Exploração do trabalho
e organização da esmola



Membro do Gabinete de Estudos Sociais (GES)

Se pretendessemos arrolar algumas tónicas das políticas governativas do post-25 de Novembro de 1975 até aos nossos dias, não teríamos qualquer dificuldade em identificar as grandes linhas de acção: recuperar e reconstituir os grandes grupos económicos; alienar e (ou) destruir o sector público da economia; descaracterizar e (ou) aniquilar as conquistas de Abril; reduzir os custos de produção à custa do trabalho e proporcionar amplas benesses ao capital nacional e estrangeiro.

Sucessivos governos que se alternaram no poder, irmanaram-se na diminuição dos direitos de quem trabalha (com cortes a prestações à moda PS ou a pronto, segundo o estilo PSD/CDS-PP). E, na frente externa, sempre de cócoras, foram-se destacando pelo seu “servilismo comunitário” perante os ditames de Bruxelas.

Em nome da modernidade, as malfeitorias que aqui ou acolá foram sendo introduzidas, em pacotes ou saquinhos, de nova leis e regulamentos laborais, recuperaram formas arcaicas de exploração do trabalho humano e construíram, meticulosamente, uma geração de jovens trabalhadores sem direitos, numa sociedade onde a erosão do emprego e a transformação do desemprego num fenómeno permanente e em escala maciça, designado pelos tecnocratas como “desemprego estrutural”, asseguram um vasto exército de reserva de mão-de-obra à acumulação capitalista.

Mas..., a paulatina recuperação dos métodos e das políticas características do período anterior ao 25 de Abril de 1974, foram permanecendo teimosamente inacabadas, dada a tenaz resistência dos trabalhadores e das suas organizações. Para a direita política e para o patronato, continuava a faltar uma “harmonização” do perverso cacharolete normativo, pacientemente urdido pela classe dominante, ao longo de um quarto de século.

Assim, o ante-projecto do Código “de Exploração” do Trabalho do PSD/CDS-PP prevê, como é natural, entre outros recuos civilizacionais: o enfraquecimento dos mecanismos de protecção do trabalhador; o alargamento do conceito de justa causa de despedimento; a imposição patronal do regime de isenção de horário de trabalho e o aumento da precariedade do emprego.

Em síntese, e recordando Marx e Engels: o direito não é outra coisa senão a vontade da classe dominante erigida em lei!

Perante uma tal ofensiva do Estado capitalista só há um caminho, aquele que os trabalhadores bem conhecem desde a arrancada do movimento operário e sindical internacional – lutar e resistir de forma organizada contra aqueles que, mais uma vez, exigindo o acatamento das leis que expressam a sua vontade, pretendem determinar a legalidade e a ilegalidade que lhes assegure e defenda os interesses como classe dominante.

Contudo, a paixão avara pelo dinheiro de quem trabalha não se queda na ofensiva contra os direitos laborais individuais e colectivos.

A proposta de Lei de Bases Gerais do Sistema de Segurança Social avançada pela “tecnocracia social cristã”, dando continuidade às teses e alçapões da pretérita política socialista, retoma a argumentação técnica dos tectos falsos contributivos sob o soalho flutuante dos salários.

Pecando por falta de originalidade na proposição, o Governo PSD/CDS-PP retoma a ofensiva contra o sistema público de Segurança Social constitucionalmente consagrado, lançando piedosamente às ortigas os princípios fundamentais da solidariedade e universalidade.

Escancaram-se as portas à agiotagem providencial dos sistemas complementares privados, reduzem-se os custos sociais do trabalho e abrem-se os tão apetecidos canais de escoamento e empobrecimento do orçamento da Segurança Social Pública. Que dizer?

É de há muito sabido que a “tecnocracia social cristã” tem sempre palavras de comovida preocupação pela sorte dos excluídos, mas... os caminhos da Providência são insondáveis e o pauperismo é uma fatalidade, num mundo de alguns ricos e biliões de pobres.

Considerando essa dicotomia inquestionável, daí irradia o sentido pragmático da “tecnocracia social cristã”. Para eles, os ilustrados, educados e bem-nascidos devem gerir o tesouro público, competindo ao “seu” Estado organizar e gerir a esmola, com método e discernimento.

Se existem ricos e pobres, é natural coexistirem reformados ricos e reformados pobres, pensionistas ricos e pensionistas pobres, em síntese: os ricos receberão do sistema público e privado, e os pobres ficam-se pelo público, enquanto houver receita.

E, se os trabalhadores se alhearem da luta política ou dela desistirem, tempos virão onde a caridade será disciplinada e a solidariedade aos desprotegidos devidamente regulamentada, tornando a esmola acessível aos que exibirem documentos oficialmente autenticados, atestando: a sua miséria; o não apoiarem a prática do aborto; o não viverem em mancebia e repudiarem o sindicalismo satânico.

Com tais requisitos, haverá uma tarimba e um caldo diário para os ex cluídos, patrocinado por uma qualquer multinacional de sopas instantâneas, os pobres perderão o direito à fome, não haverá circo gratuito à moda romana mas estádios de futebol de portas abertas, e a classe dominante poderá então dormir descansada.

Já há muitos séculos alguém afirmou que "a História é a mestra da Vida" e o capitalismo só não exibe as garras quando teme que lhas cortem ou quando considera inoportuno projectá-las.

Para nós comunistas, a exploração do homem pelo homem não pode ser objecto de reforma, e quando lutamos contra a repartição da riqueza no quadro da produção capitalista, fazemo-lo tendo em vista a supressão da própria produção capitalista, mesmo que em cada momento do combate tenhamos de dar “um passo à frente e dois atrás”.

«O Militante» - N.º 261 Novembro/Dezembro de 2002