Acerca do materialismo histórico

 



Professor da Universidade de Lisboa

“Na produção social da sua vida os homens entram em determinadas relações, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a uma determinada etapa de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. A totalidade destas relações de produção forma a estrutura económica da sociedade, a base real sobre a qual se ergue uma superstrutura jurídica e política, e à qual correspondem determinadas formas da consciência social. É o modo de produção da vida material que condiciona o processo da vida social, política e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, inversamente, o seu ser social que determina a sua consciência.”

K. Marx, Para a crítica da economia política. Prefácio (1859).

1. Uma teoria em movimento

O materialismo histórico, fundado por Marx e Engels, é a concepção inseparavelmente dialéctica e materialista da sociedade e da história. Materialista, porque se fundamenta no mundo material como primeiro e anterior a todo o psiquismo humano. Dialéctica, porque reconhece a função determinante das contradições objectivas da sociedade como um conjunto de relações e processos explicativos da história social. Com Engels, a expressão “materialismo histórico”, primeiro nas línguas alemã e inglesa, tornou-se sinónima de “teoria marxista das formações económicas da sociedade” e de outras equivalentes no seu muito vasto campo de aplicação.

A génese desta concepção desde meados dos anos quarenta do século XIX, principalmente na obra de Marx, e o seu desenvolvimento até aos nossos dias, mostram que ela se constituiu como um poderoso instrumento crítico que pôs em movimento “uma revolução na ciência da história”. Engels caracterizou abreviadamente, em 1892, o materialismo histórico nos seguintes termos:

«concepção do curso da história mundial que vê a causa última e a grande força motriz de todos os acontecimentos históricos importantes no desenvolvimento económico da sociedade, nas mudanças dos modos de produção e de troca (...)»

– “concepção do curso da história mundial que vê a causa última e a grande força motriz de todos os acontecimentos históricos importantes no desenvolvimento económico da sociedade, nas mudanças dos modos de produção e de troca, na consequente divisão da sociedade em classes diferentes e nas lutas destas classes entre si”(1).

Mas pouco antes já ele tinha prevenido:

– “Segundo a concepção materialista da história, o momento em última instância determinante, na história, é a produção e reprodução da vida real. Nem Marx nem eu alguma vez afirmámos mais. Se agora alguém torce isso [afirmando] que o momento económico é o único determinante, transforma aquela proposição numa frase abstracta, absurda, que nada diz. A situação económica é a base, mas os diversos momentos da superstrutura (...) exercem também a sua influência sobre o curso das lutas históricas e determinam em muitos casos preponderantemente a forma delas”(2).

Ambas as declarações contêm elementos essenciais da concepção materialista da história, tal como ela se formou e difundiu até à primeira revolução socialista vitoriosa. No limiar particularmente atormentado da época contemporânea, em 1914, o fio condutor desta concepção levou Lénine a observar, por sua vez:

– “O marxismo abriu caminho ao estudo universal de todos os aspectos do processo de nascimento, desenvolvimento e declínio das formações económicas da sociedade, examinando o conjunto de todas as tendências contraditórias, ligando-as às condições de existência e de produção, exactamente determináveis, das diversas classes da sociedade, afastando o subjectivismo e o arbítrio na escolha das diversas ideias «dominantes» ou na sua interpretação, pondo a nu as raízes de todas as ideias e de todas as diferentes tendências, sem excepção, num dado estado das forças produtivas materiais”(3).

Fio condutor, precisamente, é uma das imagens que aparecem nos escritos dos clássicos do marxismo para caracterizar, em Marx, “o resultado geral” dos seus estudos até cerca de 1859, que tornaram possível a descoberta fundamental da concepção materialista da história, sucintamente exposta no Prefácio de Para a crítica da economia política, prefácio de que se retomou acima, em epígrafe, um passo significativo. Em Engels, para salientar a função mediadora e propedêutica dessa mesma concepção: conduzir ao estudo da história, no propósito de agir conscientemente sobre o seu curso. Em Lénine, para o reconhecimento político e organizativo de uma decisiva conformidade a leis: a teoria da luta de classes, “neste labirinto, neste caos aparente” que é a história social.

Engels foi não só co-autor mas também o primeiro historiador do materialismo histórico. Respondendo em 1893 a um pedido de fontes de informação a esse respeito, escreve ele: “Sobre a génese do materialismo histórico, na minha opinião, encontra V. no meu ‘Feuerbach’ (Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia alemã clássica) plenamente o suficiente, – o suplemento de Marx é mesmo a génese! Além disso, nos Prefácios para o Manifesto (nova edição de Berlim, 1892) e para as Revelações sobre o processo dos comunistas”(4).

