Novas ameaças espreitam o regime democrático |
Membro do Comité Central e da Comissão Central de Controlo
De uma coisa temos de estar cientes: desta vez não podemos falhar!" Com estas palavras, (Público 9.5.02), referindo-se à reforma do sistema político, Guilherme Silva, líder do grupo parlamentar do PSD, deu o sinal de partida para uma nova ofensiva contra o regime democrático.
Há mais de vinte anos que uma reforma profunda do sistema político, particularmente no que se refere às leis eleitorais, ao regime de financiamento dos partidos e à lei dos partidos, anda na mira do PS e dos partidos de direita. Não falta também por aí quem aguarde com impaciência mal contida a abertura de um novo processo de revisão da Constituição e até mesmo quem sonhe com uma nova Constituição.
Porque a nossa memória às vezes é curta lembremos que o regime democrático português, saído da Revolução de Abril, consagrado na Constituição da República que foi aprovada em Assembleia Constituinte e promulgada em 2 de Abril de 1976, tinha as seguintes características fundamentais:
Com tais características, o regime democrático foi, desde logo, um dos alvos preferidos pelas forças de direita e reaccionárias que cedo começaram a conspirar para o destruir. E um dos meios para alcançarem os seus objectivos, em simultâneo com o assalto ao aparelho de Estado, foi sem dúvida a revisão da Constituição.
Em 1982, com a cumplicidade e os votos do PS/Mário Soares, a AD conseguiu introduzir, através da revisão da Constituição, perigosas alterações na organização do poder político e no sistema de controlo de constitucionalidade das leis. Apesar de tudo, a revisão de 1982 só limitadamente correspondeu às pretensões da direita. Mais tarde, com a revisão de 1989, promovida pelo PSD com a activa colaboração do PS, a Constituição foi consideravelmente atingida. Essa revisão teve como traços mais gravosos:
Contudo, esta revisão continuou a não ser aquela que a direita pretendia. Como assinalou na altura o Comité Central do PCP, em 30 de Maio de 1989: “a Constituição revista, apesar de mutilada, não impede, nem no plano político nem no plano jurídico (e por isso deverá ser invocada), tanto a continuação da luta em defesa das conquistas de Abril como a luta por uma alternativa democrática e um governo democrático que os inclua no seu programa. Uma democracia avançada no limiar do século XXI continua a ser a proposta e a perspectiva de luta que o PCP apresenta ao povo português”.
Trazida de novo à luz do dia no início deste ano, ainda antes das eleições, a reforma do sistema político, a julgar pelas propostas de profundadas e gravosas alterações que já foram divulgadas pelo PS e pelo PSD, é uma ameaça que pende sobre o regime democrático.
Em Janeiro deste ano (Público, 20/1) Jorge Miranda retoma, como ele próprio diz, velhas propostas e acrescenta outras, relativamente à reforma do sistema político, visando, como destaca, o duplo objectivo de “democratização e de maior eficácia da República”.
Quanto aos partidos, defende entre outras coisas, o voto individual e secreto nas eleições partidárias, com abolição do sufrágio orgânico nos congressos, limitação dos mandatos, financiamento exclusivamente público e com base nas quotas dos militantes e extinção das juventudes partidárias.
Já em 1995, no colóquio sobre os 20 anos da Comissão Nacional de Eleições (DN, 18.1.95), Jorge Miranda não se cansara de aludir ao “défice de democracia nas eleições internas dos partidos” e de defender “a obrigatoriedade da publicação dos cadernos eleitorais”, a “eleição directa dos dirigentes partidários nacionais”, a “declaração anual no Tribunal de Contas dos seus militantes”. Defendeu, também, que as eleições internas nos partidos obedecessem a regras constitucionais e fossem fiscalizadas.
Não faltou, também, quem tivesse ido mesmo mais longe e, em termos de alteração da lei dos partidos, defendesse até a substituição dos conselhos de jurisdição internos que existem em alguns partidos na aplicação e fiscalização da lei e dos Estatutos pelas autoridades judiciais, como foi o caso do então conselheiro do PSD, Barreiras Duarte (DN, 10.5.96).
No Verão de 1994, aquando do aparecimento de novos projectos de revisão constitucional, a coberto de uma proclamada necessidade de criar uma espécie de “regulamentação institucional da legitimidade interna dos partidos” e em nome da “transparência” não faltaram palpites e declarações”.
