Revisitando Marx
Da arte enquanto construção antropológica e histórica

 



Membro do Comité Central do PCP.
Professor Universitário

Os modelos do êxito

Vou tentar esboçar uma resposta a um problema que é parte de um problema maior. Este último, que aqui apenas esboçarei, seria o seguinte: que singularidades do pensamento de Marx nos podem ajudar a compreender que ele se mantenha activo, ou que possa ainda hoje ser, quer invocado, apropriado e desenvolvido, por pensadores contemporâneos, quer recalcado, abusivamente reduzido e activamente combatido.

Uma primeira dessas singularidades, que acima referi e de que apenas esboçarei uma lista não fechada, tem a ver com o modo como esse pensamento (que é teórico e crítico, laico e programático) se entrelaçou intensamente com a esfera da acção, o que aliás ajuda a compreender que tenha sido até hoje reivindicado por organizações sociais e políticas, enquanto não há sindicatos ou partidos kantianos nem hegelianos, nem mesmo nietzschianos. Esta unidade entre pensamento e acção foi aliás frequentemente tematizada pelo próprio Marx, nomeadamente, na célebre tese 11 das Teses sobre Feuerbach: «Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes, a questão é transformá-lo.»

Esta tese está aliás ligada a um modo novo de compreender o conhecimento que se afasta dos vários modos de o entender como uma relação de adequação entre uma formulação discursiva ou lógica e um estado de coisas, uma situação, etc. Esta unidade entre conhecer, pensar e transformar pressupõe que o mundo não é apenas um dado, algo que condiciona e constrange a nossa acção e as representações que dele temos – «O mundo é [também] a nossa tarefa», segundo a sugestiva formulação de um judeu alemão do século XX que viveu e pensou dramaticamente a ligação entre o materialismo histórico e o messianismo judaico.

Uma segunda singularidade do pensamento de Marx é a de ser um pensamento da história e da acção histórica que se assumiu como radicalmente laico e como sendo ele próprio histórico, não apenas na sua génese, mas enquanto sujeito à transformação ou mudança de forma no tempo. Ou seja, o marxismo pode (deve) pensar a sua própria historicidade e a sua evolução histórica. Por exemplo, tal como nasce no quadro do desenvolvimento do capitalismo, do aparecimento do proletariado e do movimento operário e, nesse sentido, é finito, assim também podemos admitir que numa situação em que o capitalismo deixasse de o ser, e fosse substituído por um sistema socialista ou comunista mundializado, então pelo menos largos aspectos do pensamento de Marx teriam deixado de ser actuais, a sua operatividade e o seu ponto de aplicação ter-se-iam, no mínimo, deslocado. Não é esta obviamente a nossa situação: a actual fase de globalização capitalista mantém se é que não acentua a necessidade do seu desenvolvimento crítico e criador. Este carácter histórico pode ser observado de diferentes pontos de vista: basta por exemplo ler os prefácios às edições do Manifesto do Partido Comunista, para encontrar em acto a consistência estratégica do pensamento de Marx e Engels e as mutações que advém da sua atenção às circunstâncias que vão mudando.

A terceira singularidade podemos enunciá-la recorrendo a Lénine, aquele mesmo que aliás enunciou as fontes históricas da génese do marxismo. Quando em 1914-1915 está a ler, anotando-a e comentando-a, a obra de Hegel, Lénine apresenta a certa altura uma preciosa definição da dialéctica enquanto método: Trata-se, diz ele, de «uma análise dupla, dedutiva e indutiva, – lógica e histórica (as formas do valor)». É sobretudo o segundo par de qualidades (em que «análise lógica» tem aqui o sentido de análise formal ou análise das formas) que nos merece atenção.

Ao longo do século XX, vários autores e, entre eles, vários que não se assumem como marxistas, têm-se referido a uma longa tradição da metafísica ocidental estruturada por dois modelos diametralmente opostos de entendimento do humano. Para Jacques Derrida, que tenta aliás desconstruí-la, a polaridade seria entre um modelo de compreensão articulado em torno da noção de génese (e que corresponderia a uma concepção do histórico) e um outro em torno da noção de combinatória (centrado no jogo das «formas»).

