O eclipse da Rússia

 


Colaborador da Secção Internacional

"A humanidade debate-se, a um novo nível, com a escravatura, colonialismo e o fascismo financeiro-económico, ou seja, com o genocídio que consiste na eliminação da população pelo grande capital internacional, com o apoio das oligarquias nacionais e de governos e presidentes marionetes, incluindo o presidente e o governo da Federação Russa”. A afirmação é do general russo Rokhlin e foi produzida ao tempo do anterior presidente russo Iéltsin, mas mantém a sua plena actualidade hoje, transcorridos mais de dois anos de presidência Pútin.

Rokhlin foi assassinado em Julho de 98 em circunstâncias até hoje não esclarecidas. Um ano antes fundara o Movimento de Apoio às Forças Armadas, desde 1995 era deputado do parlamento russo. Na Primavera de 98, Rokhlin, "general do povo", é um dos principais impulsionadores do vasto movimento de protesto contra Iéltsin e o governo que agita o país e causa nervosismo nos círculos do poder. Há movimentos grevistas um pouco por toda a imensa Federação Russa. Mineiros, trabalhadores da indústria militar, professores, estudantes, médicos e cientistas, entre outros, protestam contra o presidente e o governo, exigindo a sua demissão. O Transiberiano é cortado durante dias a fio. Em Moscovo, os mineiros em greve acampam em frente à sede do governo por tempo indeterminado. Vêm de diversos pontos do país e as suas principais reivindicações são de carácter político, factor que provoca a perturbação do Kremlin, não habituado a tolerar mais do que reivindicações de índole económica ou social.

Os protestos generalizados, aliados à estagnação de uma economia não recomposta do choque neoliberal, geram uma crise de confiança governamental, contribuindo para o agravamento das contradições internas do regime. À ameaça de uma crise económica aguda, somava-se o perigo de uma crise política de consequências imprevisíveis para a elite detentora do poder no país...

Um mês depois da morte de Rokhlin o país entrava em “default”, com a queda abrupta das bolsas e o colapso da pirâmide de fundos especulativos, na que ficou conhecida como a crise russa de Agosto de 98. Registam-se inúmeras falências, um aumento do desemprego, uma diminuição sensível do poder de compra e, segundo alguns analistas, até o desaparecimento da classe média. No entanto, o movimento de protesto nacional, sem uma força política organizadora da luta, viria a “normalizar-se”, tornando-se um fenómeno efémero. Sob a pressão das circunstâncias e da acção da oposição no parlamento (1), Iéltsin nomeara Primakov primeiro-ministro, trespassando-lhe o ónus de cuidar da depauperada “economia real” durante a tormenta.

A análise detalhada deste período recente da história russa aguarda ainda os seus investigadores. As perguntas são mais que as respostas. Rokhlin é hoje “oficialmente” uma figura praticamente votada ao esquecimento. O seu percurso e desaparecimento foram banalizados. Mas a sua breve aparição na cena histórica fez revelar o potencial de luta do povo russo, tornando claro que a voz do povo é indispensável para mudar o rumo do país e salvá-lo. A dimensão humana do general ultrapassa os limites físicos da sua temporalidade.

A “desmobilização” popular e a alienação do povo da política deixaram o caminho aberto à grande oligarquia instalada no poder, fazendo frustrar a alternativa institucional que se chegou a delinear em torno de Primakov. O xadrez político recompôs-se no Kremlin; sob a batuta de homens como o magnata Berezovsky, Pútin é eleito herdeiro, “o político forte que a Rússia precisa”, nas palavras de Aven, outro oligarca russo (2).

Vladímir Pútin, surge na cena política fazendo a apologia do patriotismo, da recuperação do estatuto de potência da Rússia, do fortalecimento do poder do Estado e da imposição da ordem no país. Ainda na qualidade de primeiro-ministro, no Verão de 99, aparece como o principal mentor, em sintonia com as forças armadas e serviços de segurança russos, da operação de limpeza no Daguestão contra os bandos armados fundamentalistas oriundos da vizinha Tchetchénia. Após os atentados, atribuídos pelas autoridades a terroristas tchetchenes, cometidos em Moscovo nesse Verão que provocaram centenas de vítimas, abalando fortemente a opinião pública, a operação militar é estendida à Tchetchénia. Em algumas semanas é restabelecido o poder federal. Ao contrário da primeira campanha militar na república separatista que terminou de forma humilhante em 1996, a opinião pública apoiou a nova intervenção. As linhas gerais da política do futuro presidente correspondiam aos anseios da esmagadora maioria da população, o que a par da imagem veiculada pelos média, explica o alto índice de popularidade de Pútin que lhe permitiu vencer na primeira volta das eleições presidenciais em Março/2000 (3).

