Prostituição e tráfico de mulheres
Um atentado aos direitos humanos

 


Socióloga. Directora de «O Ninho»

A prostituição não é crime em Portugal, apenas a sua exploração o é (o proxenetismo). A sua legalização significaria admiti-la como profissão, com, por exemplo, o pagamento de impostos por parte das mulheres prostituídas. Implicaria o reconhecimento do proxenetismo e a institucionalização da forma mais atroz de violência exercida sobre as mulheres.

O Ninho (1) luta contra a legalização da prostituição porque esta é contra a Declaração Universal dos Direitos do Homem – texto integrante da Constituição da República Portuguesa – e é a forma mais extrema de violência exercida sobre as mulheres, jovens e crianças.

O Ninho deu o seu contributo para a despenalização da prostituição. Integrou um grupo de trabalho nomeado pelo Conselho de Ministros, que elaborou, em 1979, um relatório sobre prostituição. Relatório que inspirou o Código Penal de 1982, que reflecte o espírito da Convenção da ONU de 1949 para a Supressão do Tráfico de Pessoas e da Exploração da Prostituição de Outrém.

A intervenção primeira de O Ninho foi o trabalho de rua. Conhecer o meio prostitucional, compreender as causas e consequências da prostituição, perceber as mudanças que se verificam no “meio”, é indispensável para planear acções que visem a promoção das jovens e mulheres que são prostituídas. É o primeiro passo para a mulher sentir que existe uma Instituição que a considera como “pessoa única e singular”, com a dignidade inerente a todo o ser humano, independentemente do seu comportamento.

Mulheres prostituídas

É bem significativo o sentimento de “beco sem saída” em que estas mulheres vivem: não sabem o que fazer, nem como fazer. A permanência na prostituição não faz parte dos seus planos, o seu objectivo é encontrar uma saída. São provenientes de bairros degradados, de casas sobrepovoadas, de famílias numerosas, de pais alcoólicos. Sofreram maus tratos, abandonos, violações, incestos. Passaram fome. Não se sentiram amadas. Trabalharam na infância a ajudar no campo, a “servir em casa alheia”, a cuidar dos irmãos mais novos. Não foram à escola, e quando a frequentaram não tiveram sucesso, e quando o tiveram, foi só até ao 4º, 6º ou 7º ano de escolaridade. Cresceram depressa, namoraram e engravidaram cedo e depois foram abandonadas.

Locais da prostituição

Na rua a prostituição é visível, as mulheres têm imagem pública. O contacto é fácil. Podemos falar-lhes dos seus direitos enquanto pessoas, criar relacionamentos empáticos que possibilitam referências positivas, que são valorativas para quem se sente marginalizado e que, ao longo da sua vida, interiorizou o estigma da exclusão.

Noutros locais de prostituição (bares de luxo, hotéis, casas de passe, casas de massagens, agências), em que os clientes têm algum poder económico, as mulheres têm uma aparência que as faz aproximar (confundir) com a origem social do cliente, generalizando-se a ideia de que são de uma classe social diferente.

É que a prostituição funciona como um mercado: oferta/procura e, como em qualquer mercado a oferta adapta-se à procura, e daí o aspecto bem cuidado dessas mulheres. Devido aos nossos estereótipos de pertença, inconscientemente as colocamos na classe social do cliente. Mas aqui a violência é oculta, exercida entre paredes.

O Cliente

O cliente provém de todas as classes sociais. O local onde procura a mulher é diferenciado, varia consoante o seu poder de compra. Numa zona pobre de prostituição, a clientela é constituída por trabalhadores com fracos recursos económicos, por isso pouco exigente no que diz respeito à aparência da mulher e ao seu comportamento. Há oscilações na procura – esta é intensa no princípio e no fim de cada mês, que é quando o cliente recebe o salário.

Num hotel ou bar de luxo, o cliente tem poder económico. É exigente quanto à oferta: a maneira de vestir e da mulher se comportar adapta-se à origem social do cliente. Não há oscilações na procura. Existe durante todo o mês.