Estas indicações, relativas a actividade teórico-prática, a investigação incessante, a lutas de ideias, a combates político-judiciais, – tudo isso consignado em escritos distribuídos por cerca de meio século, – mostram que se trata não apenas das origens da concepção materialista da história, mas também da etapa marxengelsiana da teoria do comunismo científico. Para mais, a Correspondência alemã e internacional de Engels, em particular depois da morte de Marx, traduz bem a diversidade e a amplidão das situações concretas decorrentes do crescimento do movimento operário e da influência actuante do marxismo junto dos “muitos milhões de operários de todos os países, desde a Sibéria à Califórnia”, no dizer de Engels a propósito da história do Manifesto comunista. Isto significa que não teria havido marxismo sem materialismo histórico. E inversamente.

Esta reciprocidade constitutiva inscreve-se na história inteira do marxismo e pode ser estudada numa vasta, complexa e contraditória documentação mundial feita de controvérsias teórico-científicas, de avanços genuínos e largamente inéditos no conhecimento histórico e social, de revisões e renúncias estratégicas, de fixações dogmáticas, de rejeição do dogma e do doutrinarismo autoritário, de embates político-ideológicos em cada país e na cena internacional. Em século e meio de vida activa do marxismo, o século XX tem, entre outras, uma particularidade de registar: foi ele o tempo histórico de formação das gerações vivas a que pertencem todos os que, velhos e novos, se situam e se reconhecem hoje nos caminhos abertos por Marx, mesmo quando (ou precisamente porque) já não bastam as respostas de ontem. Mas o ontem e o hoje, no tempo longo como na curta duração histórica, são inseparáveis para a investigação e a compreensão de muitos fenómenos e processos sociais, da estrutura e evolução das sociedades, das contradições fundamentais que as fazem mover-se e transformar-se. Deste modo, tendo em conta cada escala de tempo apropriada, tornar-se-ia improdutivo em essenciais necessidades de análise dissociar passado e presente na compreensão de situações e problemas tão diversos como, por exemplo,

– a contradição fundamental entre trabalho assalariado e capital financeiro;

– a descoberta do que se oculta na relação entre “o carácter de feitiço da mercadoria e o seu segredo” (Marx);

– a não verificação da expectativa histórica, desde Marx e Engels até meados do século XX, quanto à revolução socialista em países de capitalismo desenvolvido da Europa ocidental;

– a formação de campos antagónicos na guerra de agressão e na resistência armada dos oprimidos ou, mais geralmente, entre a política de guerra e a luta pela paz;

– a capacidade do imperialismo para dificultar e travar, mas não para imobilizar pela violência o curso da história contemporânea ou impedir os povos de decidirem do seu próprio destino;

– as premissas socio-económicas para a regulação racional da nossa interacção com a natureza, por oposição à pilhagem dos recursos da Terra e à devastação da biosfera;

– por último (mas de modo nenhum no fim da lista possível), o desenvolvimento histórico, considerado nas suas raízes sociais, do materialismo e do idealismo como orientações fundamentais e opostas em filosofia e em ciência.

2. No centro de contradições fundamentais

Entre os fenómenos sociais de grande relevância e os então problemas novos com que o materialismo histórico necessariamente se defrontou nos primeiros decénios do século XX, podem-se assinalar os seguintes:

– o processo de transformação do capitalismo pré-monopolista em imperialismo;

– o desenvolvimento e a preponderância, na II Internacional e na sua área de influência, de linhas ideológicas e práticas políticas estranhas ao marxismo ou marcadas pelo afastamento reformista e a revisão do marxismo;

– a acumulação de factores de crise revolucionária na Rússia tsarista e a deslocação gradual para este país do centro de gravidade do movimento revolucionário europeu;

– o agravamento das contradições interimperialistas e a deflagração da primeira guerra mundial;

– a Revolução Socialista de Outubro de 1917.

Cada um destes “marcos milenários”, o primeiro e o último em especial, constitui um poderoso sistema de interdependências, de contradições e de antagonismos socio-históricos, que balizam e resumem o processo de transição entre duas épocas do mundo contemporâneo – “esforço heróico e sofrimento” de uma geração a desaparecer “sob o fardo de uma tarefa sobrehumana: toda uma suma do mundo (...), uma humanidade nova por refazer”(5). Não surpreende, pois, que Lénine se tenha ocupado cuidadosamente desta “linha nodal” de qualidades novas a emergirem num tempo novo, e que o tenha feito levando mais longe a categoria de época, herdada de Marx. Primeiro, a propósito do imperialismo e da guerra mundial de 1914-1918: “não se pode compreender a guerra presente sem compreender a época”. Depois, no âmbito das tarefas e problemas inéditos da Revolução e da III Internacional: “coube-nos a sorte de iniciar a construção do Estado soviético e de introduzir, com isso, uma época nova da história mundial”(6).

