José Carlos Ary dos Santos
O poeta da Revolução de Abril



Membro da Comissão Política do CC do PCP

Passados vinte anos sobre a sua morte, José Carlos Ary dos Santos, o camarada, o amigo, o poeta, permanece vivo na lembrança de milhares e milhares de portugueses e, de forma muito especial, nas memórias e nos corações dos militantes comunistas que com ele conviveram, que com ele foram protagonistas das múltiplas batalhas de que é feita, todos os dias, a luta pelos ideais de justiça social, de liberdade, de fraternidade. Se um poeta permanece vivo quando os seus poemas resistem à lei da morte, há que dizer que o Zé Carlos continua connosco. Mas neste caso a memória do poeta é mais, muito mais, do que isso, porque os seus poemas são, também, os poemas do camarada, do companheiro de luta, e estão indissoluvelmente ligados às nossas vidas e às nossas lutas. Se alguém tivesse quaisquer dúvidas sobre a perenidade, entre nós, da poesia e da memória de camaradagem fraterna do Ary, tê-las-ia dissipado aquando da homenagem que lhe foi prestada por ocasião da última edição da Festa do Avante!, com a Quinta da Atalaia povoada de poemas seus, com uma multidão de dezenas de milhares de pessoas, comunistas e não comunistas, assistindo e participando, no memorável espectáculo em que o Zé Carlos foi personagem principal, enchendo o Palco 25 de Abril com a sua figura, a sua voz, a sua poesia. Tratou-se não só do reencontro do poeta com velhos amigos e conhecidos – num espaço que ele não conheceu em vida mas que, porque é nosso, é dele também – mas igualmente do primeiro encontro com muitos outros que de imediato ficaram presos às palavras certeiras e tão actuais da sua poesia, à força arrebatadora da sua voz e à fraternidade que dela emana, à verticalidade da sua postura de militante comunista. E era Abril – e o Partido – que ali estavam: a festa e a alegria, a fraternidade e a camaradagem, a consciência revolucionária e a determinação de luta, a arte e a cultura, a justiça e o progresso, enfim, tudo o que Abril nos mostrou ser possível, aquele pedacinho do futuro ansiado, do futuro pelo qual nós, comunistas, lutamos e que, visto, entrevisto, uma vez, passou a fazer parte dos nossos amanhãs que já cá cantam.

José Carlos Ary dos Santos é o exemplo do intelectual que tomou partido, que fez a sua opção política e de classe; que soube encontrar e conquistar o seu posto de militante; que aprendeu e ensinou que o partido que temos é melhor; que integrou em pleno o grande movimento revolucionário de massas que transformou, em determinado momento, a face do nosso País; que percebeu a importância decisiva da unidade e da coesão partidárias, sempre, mas de forma particular nos momentos mais difíceis, nos momentos em que cerrar fileiras é condição da condição de comunista; que foi artífice maior da colocação da intervenção cultural ao serviço do progresso e dos ideais revolucionários. Com efeito, o Zé Carlos participou na luta política, através de uma intervenção militante intensa e contínua, utilizando as armas de que dispunha: o seu talento, grande grande; a sua imensa capacidade de, através da poesia e com uma notável sensibilidade política, dizer em cada momento, com rigor cirúrgico, as palavras necessárias; a sua identificação profunda com os anseios e as aspirações dos trabalhadores e do povo.

Os seus poemas, particularmente os que escreveu entre 1974 e 1984, são como que a história da Revolução de Abril, de que ele é, incontestavelmente, o Poeta: o dia a dia dos impetuosos avanços revolucionários que se seguiram ao derrube do fascismo; a glorificação do papel da classe operária, da força dos trabalhadores organizados; a festa das conquistas alcançadas através da luta; a exaltação da resistência face à ofensiva contra-revolucionária; a sinalização amarga dos recuos logo iluminada pelo incentivo à luta e pela confiança na acção das massas em movimento; a solidariedade com as lutas de todos os povos do Planeta; as alegrias e as tristezas, a confiança e a certeza dos que nunca se cansam de lutar e que, por isso, transportam consigo as sementes do futuro. Assim, os poemas de José Carlos Ary dos Santos são parte grande do património de luta do povo e dos comunistas portugueses, pelo que dizê-los e cantá-los, hoje, significa prosseguir o combate pelos ideais de Abril, persistir na luta – que se sabe complexa, árdua, cheia de dificuldades e obstáculos e armadilhas – pela construção de uma sociedade nova, liberta de todas as formas de opressão e de exploração.