Passados mais de dois anos de permanência no poder encerrou-se um ciclo no percurso do presidente russo. O antigo agente do KGB retomou o papel do liberal sedento que apareceu na alta política como um dos adjuntos de Sobtchak, o já falecido antigo maire da então rebaptizada Sampetersburgo, nos tempos “áureos” do ataque ao socialismo, folha de serviços que lhe permitiu, mais tarde, aceder à administração de Iéltsin e chegar a director do FSB (sucessora do KGB), antes de ser nomeado primeiro-ministro. Não obstante, o facto de a nova vertical do poder de Pútin, através da reforma administrativa operada, se apoiar consideravelmente em militares próximos da “equipa de Petersburgo” (4), o eixo formado com as forças armadas que tinha sido crucial para a ascensão de Pútin, foi claramente posto em causa face à posição de colagem e submissão aos EUA assumida pelo Kremlin, em particular depois dos acontecimentos de 11/Setembro/01. Neste capítulo, Pútin foi obrigado, inclusive, a desautorizar publicamente o seu ministro da defesa (gen. Serguey Ivanov) que excluía a possibilidade de presença de tropas norte-americanas nas antigas repúblicas soviéticas da Ásia Central, ao dar o beneplácito à entrada americana na região. Os ameO eclipse da Rússia ricanos agradeceram e instalaram tropas no Uzbequistão, Tadjiquistão, Kirguistão onde permanecem sem prazo de retirada. Por sinal, estes dois últimos países são membros do tratado de defesa colectiva da C.E.I. (juntamente com a Rússia, Bielorússia, Casaquistão e Arménia) e do grupo de Shangai (com a Rússia, Casaquistão e China). No Tadjiquistão, a Rússia dispõe da maior base militar fora do seu território, que desempenhou durante anos um papel essencial para suster os ataques provenientes do vizinho Afeganistão. Como é sabido o terrorismo na região, na última década, foi promovido pelo regime dos taliban no Afeganistão, apoiados pelo Paquistão, Arábia Saudita e, claro, a CIA.

Simultaneamente, a Rússia anuncia o rompimento unilateral dos acordos que lhe permitiam dispor de uma base naval no Vietname e de uma estação de escuta electrónica em Cuba. O caso da estação cubana é particularmente lesivo para a segurança russa, uma vez que se trata de um posto avançado de rastreio e prevenção de lançamentos balísticos a partir dos EUA. Em 2001, durante a visita a Cuba, Pútin realçou a importância da estação. Também aqui cedeu à pressão americana e significativamente tal aconteceu em vésperas dos EUA abandonarem o tratado de defesa antí-míssil ABM.

Num âmbito mais vasto, a política de Pútin recolocou o país nos trilhos do ultraliberalismo tecnocrático de Gaidar. (5) Atente-se em algumas das medidas e pacotes legislativos aprovados ou em processo de o serem: reforma da terra com introdução da grande propriedade privada, novo código laboral mais “flexível”, liberalização dos preços da água, gás, electricidade e aquecimento central, reforma do fundo da habitação, privatização e desmantelamento dos “monopólios naturais” (companhias nacionais de electricidade, de gás, caminhos de ferro), assim designados por se tratarem de empresas estruturantes do país, e as reformas (liberalizadoras) da saúde e educação.

Doravante, não há lugar para dúvidas de que o reforço e consolidação substanciais do regime sob os auspícios de Pútin, com a reforma administrativa já referida, a domesticação do poder legislativo, a constituição de um autêntico partido do poder com a “absorção” do movimento “Pátria” de Lujkov (6) pelo partido "pró-Kremlin" “Unidade”; a posição vassala das cúpulas sindicais, estão ao total serviço dos interesses e desígnios dos grupos oligárquicos, num quadro em que o grande capital nacional está cada vez mais dentro da engrenagem da globalização imperialista.

A "guerra" contra alguns nomes sonantes da oligarquia como Berezovsky e Gusinsky (que possuía a maior televisão privada, NTV) inserem-se nas lutas intestinas de clãs e assinalam a transição do “reinado” de Iéltsin, semi-paralisado e decadente, para aquilo que se pode considerar um segundo fôlego do regime através da recomposição das suas forças e do realinhamento centralizador e vertical da administração da máquina estatal. Este embate, sob a supervisão geral de Washington, não terminou (e porventura não terminará) mas Pútin parece dispor ainda de uma plataforma interna suficientemente sólida.