Nestas circunstâncias, a teoria estava convocada não só para comparecer diante do curso mundial dos acontecimentos, mas antes de tudo para dar provas enquanto força material. O processo revolucionário por excelência que era o nascimento brusco e o incerto destino inicial de uma nova formação económica da sociedade – nas condições, tornadas inevitáveis, dos começos do socialismo num só país – tinha de assumir uma importância excepcional para a concepção materialista da história. Em todos os aspectos essenciais e mais do que nunca até então, era do marxismo em acto que se tratava. Três quartos de século depois do Manifesto, ecoavam pelo mundo de maneira historicamente justa as suas palavras lúcidas: “As proposições teóricas dos comunistas não assentam de modo nenhum em ideias, em princípios inventados ou descobertos por este ou por aquele aperfeiçoador do mundo. São apenas expressões gerais de relações efectivas de uma luta de classes que existe, de um movimento histórico que se processa diante dos nossos olhos”(7).

Sabe-se que depois da morte prematura de Lénine (1924) o conceito de “leninismo” tornou-se equivalente, no movimento comunista internacional, de “marxismo da época contemporânea”. Este facto requer estudo apropriado, pelas consequências de grande alcance que veio a ter, desde os primeiros anos da III Internacional (1919-1943), na formação da base teórica, organizativa e programática de numerosos Partidos comunistas e operários em todos os continentes. No conjunto, essas consequências incluem, ao mesmo tempo ou sucessivamente (neste texto sem indicação exaustiva e sem limites cronológicos precisos): desenvolvimento criador, abertura a um mundo de novos problemas e necessidades teórico-práticas; alfabetização política de dezenas, depois centenas de milhões de oprimidos, incessante aprendizagem com a experiência e a luta, formação de muitos milhares de revolucionários profissionais em todo o mundo; a discussão leal, a diferença de análise com objectivos comuns, mas também o dissídio latente, a cisão sectária, a imposição despótica, a pena capital e a reabilitação tardia; a simplificação que se compreende e aceita, mas também o empobrecimento e a dogmatização, já não apenas escolares, da teoria; novos avanços e novos campos abertos à investigação, à discussão e reflexão internacionais, à generalização e diversificação de resultados.

Quer dizer: sob a envergadura imensa da obra de Lénine (ainda hoje mal conhecida) e do leninismo acolheu-se toda a complexidade da vida histórica de povos, nações, classes operárias temperadas na luta directa, forças sociais emergentes, pequenos e grandes partidos revolucionários, crescimento disseminado e plurilateral do conhecimento das sociedades e da história. Faltam a estas linhas a competência isolada e a leviandade para levar adiante a evocação desta complexidade. Por isso e abreviadamente que fosse (mas teria aqui cabimento o abreviado?), o estudo do “marxismo da época contemporânea” iria muito além dos propósitos deste artigo.

Que se pode dizer, no entanto, da etapa propriamente leniniana (depois leninista) do materialismo histórico?

Considerem-se apenas os seguintes aspectos característicos:

– a pesquisa permanente sob todas as formas em ciência social e política, a flexibilidade de métodos de análise específicos, a coerência da visão de conjunto, a fundamentação de novos laços orgânicos entre espírito científico e espírito de partido. Exemplos:

a) o estudo da desigualdade do desenvolvimento económico e político do capitalismo mundial, segundo cada situação nacional e colonial, tendo em vista a determinação adequada das diferenças de táctica e estratégia no seio do que desde então se chamou o processo revolucionário mundial;

b) a focagem do idealismo gnoseológico (caso do empiriocriticismo) sob o ângulo da luta dos partidos em filosofia, do esclarecimento das raízes sociais e da função social da actividade científica;

c) o apelo ao estudo dos autores materialistas do passado e da dialéctica idealista de Hegel como tarefa do materialismo militante.

– a teoria da revolução socialista contemporânea do imperialismo, isto é, a visão de conjunto fundada nas transformações mais profundas, complexas e prolongadas, como processo de transição sem precedentes análogos entre formações económicas, na situação concreta de um imenso país, desorganizado pela guerra imperialista, semi-europeu e semi-asiático.