Ora, a dialéctica materialista, enquanto aquela «análise dupla» de que fala Lénine, é justamente a tentativa de evitar a unilateridade metafísica dessa como de outras oposições binárias. Da mesma maneira, e contra as caricaturas, essa dialéctica implica a crítica da ideia de uma causalidade linear e mecânica e abre caminho à noção de uma causalidade múltipla e complexa, que leva a que um «acontecimento histórico» resulte da interacção e «acção recíproca» entre diferentes forças, factores ou causas e não possa ser reduzido a um efeito de uma causa. (Ver por ex., carta de Engels a Joseph Bloch, Londres, 21 de Setembro de 1890.)

Para a quarta singularidade, nesta lista aberta, contribuem de uma forma ou de outra, todas as anteriores. Esta singularidade tem agora a ver com o modo como a teoria da história que Marx e Engels decisivamente abrem é, ao mesmo tempo, uma teoria política da revolução social, que não é nem uma fatalidade, nem um acto da vontade. Esta concepção tem o seu núcleo duro num modo de conceber a luta de classes que, por um lado, a enraíza no processo material de produção e reprodução do viver social, na relação dialéctica, ou seja, formal e histórica, entre forças produtivas e relações de produção e, por outro lado, a projecta e coloca no horizonte teórico-prático das forças sociais e humanas como a tarefa possível e a possibilidade real de uma sociedade sem classes.

Passo agora ao problema mais localizado. O problema é o seguinte: que sentido é que faz recorrer a Marx para pensar um problema que se forma num campo disciplinar que Marx não conheceu na sua forma actual e que é aliás instável.

No movimento final da «Introdução» dos seus Elementos Fundamentais para a Crítica da Economia Política (1857-1858):

Mas a dificuldade não está em compreender que a arte grega e a epopeia [ou Shakespeare, um pouco antes no texto] estão ligadas a certas formas do desenvolvimento social. A dificuldade reside no facto de nos proporcionarem ainda um prazer estético e de terem ainda para nós, em certos aspectos, o valor de normas e de modelos inacessíveis.

Marx está no seu vocabulário, no quadro da sua problemática e neste momento da sua obra, a construir a sua versão de um problema que, posteriormente a ele, nos estudos literários e na estética, será até hoje o da perenidade (ou «eternidade») das obras ou do seu efeito estético.

No fim deste texto, encontramos uma resposta claramente insuficiente; mas que contém elementos curiosos:

Os Gregos eram crianças normais. O encanto que a sua arte exerce sobre nós não está em contradição com o carácter primitivo da sociedade em que ela se desenvolveu. Pelo contrário, é uma consequência desse carácter primitivo e está indissoluvelmente ligado ao facto de as condições sociais insuficientemente maduras em que esta arte nasceu – nem poderia ter nascido em condições diferentes – nunca mais poderem repetir-se.

A resposta contém um movimento pelo qual a literatura e a arte são entendidas ao mesmo tempo como construções socialmente determinadas (ou funções de um determinado estádio do desenvolvimento social) e como susceptíveis de continuarem activas para lá dessa determinação, o que é uma manifestação daquilo que na tradição marxista será designado como a autonomia relativa, neste caso, das produções artísticas. Por outro lado, a perenidade é apresentada como uma espécie de sobreposição ou de equivalência entre duas diferentes dimensões genéticas, uma espécie de história cultural da espécie aparece representada, em sentido figurado, na história de um indivíduo dessa espécie. Dito de outro modo, as idades ou as transformações sofridas por um ser desde a sua geração seriam uma forma de figurar a recapitulação ou concentração da memória da espécie no desenvolvimento de um indivíduo: os gregos, antepassados da nossa humanidade (da espécie humana), «infância histórica da humanidade», seriam a criança que cada um de nós foi (e já não podemos voltar a ser), ou a criança do adulto que hoje somos e nesse sentido a possibilidade, instituída pela arte, de podermos recuperar em nós essa criança que, de outro modo, nos é impossível voltar a ser. No texto a que nos temos referido, a «normalidade» dos Gregos, enquanto «crianças», é contraposta a outros tipos de crianças. Antes, tinha surgido no texto uma distinção entre a mitologia grega, enquanto pressuposto necessário da arte grega, e a «mitologia egípcia» que «jamais [...] teria podido proporcionar um terreno favorável à eclosão da arte grega». No texto, nada expressamente diz que os Egípcios não fossem também «crianças normais», ou que haja uma equivalência estrita ou uma coincidência entre a diferença entre crianças e a diferença entre as referidas mitologias; mesmo se se pode observar uma correlação suposta entre «infância histórica da humanidade» e «necessidade de uma mitologia» – uma «qualquer relação mitológica com a natureza». De qualquer modo, poderíamos recear a possibilidade de uma leitura que tornaria a «normalidade» dos Gregos, uma proposição etnocêntrica. Entretanto, Marx tinha já conseguido pensar a correlação entre capitalismo e «intercâmbio omnilateral» ou mundialização, tanto na «produção material» como na «produção espiritual», a ponto de poder escrever no Manifesto do Partido Comunista: «A unilateralidade e estreiteza nacionais tornam-se cada vez mais impossíveis, e das muitas literaturas nacionais e locais forma-se uma literatura mundial» (a expressão que sublinhei tinha sido usada, poucos anos antes por Goethe). Entretanto, basta o movimento de correcção dessa forma de etnocentrismo para nos pôr no caminho de uma outra fábula, pela qual a espécie – a humanidade (historicamente policêntrica) – teria então várias «infâncias históricas».