O Zé Carlos morreu em 18 de Janeiro de 1984 (dia em que passava o 50º aniversário da insurreição da Marinha Grande – registe-se a coincidência) e a sua morte e o seu funeral, com as emoções e as lágrimas que despertaram, foram a confirmação insofismável da admiração, da amizade, do apreço, do carinho que os trabalhadores e o povo lhe dedicavam.

O corpo do poeta ficou em câmara ardente na Sociedade Portuguesa de Autores e, durante toda a noite, uma fila ininterrupta de pessoas desfilou junto à urna, sobre a qual, de acordo com a sua vontade, fora estendida a bandeira do Partido – a bandeira comunista, que ele cantara em versos carregados de futuro por ocasião do ataque terrorista ao Centro de Trabalho do PCP em Braga. Também durante toda a noite, o poeta, o camarada, o amigo, teve guarda de honra permanente, através de turnos sucessivos de pessoas das mais diversas origens sociais e provenientes de todo o País – intelectuais, empregados, camponeses, operários, homens, mulheres, jovens, em muitos casos vindos directamente do trabalho e que, com os seus fatos de ganga e de punhos erguidos, cumpriam, talvez sem o saberem, um desejo tantas vezes expresso, com um brilho nos olhos..., pelo Zé Carlos. Talvez sem o saberem... ou sabendo-o, porque se tratava do Zé Carlos, do Ary, do Ary dos Santos, do camarada, do amigo, do poeta, do companheiro inesquecível de inesquecíveis jornadas de luta nas quais, com a sua presença física ou fazendo-se representar pelos seus poemas, participava intensa e activamente.

E o cortejo de muitos milhares de pessoas que, caminhando a pé, acompanhou o corpo do poeta até ao cemitério do Alto de S. João, foi como que uma manifestação de massas igual a muitas outras em que o Zé Carlos havia participado, um mar de gente que se despedia de um companheiro que tombara e que, nessa despedida, assumia o compromisso de continuar a luta.

E a luta continuou nos vinte anos que nos separam desse dia. Com as armas que temos na mão prosseguimos o combate procurando impedir que os ventos do passado cerrassem as portas que Abril abriu. Por erros nossos ou por força da força superior dos nossos adversários, sofremos derrotas, por vezes pesadas. Mas continuámos a lutar. Por erros nossos ou por força da força superior dos nossos adversários, muitas vezes fomos forçados a recuar. Mas não baixámos os braços. E é essa a nossa vitória: a determinação de lutar, lutar sempre, com a consciência da dimensão das dificuldades que se colocam a quem definiu como objectivo maior a substituição desta sociedade velha, baseada na injustiça, na desigualdade, na exploração, na opressão, por uma sociedade nova, justa, livre, solidária, fraterna.

Nesses vinte anos de luta, o Poeta da Revolução de Abril foi nosso companheiro em todos os momentos. E assim continuará a ser: com o Zé Carlos a dizer-nos que «isto vai, meus amigos», e nós a sabermos que, de facto, «isto vai» – mesmo que não vá como e quando queremos – numa concordância absoluta que resulta da simples razão de um poeta militante ter sabido, cantando a sua cidade e o seu país, traduzir na sua obra, de forma transparente, com um talento singular, com a força dos seus ideais e das suas convicções, os anseios mais profundos do seu povo.

 

 

«O Militante» - N.º 268 Janeiro/ Fevereiro de 2004