As crises sistémicas do capitalismo
A situação económica na Tríade

 



Economista. Membro do Gabinete do PCP no Parlamento Europeu

A produção é o aspecto mais essencial da actividade económica. É mais fundamental que a troca, porque a sociedade pode subsistir e já subsistiu sem muita troca. A produção assume um papel central na organização social e nas relações humanas. E a produção está no núcleo da ciência económica cujo objectivo último é organizar a actividade produtiva para satisfazer as necessidades humanas. Mas hoje em dia, numa era que pode ser caracterizada de “globalização” económica, onde a liberalização, a mobilidade do capital e a competitividade internacional parecem ser o mote, a troca parece estar em todo o lado.

40 anos atrás, o pleno emprego era uma realidade e muitos pensavam que com a aplicação do "modelo" keynesiano à política macro-económica se tinham superado os efeitos nocivos dos períodos recessivos do ciclo económico sobre o emprego. O capitalismo parecia que podia ser reformado sem mudar as suas premissas de base, nomeadamente a propriedade privada dos meios de produção. Mas as recessões do começo das décadas de setenta, de oitenta e de noventa provaram que as coisas não eram bem assim . Com elas o desemprego cresceu em flecha, sobretudo na Europa. O ciclo económico não dava sinais de ter sido domado, mesmo com o advento das novas tecnologias da informação e da comunicação que traziam a promessa de um crescimento duradouro. Na resposta à crise económica verificou-se uma progressiva mudança ideológica do intervencionismo keynesiano para o neoliberalismo, um retorno aos clássicos e às virtudes do mercado livre, bem caracterizadas pela “mão invisível” de Adam Smith. A teoria económica capitalista passou a prescrever “menos” Estado e “mais” mercado.

A “rigidez” tornou-se o inimigo oficial que era necessário combater onde quer que se encontre, nos mercados de produtos, de capital e de trabalho. É claro que cada diabo necessita de um anjo e, por isso, o seu antónimo – flexibilidade – tornou-se a palavra-chave nas bocas dos políticos e dos economistas da praça, tendo como fiéis mosqueteiros – a liberalização, a desregulamentação e a privatização. Um novo "modelo" económico surgia, o chamado “Consenso de Washington” baseado na estabilidade dos preços, na consolidação fiscal, na desregulamentação dos mercados e na liberalização das trocas comerciais. Este “consenso” teve e tem consequências ao nível do crescimento económico, do investimento, da produtividade, do desemprego e dos níveis salariais.

Este “consenso” tornou-se um dogma pesado para a gestão das crises do capitalismo. Por exemplo a Argentina, que necessita de erguer barreiras aduaneiras e impor controle de capitais, a fim de criar as condições necessárias para parar a fuga de capitais, estimular a procura agregada e com ela estimular o crescimento do emprego, vê-se confrontada com a resposta de sempre do FMI (Fundo Monetário Internacional) – os ajustamentos estruturais – contra os critérios de racionalidade pedidos pela mais elementar praxis económica.

A crise asiática de 1997 e o seu contágio faseado parece ter demonstrado uma vez mais que o ciclo económico está “vivo”. E alguns dos economistas do sistema, como Paul Krugman, salientaram o alarmante retorno das falhas de procura como um dos principais problemas económicos (1). Este sinal de alarme mostra o reconhecimento da doença sistémica do capitalismo – a sobreprodução – e a preocupação de alguns de que o excesso de ortodoxia na cura não mate o doente ou tenha custos sociais tais que ponham em causa o sistema.

“Durante uma recessão económica, especialmente sendo severa, a oferta parece estar em todo lado e a procura em nenhum lado” ou “insuficiente despesa privada para fazer uso da capacidade produtiva disponível” são a versão moderna de uma velha doença sistémica, a “epidemia da sobreprodução”, como Marx a identificou (e Keynes reformulou), quando a procura é insuficiente para absorver a totalidade da capacidade produtiva instalada a preços que garantam ao capitalista a esperada taxa de lucro.

“E como é que a burguesia supera a crise?” Marx responde “por um lado, pela destruição forçada em massa das forças produtivas e, por outro, pela conquista de novos mercados e por uma exploração mais completa dos antigos”(2). E se para alguns isto poderá parecer fora de moda, é sempre possível utilizar uma linguagem mais moderna para as saídas tradicionais da crise, como: “redução do excesso de oferta via redução dos custos laborais (ou despedimento)”; “downsizing”; acesso a novos mercados geográficos, como sejam a Europa de Leste ou a China; acesso a novos mercados de produto, como sejam as comunicações móveis; e, mesmo a mercados antigos, como os mercados públicos”. Aqui também assumem um papel relevante as novas tecnologias da comunicação e da informação, pois como disse Marx “a burguesia não consegue existir sem revolucionar os instrumentos de produção e, por consequência, as relações de produção, e com ambas, as relações globais da sociedade.” Aliás a conquista de novos mercados é a pedra basilar da chamada “Estratégia de Lisboa”, decidida no Conselho Europeu de Lisboa de Março de 2000, que estabeleceu o objectivo da União Europeia (UE) se tornar a economia baseada no conhecimento mais competitiva do mundo no espaço de uma década. A “Estratégia de Lisboa“ é a resposta do capitalismo europeu à crise.

