A Urgência de Contar

Contos de Mulheres dos Anos 40 *

 

Ao encontro do outro realismo crítico dos anos quarentas contos seleccionados para inclusão na presente antologia respondem, por conseguinte, ao objectivo de representar a ficção das mulheres nos anos quarenta em relação ao que se me afigura serem os focos principais de preocupação política, social e ideológica nela relevada. Em consonância com o debatido problema da «literatura feminina», problema que tem no seu âmago o estatuto marginal da mulher escritora, o conto de Irene Lisboa, «Um Dito», figura, assim, como marco interpretativo inicial. O incidente individual ficcionalizado aponta para uma situação extratextual possivelmente generalizada a outras mulheres escritoras, cuja obra é mais ou menos ignorada, mais ou menos apropriada pela instituição crítica então dominante. Tendo em conta que a subsequente ordem dos contos pretende sugerir de que modo obedecem a uma urgência de representação, julgamento e apelo de justiça, outro conto de Irene Lisboa, «O Lavra», funciona aqui como segundo marco interpretativo. A dimensão simultaneamente documental e filosófica suscitada pela imagem do elevador que leva e traz passageiros do Torel — tribunal, prisão, junto a hospital, morgue — leva-nos com insistência a apreciar o contraste entre a passagem do tempo histórico e a circularidade (ou fixidez) de quotidianos díspares, desencontrados, densos no seu isolamento e solidão. O olhar que os inscreve (e, desse modo, os congela) no tempo-espaço da narração, sugerido pelo tempo-espaço do próprio «Lavra», reconhece-se tão culpado como todos os outros da sorte de cada eventual passageiro/ «gato» esmagado por uma «engrenagem» que está fora do seu controlo. O «grito» que a narradora não consegue dar espraia-se, no entanto, na sua invenção criadora, numa escrita ética que é tanto libelo de justiça social como reflexão autocrítica sobre a própria violência da representação.

Se bem que essa consciência metaficcional não se faça registar nos contos que a seguir se transcrevem, cada um deles pode ser visto como um desenvolvimento narrativo de situações dramáticas e casos-figuras esboçados na cena de escrita aberta por «O Lavra». Temos, assim, um primeiro grupo de três estórias que chama a atenção para o modo como o passado — vivências históricas, modelos de identidade, convenções culturais — pesa sobre a realidade presente, como se de um fantasma/algoz se tratasse. Em «A mulher que amou uma sombra», de Lília da Fonseca «A alma da velha casa», de Natércia Freire e «Todos têm o seu sonho», de Raquel Bastos, a crítica da ideologia tradicionalista, se não passadista, faz-se evidente em quotidianos de mulheres e homens reduzidos a autómatos do passado. Em contraste com estes, manifestam-se exemplos positivos de personagens femininos que enfrentam de modo pragmático as necessidades materiais, bem como os anseios, de um presente em movimento.

Que a possibilidade de acesso a vias de libertação e independência é ainda seriamente limitada por preconceitos fundamentados no critério de moralidade dupla que rege os sexos é dramatizado nos três contos seguintes: «Desilusão», de Patrícia Joyce, «História triste», de Raquel Bastos, e «Catarina», de Matilde Rosa Araújo. Estes centram-se em casos de mulheres de extracção burguesa e pequeno-burguesa, que representam de maneira diversa a frustração e a humilhação a que levam as suas carências físicas e emocionais. Os seus desafios à ordem da moral familiar confrontam-nas com a ameaça, o estigma ou a realidade da prostituição, situação denunciada ironicamente por relação à mulher dita honesta em potência, afinal também mulher vendida no casamento burguês.

Uma das consequências dos mitos culturais que operam para manter a mulher estritamente presa e dependente do casamento, por oposição ao trabalho, para a sua inserção social é explorada em «Aquário», de Matilde Rosa Araújo, «Mulher por conta», de Maria Archer e «Antes comer pedras», de Heloísa Cid. Os dois primeiros apresentam mulheres de procedências humildes cujos objectivos de ascensão social ultimamente as reduzem ao papel de esposa e concubina respectivamente, mais cínicas que alienadas, explorando, em «Aquário», a falsa platina da aparência de ordem social. Em contraste com estas personagens, cujo «trabalho» se reduz de alguma forma a sexo vendido, «Antes comer pedras» apresenta uma trabalhadora rural, mãe solteira, que se recusa à exploração sexual por parte do patrão como se recusa a pactuar com as expectativas culturais de passividade, abnegação e silêncio femininos, em particular no caso da mulher-mãe desprotegida.

A exposição crítica, em alguns casos mordaz, das diversas contrafaces da «alegria do lar» humilde e rural salazarista (epitomizada no famoso cartaz «Deus, Pátria, Família: A Trilogia da Educação Nacional») é levada mais longe nos seguintes grupos de contos incluídos nesta colecção. Os três primeiros, «Noiva sem noivo», de Natércia Freire, «A vida tem preço» e «Maternidade», estes dois últimos de Maria Archer, põem em cheque algumas das contradições, violências raciais e injustiças sociais e legais na base da família-nação colonialista, resultando no suicídio tanto literal quanto metafórico das suas vítimas — aquelas que são, no fundo, suas inconscientes cúmplices por via de um suposto «bom casamento». Porque o que parece mover todos os personagens femininos é a necessidade económica, o espectro da pobreza e abandono fazendo-se sentir de um modo ou outro em cada classe social, quase a encerrar o volume apresentam-se três casos extremos de destituição económica e emocional. Juntamente com «Maternidade» antes referido, «Vidas cercadas», de Heloísa Cid, «Um filho mais», de Manuela Porto e «Anda uma doida na rua», de Maria Archer constituem acaso os exemplos mais bem conseguidos do género incluídos nesta colecção. A representação de experiências-limite segue um crescendo que resulta tanto mais perturbante quanto se vai fazendo evidente o quanto prepotências de classe, preconceitos de sexo e/ou leis civis inumanas acabam por aniquilar os protagonistas. Longe da «nobre missão» que o Estado nacionalista quereria impor às mulheres portuguesas, a maternidade revela-se nestes contos como fardo, sacrifício, sina biológica que acaba por anular as mulheres (especialmente das classes humildes) não só enquanto indivíduos mas, pior que isso, enquanto seres humanos. Mas o mesmo também se poderia dizer a respeito da paternidade, como no caso das «vidas cercadas», feminilizadas, dos pobres rurais. (...)

(*) A Urgência de Contar. Contos de Mulheres dos Anos 40, Editorial Caminho, Janeiro de 2002.

 

«O Militante» - N.º 260 Setembro/Outubro de 2002