O direito do trabalho dignifica o homem e a mulher |
O trabalho reuniu em todos os tipos de sociedades, desde a esclavagista até à capitalista passando pela feudal, uma característica comum: a subordinação de quem vive do trabalho prestado a outrem – quer fosse o rei, o imperador, o senhor feudal, o capitalista ou, como se diz actualmente, a entidade patronal.
Historicamente, está provado, só os países que se organizaram e apostaram nas forças do trabalho atingiram patamares de bem-estar elevados, mas sempre por força daqueles que produziram a riqueza – os trabalhadores.
Foi com a revolução industrial que a ideia de subordinação de quem vive do seu trabalho se acentuou, e a dependência daqueles que têm como única fonte de ganho o trabalho alcançou nova dimensão e novas necessidades de protecção.
Com o desenvolvimento da produção industrial em grande escala, os operários deixaram de ter outra fonte de rendimentos que não fosse a sua força de trabalho, tornando-os totalmente dependentes dos detentores dos meios de produção.
É face a esta dependência económica que emergiu a necessidade de assegurar normas de protecção que permitissem a liberdade daqueles que, pela necessidade de sobreviver, não tinham qualquer possibilidade de decidir e de escolher – como muito bem escrevia Lacordaire, em meados do séc. XIX, para atacar a fúria liberalizante da revolução: “quer entre o forte e o fraco, quer entre o rico e o pobre, é a lei que liberta e a liberdade que oprime”.
As primeiras leis protectoras dos trabalhadores por conta de outrem aparecem, em tempos diferentes, em conformidade com o desenvolvimento da capacidade de organização dos trabalhadores e esta, por sua vez, em resultado do grau de desenvolvimento industrial dos países.
As leis enquanto normas de protecção dos trabalhadores, por serem a parte mais débil na relação de trabalho, são ao mesmo tempo um factor de combate à exploração extrema a que os trabalhadores estavam e estão sujeitos, razão pela qual, também hoje, permanece a necessidade de que as normas do direito do trabalho continuem a ser essenciais para quem só tem como única fonte de rendimentos, para viver, a sua força de trabalho.
As primeiras leis protectoras foram publicadas, em Portugal, na última década do século XIX. Dirigidas às mulheres e aos jovens, tiveram como fundamento razões higieno-sanitárias, dado na época da sua publicação as condições de trabalho, de higiene e sanidade serem de tal modo graves que eram um perigo para a saúde pública em geral, mas em particular para o desenvolvimento das crianças e para a função genética da mulher na reprodução da espécie.
Foi na linha de protecção dos trabalhadores que a Organização Internacional do Trabalho (OIT), criada após a I Guerra Mundial em consequência do Tratado de Versalhes, desenvolveu toda a sua actividade normativa, desde 1919, data em que foi publicada a Convenção n.º 1 (Duração do Trabalho na Indústria).
As normas do direito do trabalho têm de ser normas de protecção da parte mais débil, porque só assim garantem, efectivamente, a dignidade de quem trabalha.
No direito do trabalho português em vigor os princípios de protecção do mais fraco estão garantidos pelo DL 49.408, de 24/11/69, que nos artºs 12º e 13º e no DL 519-C/79 de 29/12, artº 14º e artº 6º, nº 1, alínea c), dispõem que “A regulamentação estabelecida por qualquer dos modos referidos no artigo 2.º, não pode ser afastada pelos contratos individuais de trabalho, salvo para estabelecer condições mais favoráveis para os trabalhadores” e as convenções colectivas não podem “incluir qualquer disposição que importe para os trabalhadores tratamento menos favorável do estabelecido por lei”.
As normas do direito do trabalho, tanto as que regulam as relações colectivas como as individuais, asseguram uma protecção mínima que não pode ser revogável por vontade das partes por se saber que o trabalhador vive e tem como única fonte de ganho o seu trabalho, não podendo formar a sua vontade sem constrangimentos nem contratar as condições de trabalho livremente por estar numa relação de dependência económica. É por essa razão de interesse público – protecção da dignidade humana do trabalhador – que tais normas de protecção têm de existir.
As normas mínimas de protecção visam impedir o retrocesso social e assegurar a evolução no progresso, como única garantia de existência numa sociedade menos justa.
As garantias asseguradas pelas normas legais gerais são complementadas pelas normas das convenções colectivas de trabalho que, no sistema de relações laborais em vigor, são uma inequívoca garantia da existência de uma verdadeira integração social. São as convenções colectivas de trabalho que, ao estabelecerem direitos, para além do consagrado na lei, garantem um nível de protecção adequada.
Os trabalhadores têm hoje em Portugal um nível de vida, de protecção e de direitos que são sentidos como direitos naturais, mas que são devidos por força dos Contratos Colectivos de Trabalho conquistados com o 25 de Abril e da luta desenvolvida antes e depois desta data histórica.
