A importância |
Professor da Universidade de Lisboa
Morrer não é, neste mundo,
arte nenhuma. Mais difícil
é construir a vida na Terra.
Vladimir Maiakovski.
Diz-se que a morte de alguém que muito prezamos nos faz morrer um pouco. Em certo sentido, talvez. Mas não dependerá dos vivos preservar e fazer viver aquilo que do amigo, do camarada, não desaparece com ele?
Entre a conservação
de informação como conteúdo de consciência e o
acto unificador da razão, a memória activa reconstroi e restitui
elos de significação que, podendo ser fragmentários,
podem também, por exemplo, ver confluir um porte de íntegra
coragem pessoal para um mais vasto campo de experiência política
assimilada. De uma postura pública de esclarecimento e combate, levar
a uma aprendizagem socialmente transmitida e alargada. De um perfil humano
revolu-cionário, esboçar a componente de um tipo social portador
de futuro, no enlace de passado e presente. De um dirigente comunista recém-desaparecido,
recolher a expressão densamente concentrada das mediações
entre processo biográfico concluso, colectivo partidário e lutas
de classes como processo continuado. E podem até, por tudo isso, fazer
de um curso de vida individual, que a algum título foi exemplar, uma
parcela da memória de um povo, uma secção dos arquivos
de uma época.
Considero a morte de Carlos Aboim Inglez como uma perda pessoal que sei que irá durar. Mas, nestas linhas, procuro não deter-me senão de passagem nalguma rememoração factual dos mais recentes vinte e cinco anos. Mesmo antes de o ter conhecido, amigos comuns (Magalhães-Vilhena, Hernâni Resende, outros certamente) referiam-se a ele em termos que suscitavam respeito, admiração e desejo de o conhecer um dia. A ocasião surgiu inesperadamente. Foi talvez na Primavera de 1976, num pavilhão que Edições "Avante!" tinham então na Feira Popular de Lisboa. Sabendo de quem se tratava, dirigi-me a ele para falar-lhe com certa prudência de um assunto que tinha oportunidade e podia interessá-lo: a preparação do XI Congresso da Associação Internacional Hegel, que iria realizar-se em Lisboa dali a poucos meses. Ouviu-me sem me interromper. Respondeu-me que estava ao corrente, que lhe parecia a iniciativa de grande interesse, que estaria certamente presente se o convidassem ou se o Congresso tivesse entrada livre, mas que não apresentaria comunicação por já não trabalhar Hegel havia demasiado tempo.
Aboim Inglez agiu como me havia dito. Teve no Congresso uma presença assídua como auditor. Interveio, ao modo vigoroso que lhe era característico, no debate de uma das comunicações mais escutadas, sobre Dialéctica de Hegel e o 25 de Abril, do militar de Abril e então comandante Correia Jesuíno. Lembro-me de os ver saindo juntos da sala, prolongando afavelmente com outros participantes a discussão. E, quer como dirigente do PCP, quer a título pessoal, Aboim Inglez esteve presente em encontros de trabalho e de convívio, à margem do Congresso, com especialistas da filosofia de Hegel vindos de muitos outros países. Entre esses congressistas contavam-se algumas delegações de alto nível dos então países socialistas europeus.
A álgebra da revolução
Eu não ignorava que o Aboim (como depois me habituei a dizer) tinha trabalhado na prisão a Ciência da Lógica de Hegel. Aos meus olhos, isso aproximava-o de uma tradição internacional impregnada de heroísmo do pensamento e da acção. Refiro-me a essa plêiade de grandes homens e revolucionários que, da Rússia dos tsares à Itália sob o jugo do fascismo, na prisão ou no exílio, tinham feito a leitura materialista do pensamento dialéctico de Hegel e dessa leitura tinham extraído, em sempre diversas condições de luta, o fio condutor que um deles, o russo Alexandre Herzen (1812-1870), fixou numa fórmula célebre, por volta de 1860: A filosofia de Hegel é a álgebra da revolução.