Em qualquer caso, o que nos interessa aqui não é tanto o conteúdo da resposta, mas o facto de a metáfora nuclear desta resposta ser uma metáfora antropológica, ou seja, o facto da resposta nos transportar da arte para o terreno de uma antropologia cultural e histórica.

Outras reflexões que abrem a possibilidade de pensar a literatura como uma forma de autoconstrução antropológica e histórica podem ser encontrados nos Manuscritos Económico-Filosóficos (de 1844). Por exemplo, nesta passagem:

Por outro lado, apreendido subjectivamente: tal como só a música desperta o sentido musical do homem, tal como para o ouvido não musical a mais bela música não tem nenhum sentido, não é nenhum objecto, porque o meu objecto só pode ser a confirmação de uma das minhas forças essenciais [...] os sentidos do homem social são outros sentidos que não os do não-social; somente pela riqueza objectivamente desdobrada da essência humana é em parte produzida, em parte desenvolvida a riqueza da sensibilidade humana subjectiva – um ouvido musical, um olho para a beleza da forma, somente em suma sentidos capazes de fruição humana, sentidos que se confirmam como forças essenciais humanas. Pois não só os 5 sentidos, mas também os chamados sentidos espirituais, os sentidos práticos (vontade, amor, etc.), numa palavra o sentido humano, a humanidade dos sentidos, apenas advém pela existência do seu objecto, pela Natureza humanizada.

A formação dos 5 sentidos é um trabalho de toda a história do mundo até hoje.

O vocabulário e algumas das formulações ecoam outras de Feuerbach, no 1.º capítulo de A Essência do Cristianismo, e em certos casos vão ser sujeitas a reconfigurações, na sua obra posterior, mas aqui já Marx começou a formular a noção de objectivação das forças humanas, e a arte aparece como uma dessas objectivações que participa no próprio processo de autoformação dos sentidos humanos e, por aí, da humanidade histórica dos humanos.

Um outro modo de descrever o processo pelo qual a objectivação entre sujeitos os forma encontramo-lo no texto de onde partimos, num momento em que «o objecto de arte» é chamado a desempenhar o papel de exemplo esclarecedor do processo que Marx analisa:

O objecto de arte – tal como qualquer outro produto – cria um público capaz de compreender e de apreciar a beleza. Portanto, a produção não cria somente um objecto para o sujeito, mas também um sujeito para o objecto. Logo, a produção gera o consumo: 1.º, fornecendo-lhe a sua matéria; 2.º, determinando o modo de consumo; 3.º, criando no consumidor a necessidade de produtos que começaram por ser simples objectos.