A relação entre a mulher e o cliente é uma relação mercantil, o pagamento da prática sexual introduz a desculpabilização, o não compromisso, a desresponsabilização. Afasta qualquer afecto. O cliente pode entregar-se às suas fantasias, sem ter que se preocupar com o que ela sente, pensa ou deseja. Terminado aquilo que o contrato inicial previu, os dois intervenientes separam-se. Não devem mais nada um ao outro, o dinheiro lá está para pôr os sentimentos à distância.

Dizem mulheres que conseguiram libertar-se das amarras da prostituição: “O nosso corpo não nos pertence. Está sujeito à vontade do chulo (proxeneta) e ao desejo do cliente”.

O tráfico

Encontramos redes de tráfico nas ruas da cidade de Lisboa. São mulheres oriundas de outros países que querem “fugir” à pobreza extrema e que vêm com a promessa de um trabalho e são colocadas na prostituição. Não falam português, são muito reservadas quanto a contactos com outras mulheres e com pessoas exteriores ao “meio”. Estão ilegais, não têm documentos (foram-lhes retirados pela rede de proxenetismo) e, ao fim do dia, entregam o dinheiro ganho a uma pessoa pertencente ou controlada pela rede.

Ficam com algum dinheiro que enviam para a família porque a sua vinda foi com esse objectivo: assegurar a sobrevivência da família. Na rede existem indivíduos que ameaçam contar à família a “vida” que fazem se tentarem fugir. Estas mulheres vivem no “terror” do repatriamento, pois se a ameaça se concretizar são rejeitadas pela família e pela comunidade, ficando novamente nas mãos dos proxenetas, ou mesmo mortas.

Existem também mulheres traficadas em casas fechadas, que se espalham pelo nosso país como cogumelos. Sem documentos e ilegais, não têm contactos senão com as pessoas pertencentes à rede e com os clientes. Têm dificuldade em comunicar umas com as outras pois não falam a mesma língua. Percorrem o nosso país, de norte a sul, permanecendo no máximo um a dois meses em cada casa e depois são vendidas para outros países. Algumas destas casas são de luxo, compradas pelo proxenetismo para branqueamento de capitais.

Existe também um tráfico interno: jovens portuguesas que são prostituídas em casas fechadas e que ficam prisioneiras de um sistema fechado, percorrendo o país num circuito de venda de proxeneta em proxeneta, situação esta que não é definida na lei como tráfico.

A economia tornou-se global e as pessoas já não são recrutadas apenas na periferia das grandes cidades ou nas zonas pobres de Portugal. Já não são só as filhas de portugueses pobres que se prostituem. O campo de recrutamento cresceu. Hoje, em diversos locais da cidade, multiplicam-se jovens africanas, asiáticas, brasileiras, da América Latina,da Europa de Leste que sofrem diante dos nossos olhos a forma mais violenta de escravatura. O mundo todo, com os seus níveis de subdesenvolvimento cruéis, transforma-se numa reserva gigantesca de mulheres, de jovens e de crianças para a indústria do sexo global.

O negócio e os lucros

Segundo a ONU, quatro milhões de mulheres e de raparigas são anualmente compradas em todo o mundo. Calcula-se que todos os anos, cerca de 200 mil mulheres provenientes de países de Leste, caem nas mãos de proxenetas europeus. A Liga Feminina de Kiev afirma que “nos últimos anos 100 mil ucranianas foram vítimas de redes criminosas da indústria do sexo”.

Segundo a Interpol “o negócio da exploração sexual entre os dois lados da Europa (Ocidental e de Leste) está em plena explosão”. Na Bulgária, cerca de 10 mil raparigas caíram nas malhas dos proxenetas. Os traficantes romenos leiloam ucranianas, moldavas, romenas, búlgaras, russas. Despidas, exibidas, são compradas, por cerca de 500 euros, por proxenetas que as violam antes de as fazer seguir para outros países. As mulheres são reduzidas à escravatura.

A causa do recurso à prostituição é sobejamente conhecida: a miséria. A maioria das mulheres espera ganhar dinheiro suficiente para regressar ao seu país e ajudar as famílias a sobreviver. Três quartos delas nunca se tinham prostituído antes.