As palavras de Herzen têm o seu contexto de origem, que não posso estudar aqui. Na minha opinião, elas suscitam quase tantos problemas como aqueles que contribuem para esclarecer, o que, de resto, não invalida a sua fortuna histórica! E é preciso dizer que Lénine, tendo feito uso expresso da fórmula, talvez a tenha desenvolvido noutra direcção - a da política como ciência (e arte) da revolução - quando indica, por exemplo, em escrito de Dezembro de 1906 (A propósito de um artigo no órgão do Bund), que a política tem a sua lógica objectiva própria, independente destas ou daquelas pessoas ou partidos. E, ainda, como é o caso em Abril-Maio de 1920, quando considera que a política parece-se mais com a álgebra do que com a aritmética e ainda mais com as matemáticas superiores do que com as elementares. (A doença infantil do «esquerdismo» no comunismo). Não conheço texto de Aboim Inglez onde o assunto seja mencionado. Mas lamento hoje nunca ter abordado com ele a álgebra da revolução, tanto mais quanto o Congresso de Lisboa foi terreno fértil em pensamento analógico, próximo por vezes da singular equação algébrica de Herzen. A começar pela referida comunicação - inteligente, informada, irónica, talvez ecléctica em excesso - de Correia Jesuíno, que se declarou não-especialista em Hegel, mas soube dizer do MFA, diante de um vasto auditório português e internacional (contra a direita militar e seus aliados civis em 1975-1976): a esses militares exigir-se-á que façam uma revolução, mas que não sejam revolucionários. Essa teria sido a grande astúcia da Razão, ou melhor, a contra-astúcia (...) O pensamento negativo diagnosticaria aqui que se volta ao passado, precisamente pelo medo de a ele regressar, forma aliás de sabor muito hegeliano. (Texto integral no volume: Ideia e matéria. Comunicações ao Congresso de Hegel - 1976). - Estava claro, pelo menos para ouvidos atentos: assim como não há revolução sem revolucionários, assim também, dizendo-o em linguagem profana, a Revolução de Abril sabia que tinha de contar com a contra -revolução em múltiplas frentes e sob múltiplos disfarces.
Não parece difícil concluir que foi outro, e não este, o motivo da interpelação feita por Aboim Inglez. E esse outro consistiu em apelar, como fizera Lénine meio século antes, ao reconhecimento efectivo da primazia da Ciência da lógica de Hegel para o estudo da dialéctica moderna, se se quer entrar a fundo na metodologia e na estrutura de O Capital de Marx.
O factor subjectivo
Abstraindo da extensa documentação publicada, creio nunca ter ouvido em reuniões de trabalho, em debates políticos ou em conversas privadas entre comunistas, contributos mais esclarecedores e, para mim, mais justos, do que os que mais de uma vez ouvi de Aboim Inglez, antes da desagregação do socialismo a Leste, sobre o factor subjectivo na questão da passagem ao socialismo. E, inversamente, da não-passagem, no mundo ocidental de capitalismo desenvolvido. Apesar da sua complexidade na prática social e também na análise concreta, o núcleo do problema é geralmente familiar aos comunistas e pode ser resumido em poucas palavras: ao longo do século XX, o capitalismo monopolista de Estado criou no Ocidente desenvolvido as premissas materiais da transição. Porém, as condições subjectivas, nas classes e camadas não monopolistas, não só não acompanharam em grau correspondente o amadurecimento daquelas premissas materiais, como recuaram gradual mas acentuadamente face ao socialismo enquanto alternativa. Faltou e falta, nessa vasta medida, a disposição subjectiva maioritária das massas populares.