Agora, o que é especialmente importante pensar é a passagem de «simples objectos» a «produtos», que constitui aliás uma outra maneira de pensar a relação entre objectos e sentidos do texto anterior. Esta «passagem» decorre do modo como Marx reconstrói o conceito de produção e as relações entre esta e o consumo. Estas relações são descritas como envolvendo uma tripla identidade que implica a «criação» da alteridade. (1) A identidade é imediata: A produção é consumo (de meios e instrumentos, de matérias-primas e de energia do produtor) e o consumo é produção; (2) Produção e consumo são intermediários um do outro: «A produção cria a matéria do consumo enquanto objecto exterior; o consumo cria para a produção a necessidade enquanto objecto interno [Marx diz também «objecto figurado»], enquanto finalidade; (3) entretanto, a identidade entre produção e consumo não é apenas imediata, nem intermediária ou mediata – «cada um [a produção e o consumo], ao realizar-se, cria o outro; cria-se sob a forma do outro».

Quando avança que «só no consumo o produto conhece a sua realização última», Marx está a descrever um processo curiosamente muito próximo daquele que os estudos literários ao longo do século XX foram intermitentemente formulando, quando insistem que um texto só se realiza na leitura e que, enquanto não lido, ele é apenas uma pura virtualidade; está também a dizer que só no ou pelo consumo se restitui ao objecto produzido a sua finalidade ou objectivo, que de outro modo só existe nele como possibilidade, ou dito de outra maneira, só no consumo o objecto adquire concretamente um objectivo e se realiza como satisfação de uma necessidade: «De igual modo o consumo engendra a vocação do produtor, solicitando-lhe a finalidade da produção sob a forma de uma necessidade determinante» (itálico do texto).

Tenderíamos a dizer que estes «objectos» se tornam, na interacção, produtos e agentes da objectivação dos humanos enquanto produção e consumo; apropriação e autoformação.

Este problema pode também ser construído através de uma leitura da «dialéctica de utopia e ideologia», que Fredric Jameson constrói na conclusão da sua obra O Inconsciente Político (1981: 281-299). Tal dialéctica é elaborada no quadro de uma resposta à crítica segundo a qual o marxismo implicaria necessariamente «uma concepção funcional ou instrumental da cultura». Essa crítica é tão persistente quanto unilateral e preconceituosa. Jameson articula a sua resposta com a assunção do marxismo enquanto diagnose negativa, ou actividade de crítica do existente, ao mesmo tempo que argumenta a possibilidade de nele se encontrar também a dimensão de uma «hermenêutica positiva». Por outro lado, reformula o problema através da inversão da trágica formulação de Walter Benjamin – «não há nenhum documento de cultura que não seja também e ao mesmo tempo um documento de barbárie» (na tese VII, das Teses sobre a Filosofia da História). O problema será então colocado assim: «como é possível que um texto cultural que preenche uma função ideológica demonstrável, como obra hegemónica cujas categorias formais tanto quanto o seu conteúdo asseguram a legitimação desta ou daquela forma de domínio de classe – como é possível a esse texto incorporar um impulso propriamente utópico, ou fazer ressoar um valor universal inconsistente com os mais estreitos limites do privilégio de classe que marcam a sua mais imediata vocação ideológica?» (288) A resposta que será por várias vezes reformulada consiste, no fundamental (para o que aqui nos ocupa), em conceber uma unidade dialéctica, concreta, entre o ideológico e o utópico, pela qual «toda a ideologia em sentido forte [...] é utópica na sua própria natureza» (289); uma vez que exprime ou projecta «a unidade de uma comunidade», e que essas comunidades são «elas próprias figuras para a concreta vida colectiva de uma conseguida sociedade utópica ou sem classes». Anotemos que a referida unidade entre o ideológico e o utópico aparece em Jameson como uma construção do pensamento dialéctico, tomado como «a antecipação da lógica de uma comunidade ainda por vir» (286).

De momento, limitar-me-ei a sugerir que uma tal unidade é uma das versões (parcelares) do que na tradição marxista pode ser designado por «antropológico». Não temos que aceitar pagar o preço do uso de palavras como «utopia» ou «utópico». Aquilo que Jameson descreve como «dialéctica da utopia e da ideologia» pode antes ser concebido como uma dialéctica entre o histórico e o antropológico, pela qual a obra de arte ou a relação artística são formas de construção antrológica que não perdem o seu carácter histórico nem implicam a aceitação de uma «natureza humana» acima ou para além da história concreta das sociedades humanas.

«O Militante» - N.º 266 Setembro/Outubro de 2003