010” é uma declaração de guerra às vítimas da crise. O que ali se encontra já foi defendido por Reagan e Thatcher. Este dia 14 de Março, em que a “agenda 2010” foi apresentada ao Parlamento, foi um dia negro para o Estado-social e para a democracia”. Hengsbach prossegue acrescentando que quer a social-democracia quer a democracia-cristã “procuram vender as chamadas «reformas» como um acto de libertação. Falam de responsabilidade individual, de liberdade, de realização pessoal, de reorganização do Estado-social. São palavras bonitas que só servem para esconder a liquidação dos princípios constitucionais e o adeus às funções sociais do Estado” ...“a mensagem política da “agenda 2010” é clara: não queremos mais este Estado-social, os riscos sociais como a doença, a velhice têm de ser suportados por cada um individualmente. Dos fracos exige-se mais do que dos mais fortes. Estamos perante um processo de quebra da solidariedade impressionante. Estamos a caminho de uma sociedade de lobos”. O Professor da Faculdade de Teologia constata ainda um regresso ao obscurantismo na ideologia dominante actualmente assimilada e defendida pela social-democracia ao recordar que “demorou séculos até as pessoas perceberem que era a terra que se movia em torno do sol e não o contrário” e que “alguns dogmas são-nos hoje vendidos como leis da natureza, num acto de cegueira colectiva. Esses dogmas proclamam: quanto menos Estado, melhor Estado! confia na força reconvalescente dos mercados!” ...“mas a justica social não é um problema biológico” de gerações novas e antigas nem mesmo demográfico. “É o já bem conhecido problema da distribuição dos bens e da riqueza, da existência de ricos e pobres”.
A rendição do SPD ao neoliberalismo processa-se num momento em que o movimento sindical na Alemanha se encontra numa fase de total desorientação. Impregnados pelas teorias reformistas da chamada parceria social, a que nos anos noventa se veio juntar o manto de nevoeiro da “sociedade civil”, os dirigentes sindicais social-democratas esconderam durante décadas e décadas aos trabalhadores qual a real correlação de forças no interior do sistema capitalista.
Além disso, a social-democracia alemã tem
dado um contributo decisivo para a militarização da política
internacional e para o reforço do capitalismo nesta sua nova fase expansionista
e belicista. Estes aspectos são essenciais para se poder compreender
a actual crise do SPD. Por isso serão objecto de uma próxima
reflexão.
«O Militante» - N.º 268 Janeiro/ Fevereiro de 2004