Estes e só estes, aqui, os elementos iniciais no caminho para o problema. Mesmo assim, já não poderei saber se o Aboim subscreveria esta formulação abreviada. Não vinculo pois a memória que dele guardamos. Posso apenas dizer que são esses elementos iniciais os que melhor me permitem restituir, em substância, o que conservo de contributos e reflexões orais da sua parte, situados entre o fim dos anos 70 e a primeira metade dos anos 80.
Nos seus escritos publicados, há mais do que indícios da permanente importância, ainda quando só implícita, por ele atribuída ao factor subjectivo em diferentes quadros de análise. Mas não se estranhará, tendo em conta a sua intensa participação nas relações internacionais do PCP, que eu reproduza um eco desta atenção e cuidado estratégicos, atenuado embora por cerca de quinze anos, e projectado para a esfera alargada dos partidos comunistas e operários. Sob o título genérico O mundo actual visto pelos comunistas, o número de Novembro de 1987 da edição portuguesa da extinta Revista Internacional inclui o resumo, ao lado de outros, da intervenção de Aboim Inglez num simpósio, em Praga, sobre o 70º aniversário da Revolução de Outubro. O resumo é dos mais extensos de toda a notícia. Aí se lê a certo passo: O orador é da opinião que devem ser objecto do estudo individual e colectivo dos marxistas factos como a redução da militância dos partidos, a diminuição da sua influência entre as massas, a redução ou a perda total da sua representatividade parlamentar. Não restam dúvidas de que existem causas objectivas que não dependem dos partidos comunistas, como a força e a experiência do inimigo de classe, as dificuldades originadas pelo desenvolvimento económico e social do capitalismo, etc.. Mas estes factores não explicam tudo, considera o orador. É oportuno estudar profundamente também as causas subjectivas que lograram ter efeitos adversos. Tem-se [tenham-se?- E.C.] em conta concepções ideológicas, orientações políticas, linhas programáticas, exigências organizativas, formas e estilo de trabalho partidário. Uma análise concreta destes factores assumiria o carácter de estudo teórico geral e não significaria, portanto, uma ingerência nos assuntos dos partidos. (itálicos no resumo citado).
Não verifiquei se está publicado o texto original. Admitindo a fidelidade do passo transcrito, julgo que se dispensariam comentários. Arrisco em anotações breves, não obstante, o sentido da minha leitura.
1) Em articulação com as causas objectivas, estudar profundamente também as causas subjectivas (...): que significa estudar profundamente, aqui? Significa, parece-me, dispor-se às implicações que decorrem da consciência clara de uma necessidade política permanente, - sublinho fortemente necessidade política - que é a de fazer da subjectividade humana, neste caso da subjectividade comunista, nada menos do que um campo de pesquisa, balizado e percorrido por critérios adequados, segundo finalidades definidas.
2) Para isso, a mais importante condição prévia é a existência de um partido político da classe operária e de todos os trabalhadores, onde se conjuguem de maneira frutuosa, a um nível elevado de correspondência entre necessidades e possibilidades,
- experiência humana multiforme e enraízamento social;
- autonomia ideológica, apetrechamento científico e cooperação de saberes;
- identidade histórica e sentido concreto de futuro, que antecipa (isto é, prevê e sabe pensar) transformações previsíveis;- vontade política e desenvolvimento/criação de teoria.
Retomo ainda como ponto de apoio o resumo da intervenção de Aboim Inglez: em 1987, em Praga, ele começou e terminou dirigindo-se a representantes de partidos irmãos, na qualidade de representante do PCP. Nos quinze anos até hoje decorridos, os efeitos adversos das causas subjectivas calçaram botas de sete léguas, deram devastadores passos de gigante pelo mundo inteiro. Falta-nos hoje o Aboim para mostrar-nos mais e mais, a nós e a outros, pelo estudo, por que são de barro os pés do gigante. Mas não nos faltam os instrumentos de análise, as ferramentas categoriais com que trabalhou. Nem nos falta o seu exemplo.
«O Militante» - N.º 258 - Maio/Junho de 2002