Mas as questões essenciais que têm consequência sobre o nível de vida das populações podem resumir-se a três variáveis: a produtividade, a distribuição do rendimento e o desemprego. Por isso, os instrumentos de política económica devem incidir sobre os problemas que as afectam: a redução da produtividade, o aumento das desigualdades de rendimento e o aumento do desemprego/subemprego. Sendo claro que em todas, o trabalho perspassa como valor essencial, como a fonte de criação da riqueza. E poderão perguntar: então o défice público, a inflação e a competitividade internacional? Estes são problemas de uma outra ordem de grandeza, porque ao contrário do que possa transparecer dos dogmas vigentes, só têm um efeito indirecto e nalguns casos marginal para a “saúde” da economia de um país. A longo prazo, a capacidade de um país melhorar o nível de vida da sua população depende quase exclusivamente da sua capacidade de aumentar o produto por trabalhador, ou seja da produtividade. As questões centrais passam assim pela revalorização da produção e do trabalho, de forma a pôr a economia no trilho da satisfação das necessidades humanas. É só regressar ao fundamental.

Tendências, riscos e retoma

A tese, apresentada na Resolução Política do XVI Congresso, que um dos principais riscos para a economia mundial residia no evoluir da economia americana, veio a confirmar-se. Os múltiplos factores de risco eram já então visíveis: o forte endividamento externo, a sobrevalorização bolsista e imobiliária, o grande endividamento do sector privado e um crescente défice da balança de transacções correntes. O aumento dos preços do petróleo e o ajustamento bolsista das empresas dot.com (3) contribuíram para a desaceleração económica, tendo os eventos de 11 de Setembro dado um maior impulso para a contracção da economia americana, afectando em consequência os outros pólos da Tríade – a UE e o Japão.

Não se confirma porém a tese daqueles que afirmavam que a “revolução” das novas tecnologias de informação e comunicação, tinha criado um factor endógeno de crescimento que daria ao capitalismo a capacidade de garantir um crescimento económico mais longo e sustentado, libertando-se da dicotomia recessão/expansão dos ciclos económicos. Sem negar a sua importância, uma análise mostra claramente que os últimos 30 anos foram marcadas por cinco crises económicas na Tríade com reflexos mundiais (para além de crises específicas a cada pólo) – 1974/75, 1980/82, 1991/93, 1997/99 e 2001/2002 – com diferentes intensidades. Mostra, também, que os períodos de recuperação estão longe de ser sustentados e, sobretudo nos Estados Unidos, existe uma tendência para um crescimento em forma de “W”, onde após uma rápida recuperação, existe uma nova recessão.

Contudo podemos salientar um fenómeno que pode ser considerado novo – o desfasamento temporal das crises nos vários pólos da Tríade (em forma de onda), que atingiu o seu máximo com a crise asiática – em 1995 a crise no México, em 1997 a crise no sudeste asiático (incluindo o Japão), em 1998 a crise na Rússia (e na Europa de Leste), 1999 a crise no Brasil e 1999-2002 a desaceleração do crescimento nos EUA, UE e Japão. Este desfasamento estará também relacionado com os fluxos de bens e serviços entre Estados e o evoluir da procura externa, mas dever-se-à sobretudo ao grau de “financeirização” da economia mundial. Existe uma maior transladação das crises financeiras em crises económicas, sendo o desfasamento provocado pelo contágio entre mercados de capitais. Para isto terão contribuído a livre circulação de capitais, o aproveitamento especulativo de elevados volumes de capital financeiro (nos mercados de capitais e cambiais) e o peso do crédito no investimento e no consumo (endividamento).

Confirma-se, por outro lado, um “mal-estar” latente nas economias dos países desenvolvidos, que se pode traduzir pela actual crise não ter sido tão grave como o previsto e os sinais de retoma não serem tão fortes quanto seriam de esperar. Este “mal-estar” também pode de alguma forma ser observado pela desaceleração do crescimento económico de década para década na Tríade, com a excepção dos EUA na década de noventa devido ao forte crescimento entre 1997 e 2000.

A década de noventa foi marcada pela “depressão” do crescimento económico no Japão e manutenção de pressões deflacionárias, sem perspectivas de melhoria de futuro. A UE recuperou da crise de 1991-1993, mas sempre com um crescimento médio um ponto percentual inferior ao dos EUA e não sustentado (como se viu em 1996 e 1999), fruto de uma política orçamental e monetária restritiva e inflexível, cega às oportunidades de expansão do ciclo económico. Os EUA continuam a manter uma relativa forte confiança nos seus activos (onde se inclui a moeda) e um forte refinanciamento externo, que ajudou a suster o investimento e o consumo (a troco do endividamento e do aumento do défice externo).