– a continuação original das teses e descobertas de Marx e Engels sobre a questão do Estado, a intransigente luta prática e de princípio pela elevação do poder de Estado proletário e camponês ao nível de ciência e arte da direcção da nova sociedade.

Sem a intenção de qualquer ajuizamento comparado, terá de bastar aqui a simples menção da obra escrita e da biografia de uma Rosa Luxemburg, de um Gramsci, de um Bukhárine ou de um Stáline e, em cada um, a concepção respectiva do materialismo histórico, para se entrever a que ponto e em que sentido não houve nem podia haver “estrada” nacional ou internacional já pronta e acabada para a ligação da teoria com a revolução. A que ponto e em que sentido, no seio mesmo da etapa leniniana do desenvolvimento do marxismo, podem caber no âmbito de análise do materialismo histórico problemas tão relevantes como:

– a génese, o conteúdo e o desfecho prático de controvérsias ideológicas e culturais, mas também tácticas e estratégicas, de alcance internacional, na Alemanha de 1914-1918, na Rússia soviética dos anos 20, ou do fundo da prisão fascista italiana de Turi, no começo dos anos 30;

– as causas e condições de um processo revolucionário “periférico”, a sua derrota ou a sua vitória e o papel do factor subjectivo entre as massas num caso e no outro;

– as formas de actividade criadora, a inteligência crítica, a coragem intelectual, as respostas individuais ou colectivas adequadas a cada tipo de novas situações, incluindo na esfera de responsabilidade teórica e ético-política de personalidades dirigentes, como as mencionadas acima.

3. O desenvolvimento, a esfinge e a verdade como processo

De um modo mais geral, pode-se pensar que controvérsias e debates informados e esclarecedores relativos ao materialismo histórico dentro e fora do leninismo, até à actualidade imediata, constituem ao mesmo tempo um reflexo e, em certa medida, uma condição do próprio desenvolvimento da teoria. Parece-me, de facto, que toda a controvérsia de fundo respeitante a Marx, a Lénine ou ao marxismo-leninismo, diz respeito ao materialismo histórico desde que incida também, entre outras coisas, sobre a prática social transformadora e sobre a natureza de classe das suas causas e obstáculos; sobre as alterações de estrutura e composição de uma sociedade e sobre os conteúdos de consciência social daí decorrentes; ou ainda sobre o próprio conceito leniniano de época contemporânea, sobre o seu devir interno e a necessária prospecção periodizadora dos seus actuais limites históricos.

Costumava dizer Magalhães-Vilhena que não conhecia uma só análise inteiramente exacta da obra de Marx por autores não-marxistas. A ser ela mesma exacta e a manter-se hoje a singular validade dessa observação irónica, ela seria um testemunho mais da quota-parte de arbítrio e contingência

que pode afectar, a todos os níveis, o multiforme quadro de relações entre investigação, discussão e reprodução social dos seus resultados. Sem exceptuar os próprios marxistas de responsabilidades especiais neste terreno, a observação impele-os a não confundirem o exacto conhecimento dos textos com uma “fidelidade” sem vida à letra dos clássicos.

Intervém aqui o pressuposto do desenvolvimento, assente na identidade histórica da teoria. O desenvolvimento é uma forma de existência do marxismo, dizemos muitas vezes nós próprios, marxistas. A afirmação comporta exigências da maior importância, entre as quais a de identificar e reconhecer o novo segundo critérios. Abrangendo a totalidade do real – natureza, sociedade, pensamento – o novo, para ser pensado concretamente, convoca em cada caso todo um cortejo de categorias do pensamento cuja conexão dialéctica não está antecipadamente dada (a não ser, em certa medida, nos processos cíclicos). A fluidez ou as convulsões de um processo, a especificidade ou o carácter geral de uma mudança, a novidade relativa ou inédita de um desenvolvimento concreto, não são compatíveis com a fixação a priori do movimento real. Mesmo a previsão é dialéctica, quando articula com realismo as categorias de possibilidade (abstracta, concreta, real), de realidade efectiva e de necessidade.

A dificuldade teórica que consiste em pensar o novo na sua dimensão social inscreve-se numa lógica do desenvolvimento e supõe ao mesmo tempo complementaridade e delimitação de método na conexão profunda de um certo conjunto de mudanças sociais. A dificuldade aparenta-se, desse modo, à complexidade do conceito sistémico-materialista de “problema social”, considerado na sua natureza objectiva, na sua estrutura e na sua solução: “S. G. Strumiline comparou o problema social a uma esfinge que enfrenta a humanidade com um dilema: – resolve-me ou faço-te em pedaços. Esta frase é uma expressão adequada para o facto de que a falência no cumprimento dos requisitos de um problema histórico premente carrega consigo o crescimento da desorganização na sociedade”(8).