As palavras de Kissinger (7) são reveladoras das actuais coordenadas da linha política de Moscovo, ao assinalar que o presidente Pútin parece ter compreendido que a Rússia contemporânea não pode ter “aspirações imperiais” porque isso a ameaçaria de isolamento, por isso, acrescenta Kissinger em tom paternalista, a principal vertente da estratégia de Pútin é o estabelecimento de relações de parceria com os EUA, em que a Rússia persegue os seus objectivos, decorrentes de uma avaliação realista dos seus interesses, suportando-se no poderio americano.

Mas que dividendos colherá a Rússia da submissão aos objectivos estratégicos dos EUA? As anunciadas contrapartidas da capitulação russa, na realidade, reforçam a condição de país crescentemente subjugado. A aceleração da adesão à OMC promete concluir a liquidação da indústria nacional e traça o destino da Rússia como fornecedor de recursos naturais para o mercado global imperialista, situação que interessa aos poderosos lobbies russos do petróleo e gás. A festejada conclusão do acordo que estabeleceu o Conselho Nato-Rússia no último mês de Maio, encobre o verdadeiro significado desta acção: Moscovo “aceitou” o alargamento, já este ano, da NATO às três antigas repúblicas soviéticas do Báltico, onde a Aliança prepara já o estacionamento de unidades de aviação táctica e deixa as portas abertas a futuros candidatos da moribunda C.E.I.. Na Geórgia, que também já abriga militares americanos, Shevarnadze não esconde o objectivo de adesão à NATO em 2005, e a Ucrânia aguardou a assinatura do acordo NATO-Rússia para solicitar oficialmente a adesão à Aliança Atlântica. Na ânsia de agradar ao amigo americano, Pútin compromete a União com o melhor aliado russo, a Bielorússia de Lukachenko (que os EUA consideram o seu último inimigo na Europa).

Internamente, a operação na Tchetchénia arrasta-se sem fim à vista, por entre êxitos e fracassos. A lista de vítimas sobe semanalmente. Combates violentos têm lugar no vale de Pankissk na zona da fronteira com a Geórgia. Moscovo acusa Tbilissi de cumplicidade com os grupos combatentes activos na Tchetchénia (que, segundo o governo russo, incluem mercenários estrangeiros), ao permitir a sua presença na zona fronteiriça, donde são realizadas incursões no território da república russa do Cáucaso, e de não cumprir a resolução 1373 do Conselho de Segurança da ONU, que determina que todos os Estados membros devem impedir a actividade terrorista no seu território (8). As queixas russas revelam, contudo, a incoerência e as contradições da sua política. Basta lembrar que a direcção russa considera que “a presença militar americana na Ásia Central e na Geórgia é vantajosa” (9), pois, está ligada à luta contra o terrorismo internacional.

Quaisquer que sejam as eventuais segundas intenções da direcção russa, o país vê apertar-se sobre si o anel de pressão dos EUA e NATO. A situação geopolítica degradou-se a um nível sem precedentes. O eclipse russo representa uma ameaça à paz e estabilidade mundiais.

Pútin sacrifica a independência nacional, alimentando uma visão distorcida e primária de um capitalismo que reconstitua a Rússia como potência moderna, mas obedecendo na sua agenda a imperativos bem mais pragmáticos. Nesta via, é mais provável que o país prossiga a espiral tortuosa de subalternização, enfraquecimento e degenerescência social. A Federação Russa continuará, deste modo, a balançar entre o espectro latente de desagregação e o papel de testa de ferro da globalização imperialista.

Esta situação poderá ser alterada e até invertida através da luta e união dos comunistas e das forças verdadeiramente patrióticas e progressistas.

Mas o regime, antevendo a crescente resistência das forças mais consequentes e organizadas, aposta forte na cisão e divisão dos comunistas. O presidente deu o mote ao “decretar” que o PCFR, maior partido nacional, deveria mudar de nome e de conteúdo, adoptando a via da social-democracia. Ficou claro que a recondução, depois das eleições parlamentares de 99, do ex-comunista (e ex-membro do presidium do CC) Selezniov no cargo de presidente da Duma, numa conjuntura em que o PCFR, apesar de ser o partido mais votado, foi remetido para uma posição minoritária no parlamento, visava, acima de tudo, provocar a divisão no partido. O caso do presidente do parlamento é o mais emblemático mas não é único. Há dois anos, Selezniov foi um dos principais fundadores, à margem do partido, do movimento político “Rússia” que depois passou a liderar. Apesar de criticado e da sua prática ser considerada fraccionária por muitos camaradas de partido, no VII Congresso do PCFR realizado em Dezembro/2000, Selezniov foi novamente eleito para o presidium do CC. A ruptura deu-se quando o partido, em plenário do CC, tomou a decisão política de abandonar a presidência de todas as comissões parlamentares que detinha na Duma e a própria presidência do parlamento. Selezniov recusou-se a aceitar a decisão. O presidente do parlamento, que na última legislatura se notabilizou pela ausência ou abstenção na votação de alguns dos projectos de lei mais gravosos, invocou o “superior interesse nacional” para a sua recusa em abandonar o cargo. No final de Abril, o plenário do CC do PCFR, após um processo em que a compreensão partidária foi levada até aos últimos limites, aprovou, por maioria de votos, a expulsão de Selezniov do partido (10).