Os direitos consagrados nas convenções colectivas têm enorme importância no nível de vida dos trabalhadores; se porventura se perdessem o retrocesso nas condições de vida e de trabalho seria de muitas décadas, tendo presente que para alguns sectores de actividade a capacidade de ganho pode ser diminuída em mais de 30% se as normas originárias das convenções colectivas de trabalho desaparecessem. São os casos:
- do pagamento do trabalho nocturno e por turnos;
- do direito a dois dias de descanso semanal;
- no direito à organização da vida familiar;
- no direito a receber o salário sem ser discriminado;
- na existência de carreiras profissionais;
- no pagamento do subsídio de férias e da retribuição
de férias;
- na definição das funções inerentes ao objecto
do contrato.
O projecto de Código do Trabalho apresentado pelo Governo PSD/CDS-PP altera todos os princípios básicos que conformam o direito do trabalho como disciplina autónoma do Direito e tem como objectivo básico o aumento da exploração dos trabalhadores e visa empobrecer a sociedade portuguesa, porquanto trará como consequência o aumento da exclusão, atirando com maior quantidade de trabalhadores para áreas marginais da sociedade.
O projecto de Código do Trabalho elimina o princípio de conteúdo garantístico consagrado no sistema de relações individuais e colectivas em Portugal.
A análise dos artºs 4º e 542º daquele projecto, permite tornar claro o alcance do atrás referido.
No artº 4º dispõe-se que: “... as normas deste Código estabelecem um conteúdo mínimo de protecção do trabalhador, sempre que delas não resultar o contrário” e no 542º que “... as disposições dos instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho estabelecem um conteúdo mínimo de protecção do trabalhador, sempre que delas não resultar o contrário”.
Numa leitura articulada é dito que o conteúdo das leis e dos contratos colectivos de trabalho (IRCT) são de conteúdo mínimo, o que numa interpretação menos cuidada nos levaria a concluir por as normas do direito do trabalho, quer as que têm como fonte a lei quer as que têm como fonte os Contratos Colectivos, são normas protectoras, pelo que não existe qualquer perigo de retrocesso nos direitos de quem trabalha.
A leitura apressada que possa ser feita do projecto é enganosa, porquanto na estrutura de relações de trabalho em Portugal a grande maioria dos direitos está consagrada nas convenções colectivas de trabalho enquanto que no projecto de Código prevê-se a caducidade dos contratos (artº 568º) ao fim de 12 meses. Isto é, se outro período mais lato não estiver consagrado, a vigência pode atingir no máximo 24 meses, atendendo à possibilidade que o Código prevê da renovação poder ser feita por mais doze meses, nos termos do artº 569º.
No artº 571º do citado projecto, consagra-se a possibilidade da denúncia da convenção colectiva por qualquer das partes ao fim de 9 meses, pelo que a vigência dos Contratos Colectivos de Trabalho, os Acordos Colectivos de Trabalho e dos Acordos de Empresa, mesmo quando consagrem um período de vigência superior, nunca durariam mais do que 12 meses, dado o patronato ter todo o interesse em acabar com os direitos dos trabalhadores.
Existem outras matérias fundamentais que atacam os direitos dos trabalhadores no projecto de Código de Trabalho, as quais visam aumentar ainda mais a exploração de quem vive do seu trabalho. Com efeito, a consagração do despedimento sem justa causa, nas empresas com menos de 50 trabalhadores, dos técnicos e quadros; a diminuição da retribuição, com alteração das componentes retributiva através da recondução desta à retribuição base e diuturnidade; a precariedade dos contratos a termo certo, que permitirá ao patronato manter os trabalhadores neste tipo de contratação por tempo indefinido; a introdução dos direitos de personalidade, para permitir que as entidades patronais possam violar o direito de privacidade e assim conseguir impedir que os trabalhadores portadores de doenças tenham acesso ao trabalho; o ataque ao direito de autonomia colectiva dos trabalhadores, com a consagração através da limitação do direito de greve e do afastamento do direito à contratação colectiva atribuída na Constituição e nas Convenções da OIT aos sindicatos.
O projecto de Código de Trabalho do Governo PSD/CDS-PP é um instrumento de retrocesso social que tem como objectivos:
– aumentar a exploração dos trabalhadores;
– fazer o ajuste de contas com o 25 de Abril e com os direitos que foram
alcançados pela luta dos trabalhadores;
– modificar a relação de forças nos locais de trabalho
para manietar os trabalhadores e as suas organizações representativas
e para impedir a luta por melhores condições de trabalho;
– fazer regressar ao passado as relações de trabalho para
permitir satisfazer os desejos insaciáveis dos exploradores.
É tempo de todos impedirem que o crime aconteça! Temos que nos
mobilizar mobilizando! Temos de dizer não a quem tudo nos quer tirar,
inclusive o direito de viver e trabalhar com dignidade.
«O Militante» - N.º 261 Novembro/Dezembro de 2002