É uma evidência que o novo só é tal em correlação com o antigo no interior de um todo, neste caso uma sociedade, um conjunto de relações sociais governado por leis objectivas de funcionamento ou de transformação. Aí se inclui, separada ou conjuntamente (segundo a estrutura de classes e o estádio de desenvolvimento de cada sociedade) não só a possibilidade real da diferença que emerge da unidade, mas também a da contradição como diferença desenvolvida ou, perto de um limite histórico, a efectividade do antagonismo como contradição irreconciliável. Mas então isso significa que o dilema de Strumiline só se pode tornar “solução do enigma da esfinge” (como antes dissera Engels a outro propósito) pela actividade consciente dos homens em conformidade com certas leis objectivas. Ao que me parece, o pressuposto do desenvolvimento conflui assim, no essencial, para o problema da dialéctica da história como processo conforme a leis.

Pelo menos uma outra exigência, que tem em comum com o reconhecimento do novo um carácter de princípio, se apresenta ainda à investigação e à discussão: é a reivindicação da verdade como processo de conhecimento, de que se retomam aqui os próprios termos em que foi formulada pelo jovem jornalista político Karl Marx: “À verdade”, escrevia ele em 1842 nas «Observações sobre a mais recente instrução prussiana de censura», “pertence não só o resultado, mas também o caminho. A investigação da verdade tem de ser ela mesma verdadeira; a investigação verdadeira é a verdade desdobrada (...)”(9).

Não ficou sem consequências esta exigência crítica e metodológica, que ainda hoje pode cobrir de vergonha mais de um editorialista da imprensa do capital entre nós. Vejo sobretudo nela uma perspectiva antecipadora, que traduz rasgos essenciais da reciprocidade activa entre o que virá a ser o materialismo histórico e a investigação especializada sobre a sociedade e a história.

Notas:

(1) F. Engels, "Do socialismo utópico ao socialismo científico", in: Marx/Engels, Obras Escolhidas em três tomos (a seguir: OE), III, Ed. Avante!/Progresso, Lisboa/Moscovo, 1985, p. 114. – Trad. do inglês original aqui ligeiramente modificada por confronto com a ed. alemã. – É uma curiosidade sem significado antecipador que, já em 1837, K. Rosenkranz, discípulo e futuro biógrafo de Hegel, tenha usado a expressão "materialismo histórico grosseiro" em contexto alheio e anterior ao pensamento de Marx e Engels.

(2) Carta de Engels a J. Bloch, de 21-22 de Setembro de 1890, OE, III, p. 547.

(3) V. I. Lénine, Karl Marx, in: Obras Escolhidas em seis tomos (a seguir: OE), 2, Ed. Avante!/Progresso, Lisboa/Moscovo, 1984, pp. 187 sq. – Trad. ligeiramente modificada por confronto com a 4ª ed. alemã das Obras de Lénine.

(4) Carta de Engels a V. J. Schmuilov, de 7 de Fevereiro de 1893, in: Marx/Engels, Werke, 39, p. 25. – A indicação sobre «o suplemento de Marx» refere-se às "Teses sobre Feuerbach", publicadas pela primeira vez em 1888, por Engels, como anexo ao seu Ludwig Feuerbach. – As Revelações sobre o processo dos comunistas é o título de um folheto de Marx, de 1853, denunciando as provocações da polícia prussiana e a vaga de prisões de militantes da Liga dos Comunistas.

(5) R. Rolland, "Adieu à Jean-Christophe" (posfácio de 1912), in: Les chefs-d'oeuvre de Romain Rolland, 5, Paris, 1970, p. 409.

(6) Respectivamente em: carta de Lénine a G. Zinoviev, de Agosto de 1916 (W. I. Lenin, Werke, 35, p. 205) e em "Para o 4º aniversário da Revolução de Outubro", OE, 5, p. 295.

(7) Marx/Engels, OE, I, p. 118.

(8) V. I. Kutsenko, "The social problem: objective nature, structure, solution", in: Philosophy in the USSR. Problems of historical materialism, Moscow, progress Publ., 1981, p. 137.

(9) Mega2 , I / 1, p. 101.

 

 

«O Militante» - N.º 264 Maio/Junho de 2003