Prostituição é a efectivação de práticas sexuais, hetero ou homossexuais, com diversos indivíduos e remuneradas, num sistema organizado. O meio prostitucional funciona como um mercado de oferta e de procura. Oferta por parte da mulher que se vende, procura por parte do homem que a compra. Este é o caso mais simples, mas o mais raro. Na maioria dos casos (oito ou nove em cada dez) intervém uma terceira pessoa: o organizador e explorador do mercado, o chulo ou proxeneta, o proprietário de casas fechadas, salões de massagens, fornecedor de quarto de hotel ou de estúdios...

Como a escravatura, também a prostituição tem um aspecto económico. Ao mesmo tempo que é um fenómeno cultural enraizado nas imagens do homem e da mulher, veiculadas pela sociedade, é também um mercado forte e lucrativo. O que é aqui alienado, na pessoa, é mais grave do que na escravatura (no sentido habitual), pois nesta aliena-se a força de trabalho e não a intimidade.

O negócio da prostituição rende ao proxenetismo milhões de euros (estima-se que o volume de negócios é entre 5,4 mil milhões e 7,6 mil milhões de euros) porque não se reduz a um acto individual de uma pessoa que aluga o seu sexo por dinheiro, é uma organização comercial com dimensões locais, nacionais, internacionais e transnacionais, onde existem três elementos: pessoas prostituídas, proxenetas e clientes.

A mercantilização da sexualidade

A prostituição diz sempre respeito à sexualidade: à do cliente, porque apesar das aparências de ser ele quem usufrui, não é compensador comprar a utilização do sexo de outra pessoa; à do proxeneta, pois é humanamente destruidor viver reduzindo a vida das pessoas a uma exploração financeira da sua intimidade; e à da pessoa que se prostitui, a mais marcada por esta redução, através do dinheiro, ao estado de objecto.

Estamos perante o sexo separado de todo o significado humano, sexo/objecto. Compete-nos pôr as nossas dúvidas em relação a esta banalização do sexo, porque é muito aquilo que se joga ao recusar-se dissociar sexo (objecto de prazer) do sexo (órgão de reprodução) e do sexo (meio de exprimir o amor).

Trata-se de uma dinâmica profunda segregada pela sociedade mercantil, da qual o capitalismo é a forma actualmente dominante. Este sistema não produziu ainda um antídoto, um “contra-veneno”, que nos permitisse passar do dinheiro, como equivalente de todo o valor, para o dinheiro, como equivalente unicamente de alguns valores.

Na prostituição todos os actos íntimos são rebaixados a um nível único – ao de um valor mercantil. A sexualidade é vivida como uma procura de prazer à custa do outro. É uma forma de violência. É uma perversão inaceitável que legitima que nos batamos contra a prostituição e o proxenetismo.

A escravatura do séc. XXI

O título da capa da revista National Geographic, de Setembro último, afirma que: “Há 27 milhões de seres humanos tratados como escravos”, referindo-se a seguir que “Há mais escravos nos dias de hoje do que o número total de pessoas que alimentaram o tráfico negreiro durante quatro séculos. O comércio ilegal de seres humanos é um cancro moderno, uma operação financeira global que movimenta milhões de euros e que rivaliza, em importância e em impacto na condição humana, com o tráfico de droga.”

Os filhos da pobreza alimentam mafias organizadas de exploração e tráfico de seres humanos. Em muitos países, a maioria das pessoas tem de sobreviver com cerca de 1,5 euros por dia, em situação de miséria que torna as comunidades vulneráveis a propostas cruéis e que motiva lucros desumanos, porque o corpo de uma mulher pode ser vendido vezes sem conta.

Segundo a ONU: “A prostituição de mulheres e de crianças é uma forma de escravatura incompatível com a dignidade da pessoa humana e com os seus direitos fundamentais”.

(1) O Ninho é uma Instituição Católica, Instituição Particular de Solidariedade Social, criada em 1967, que tem por objectivo a promoção humana e social de mulheres vítimas de prostituição.

 

 

«O Militante» - N.º 268 Janeiro/ Fevereiro de 2004