Neste contexto, um factor de risco para a Tríade continua a ser a evolução da procura agregada, nomeadamente a evolução positiva ou não do consumo privado. O forte endividamento do sector privado, sobretudo das famílias, nos EUA (apesar das previsões de crescimento do consumo privado continuarem fortes), a consolidação fiscal na Alemanha e a deflação do Japão são indicadores de sinal negativo para a procura agregada e para o crescimento económico. Tendo em conta o volume do comércio externo entre os países da Tríade, nomeadamente entre os EUA e a UE, uma contracção das procuras agregadas penalizará o crescimento económico induzido pelas exportações. Um outro factor de risco é o grau de crescimento da produtividade e a contradição latente entre mobilização do factor trabalho (através da flexibilização laboral e moderação salarial) e a sua eficiência (fruto de formação/educação, investimento por trabalhador e condições de trabalho).

Os EUA e a UE têm aplicado a mesma receita para contrariar o período recessivo, nomeadamente a redução das taxas de juro e a redução dos impostos, sobretudo sobre as empresas. Estes factores constituem as respostas clássicas do lado da oferta e visam aumentar a rentabilidade das empresas e, em consequência, a sua propensão a investir. Um outro factor determinante foi a moderação salarial e a obtenção de ganhos de produtividade, com o crescente aumento dos lucros no rendimento nacional e a redução dos custos salariais unitários reais (traduzindo-se num maior empobrecimento dos trabalhadores). Contudo, estes estímulos ao investimento têm duas condicionantes directas: nada obriga as empresas a terem que fazer novos investimentos produtivos (sobretudo se a nível financeiro conseguirem obter maior rentabilidade) e nada dizem sobre a necessidade de criar a procura necessária, para garantir novos investimentos. Por outro lado, os ganhos de produtividade transferidos dos salários para os lucros não tiveram nenhum reflexo perceptível no crescimento do investimento produtivo.

Nos EUA irá ocorrer uma situação de duplo défice (crescente?), ao nível das contas públicas e ao nível externo. Na UE, o peso da economia alemã marcará os sinais de retoma. Mas os compromissos do pacto de estabilidade, com o reforço da consolidação fiscal, exercerão uma pressão adicional para a redução da procura agregada, podendo-se traduzir quer numa desaceleração/redução do crescimento ou num crescimento fraco com uma retoma lenta. O Japão é uma incógnita, tendo em conta a tibieza dos resultados da política monetária e fiscal expansionista aplicada pelo Governo.

Todos estes factores, levam diversas instâncias internacionais (como a Comissão Europeia e o FMI) a mostrarem sinais de confiança na retoma, mas com alguma prudência sobre o futuro. A mensagem vai no sentido de que a actual crise económica, marcada pela forte desaceleração económica em 2001, terá atingido o seu ponto mais baixo do ciclo económico e que o primeiro semestre de 2002 poderá marcar o caminho de uma progressiva recuperação económica, diferenciada de acordo com os pólos da Tríade. Mas existe também uma forte consciência dos riscos.

Existem ainda dois factores adicionais de instabilidade de consequências imprevisíveis. O primeiro factor, a crise económica em curso na Argentina e a aparente implosão económica e social. O evoluir desta crise poderá determinar o grau de contágio à economia brasileira (principal parceiro comercial) e aos restantes países do Mercosur. Por outro lado, esta crise (também ela com uma predominância financeira) poderá afectar os fluxos financeiros dos mercados de capitais para a América Latina, com consequências para o endividamento e para o custo do capital. Tendo em conta as lições da crise asiática, devemos ter presente um possível contágio financeiro a outras regiões do Mundo. Contudo, até ao momento os riscos deste cenário, não se confirmaram.

O segundo factor, prende-se com a possível intervenção militar dos EUA no Iraque e suas consequências nos preços do petróleo, ou seja, a existência de um choque petrolífero. Este cenário, a confirmar-se, poderia ser um primeiro passo para uma grande recessão mundial, tendo em conta a frágil situação económica da Tríade. Aliás é de salientar, que um dos principais factores de risco apresentados pelo FMI, tem exactamente a ver com a volatilidade dos preços do petróleo.

 

Referências e notas

(1) Krugman, Paul, (2000), “The Return of Depression Economics”.

(2) Marx, Karl (1848), “The Communist Manifesto”, tradução não oficial do inglês.

(3) dot.com (empresas ligadas à Internet e às novas tecnologias de comunicação e de informação.

Nota 1: dados estatísticos trabalhados a partir do anexo estatístico da European Economy Nº 73, revisão de Outono de 2001

Nota 2: ao nível das perspectivas da situação económica internacional foram usados como referência o World Economic Outlook (Abril 2002) do FMI e as previsões económicas de primavera (Abril 2002) da Comissão Europeia (European Economy Nº 2/2002).

 

 

 

 

«O Militante» - N.º 259 Julho /Agosto de 2002