Em Julho/94, nas Jornadas Parlamentares do PS, em Lisboa, António Guterres (Público, 5.7.94), emitia a sábia opinião: “os partidos enfermam de um “pecado original” que deve ser alterado. Criados imediatamente antes ou após o 25 de Abril, inspiraram-se no modelo do PCP”. “Isso fez, acrescentou, transpor alguns traços leninistas para todas as forças políticas”. E ilustrou esse tal “pecado original” com o que designou de “organizações satélites” que se formaram em torno dos partidos com o objectivo de “controlar a sociedade civil”, como as “juventudes partidárias” e as “organizações sindicais”.
E ao apresentar publicamente as propostas do PS sobre a reforma das leis eleitorais, António Guterres (DN, 19.5.94) encheu os pulmões de ar para lançar aos sociais-democratas o desafio para ambos os partidos PS e PSD porem termo ao que chamou o “monopólio dos partidos”.
Por sua vez, Pina Moura (Público, 19.7.94) opinava: “É necessário, nomeadamente, terminar com o proteccionismo legal e constitucional que dá aos partidos políticos o monopólio das mediações entre os cidadãos e as instituições representativas”. Ao mesmo tempo, não se cansava de elogiar a “posição ofensiva” do PS em relação à revisão da Constituição, o que, em seu entender, indiciava “uma atitude positiva e favorável à reforma do sistema político”, para, alguns meses depois, acrescentar: “a reforma do sistema político constitui o fulcro de um novo impulso democrático de que a sociedade portuguesa carece” (Público, 14.11.94).
Por essa mesma altura, em entrevista ao Público (18.6.94), António Vitorino declarava: “a crise do sistema político é mais profunda do que poderíamos pensar à primeira vista”, logo acrescentando que os partidos estavam em crise. De uma assentada, não só fez a acérrima defesa de uma reforma eleitoral, como, logo ali, advogou uma reforma dos partidos, com o “financiamento dos partidos à cabeça”.
Manuel Monteiro, na altura presidente do CDS/PP, dizia, por sua vez, gabando os méritos do projecto de revisão constitucional do seu partido, que o projecto dos centristas visava “uma democracia de eleitores e não de clãs partidários (DN, 8.7.94.)
Na mesma ocasião, Barros Moura, então um dos rostos visíveis da defunta Plataforma de Esquerda, defendia calorosamente a reforma do sistema político no sentido, dizia, de “devolver o poder à sociedade e aos cidadãos” (DN, 6.8.94).
A última revisão da Constituição, de 1997, a exemplo das revisões anteriores, resultante dos acordos entre o PS e o PSD, não teve por objectivo, como proclamaram os seus promotores, aperfeiçoar o sistema político e aprofundar o seu conteúdo democrático, mas sim, pelo contrário, prosseguir o processo de descaracterização do regime democrático e de liquidação das conquistas de Abril.
O processo de reconstituição, restauração e institucionalização do capitalismo monopolista, tem caminhado a par e passo de transformações profundas do regime político, do agravamento da exploração dos trabalhadores e de atentados contra os seus direitos e liberdades, de limitações da soberania e independência nacionais.
Mas, apesar das revisões constitucionais e das tentativas das forças de direita com o apoio do PS, para a sua total descaracterização, o sistema político contém em si, em aspectos fundamentais, potencialidades democráticas e traços da Revolução de Abril.
Novas ameaças espreitam neste momento o regime democrático. Pelo que já é conhecido das posições do PSD, agora no Governo, e do PS, relativamente às reformas da lei eleitoral, da Lei de Financiamento dos Partidos e Lei dos Partidos, antecedendo a próxima revisão constitucional, não é difícil prever a dura batalha que nos espera. Tanto mais, que o partido visado nos projectos do PSD e do PS é, sem sombra de dúvidas, o PCP, cujo inquestionável e interveniente papel na sociedade portuguesa e em defesa dos interesses das massas trabalhadoras se procura apagar, ao mesmo tempo que pretendem ingerir-se nas questões da sua vida interna.
O PCP, tal como afirmou no seu XVI Congresso, “continuará a intervir para fortalecer os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos; aprofundar os direitos dos trabalhadores e os direitos sociais; reforçar o papel da Assembleia da República face ao Governo e tornar efectiva a democracia participativa”.
Esta tomada de posição inscreve-se no quadro mais amplo da nossa luta por uma democracia avançada que o PCP apresenta no seu Programa. Uma democracia com um conteúdo de classe, uma democracia com quatro vertentes inseparáveis – política, económica, social e cultural.
«O Militante» - N.º 259 Julho /Agosto de 2002