Um factor de crucial importância na luta contra o regime, a par do reforço da representação institucional dos comunistas nos órgãos do poder, é a luta de massas. Neste aspecto, as decisões dos últimos congressos e as intervenções de Ziúganov (presidente do CC) têm apontado a necessidade de se reforçar a presença do partido nos sindicatos e na organização de acções de protesto. Mas os avanços, neste capítulo, têm sido lentos. Para isso contribuem factores vários, entre os quais o facto da actividade partidária (constituição de células) ser proibida por lei nos locais de trabalho, e da central sindical mais representativa (FNPR) estar monopolizada por oportunistas e corruptos afectos ao poder. A persistência de velhos hábitos e a inexperiência resultante da alteração radical das condições históricas de actividade do partido, são também, obviamente, factores intervenientes.

A divisão entre os diversos partidos comunistas, habilmente explorada pelo regime, também não ajuda ao reforço do movimento unitário. Na Rússia existem mais de meia dúzia de partidos e movimentos que se intitulam comunistas, e continuam a formar-se novos, mas para além do PCFR com cerca de 600 mil militantes, só o PCOR-PRC (11), com 30 mil militantes, é representativo. Este partido que representa a maior força não parlamentar (abaixo da barreira de 5%), de acordo com os resultados das duas últimas eleições legislativas, foi impedido de se registar no Ministério da Justiça por, pasme-se, incluir no seu nome a expressão “Partido Revolucionário” (para além de outras “irregularidades” detectadas relativas aos procedimentos de eleição dos órgãos dirigentes e de controlo do partido). Tudo isto à luz da nova lei dos partidos aprovada em 2001 (12). Apesar das diferenças de opinião e divergências existentes entre os dois partidos, o PCFR expressou publicamente solidariedade com o PCOR-PRC, facto que abre expectativas de aprofundamento do relacionamento entre os dois partidos.

Ao endurecimento em curso do regime, inevitavelmente novas resistências se levantarão. Os comunistas, certamente, permanecerão nas primeiras filas da luta. Os senhores da nova (velha) Rússia, esquecem-se que na roda da história as revoluções não se proibem.

Notas

(1) A oposição por duas vezes chumbou a candidatura do antigo primeiro-ministro Tchernomyrdin proposta por Iéltsin.

(2) O Militante, Maio/Junho 2000, pág. 54.

(3) Pútin era presidente interino desde 31 de Dezembro de 1999, após a demissão de Iéltsin.

(4) Designação comum do grupo de homens de confiança do presidente que gradualmente tem ascendido a cargos-chave da direcção russa.

(5) Antigo primeiro-ministro russo após o final da URSS. Foi o responsável da tristemente célebre terapia de choque.

(6) Presidente da Câmara de Moscovo.

(7) Washington Post, 7.12.01.

(8) Lochinin, vice-ministro dos Negócios Estrangeiros russo, citado pela Itar-Tass, 31.7.02.

(9) Igor Ivanov, Ministro dos Negócios Estrageiros russo, citado pela agência Strana.ru, 16.3.02.

(10) Selezniov anunciou posteriormente a criação de uma nova força política, o Partido Socialista da Rússia, designação provisória que será ratificada no Congresso fundador previsto para Setembro. Segundo Selezniov o novo partido, que só será da oposição caso o executivo russo não respeite o estipulado na Constituição, irá defender a edificação do Estado Social (idem, 29.7.02).

(11) Partido Comunista Operário Russo-Partido Revolucionário dos Comunistas, criado em 2001 após a fusão dos dois partidos.

(12) O MJ baseou-se no ponto da nova Lei dos Partidos que proíbe os partidos que “persigam o objectivo de alterar violentamente os fundamentos da ordem constitucional...”.

«O Militante» - N.º 260 Setembro/Outubro de 2002