Aborto clandestino Basta de tanto preconceito, |
Jurista
O recente julgamento, na Maia, de 17 mulheres acusadas da prática de aborto relançou o debate público sobre as questões ligadas à interrupção voluntária da gravidez. Este julgamento, bem como o facto de todos os anos se registarem investigações criminais relacionadas com a prática de aborto (49 casos em 1998 e 99) e se realizarem julgamentos (11 processos e 8 condenações em 1998 e 99) (1), mostra que a incriminação legal do aborto não é meramente simbólica, como muitos quiseram e querem fazer crer.
A
penalização que existe na actual lei penal também não
foi dissuasora da prática de aborto. Estima-se a realização
de 20 a 40 mil abortos clandestinos, por ano, em Portugal (2)
; no 1º semestre de 2001 morreram 3 mulheres na sequência de aborto
clandestino (3) ; nos últimos 6 anos cerca de 9 mil
mulheres portuguesas deslocaram-se a Espanha para abortar em clínicas
privadas (4). Apenas 1 a 2% dos abortos são efectuados
ao abrigo da actual legislação: em 2000, foram realizados 574
abortos legais (5), sendo conhecidas as dificuldades de uma
mulher fazer um aborto legal.
Perante estes dados, não se vislumbra por que razão Helena Roseta, do Partido Socialista, afirma a necessidade de efectuar mais um estudo como condição prévia à despenalização do aborto. Além de existirem já diversos estudos, mais ou menos vastos, quer nacionais quer internacionais sobre o aborto em Portugal, os dados disponíveis são mais que suficientes para justificar a imediata revisão da desajustada e injusta lei em vigor. Sem excluir a realização de outro estudo, que isso não sirva de argumento para adiar, mais uma vez, a resolução desta importante questão de justiça e saúde pública.
Por outro lado, parece que também nesta matéria os dirigentes do PS continuam na eterna dependência do PSD. Ferro Rodrigues em entrevistas públicas (6) afirmou já que o PS de início nada fará para resolver o problema, aguardando a evolução dos acontecimentos, e garantiu que se houver consenso com o PSD será realizado um novo referendo. Durão Barroso afirmou (7) não ser a favor da condenação de mulheres que praticam abortos, mas ser contra a despenalização. Pelas declarações de ambos concluímos que na próxima legislatura o PS e o PSD nada farão para resolver o problema, o que se converteu já numa tradição!
São, por isso, de estranhar as recentes declarações de Jamila Madeira, secretária-geral da JS e vice-presidente do Grupo Parlamentar do PS, afirmando que a JS vai apresentar um projecto-lei na próxima legislatura (CM, 19.01.02).
Recordemos que se ainda não existe uma lei descriminalizadora do aborto, em grande medida isso deve-se à promíscua relação entre o PS e o PSD. Quem não se lembra que, imediatamente após a aprovação na generalidade de uma lei pela Assembleia da República, o PS e o PSD decidiram a realização de um referendo?
Que se registe que o PS sempre tem recorrido a um discurso pretensamente igualitário, mas que a sua prática política é bem reveladora da natureza eleitoralista e demagógica que atribui aos direitos das mulheres.
Nos últimos tempos, assistiu-se a uma tendência para a alteração da linguagem dos movimentos ligados ao não, fenómeno que tem, aliás, uma dimensão internacional (8) . Passou-se do cultivo do ódio às mulheres, com os inesquecíveis e tristes exemplos de comportamentos medievais e inquisitoriais dos movimentos do não durante o referendo em Portugal, à linguagem de uma aparente tolerância, de preocupação com as mulheres e seus problemas. Divulga-se e insiste-se na ideia de que os movimentos do não criaram instituições para apoiar mulheres grávidas, para dar adequada e preventiva educação sexual e planeamento familiar. Ficam convenientemente por esclarecer quantas instituições foram criadas, onde, quem as gere e financia, quantas mulheres foram atendidas, quantas crianças foram adoptadas, que tipo de educação sexual e planeamento familiar é fornecido.
É oportuno relembrar que muita da legislação em vigor não é aplicada por falta de vontade política e porque as forças mais retrógadas e fundamentalistas usam todos os meios disponíveis para lutar contra a educação sexual e o planeamento familiar.
Em contrapartida insiste-se na falsa ideia de que os que defendem a despenalização do aborto nada fizeram. O que é falso. Por exemplo, por iniciativa do nosso Partido foram discutidos e aprovados diversos projectos-lei nas áreas da educação sexual e planeamento familiar, contracepção de emergência, apoio às mães e pais adolescentes, reforço e alargamento dos direitos da maternidade-paternidade; o PCP apresentou também um projecto-lei visando a despenalização da interrupção voluntária da gravidez até às 12 semanas para uma maternidade livre e consciente. Novamente, no seu Programa Eleitoral, torna a incluir um importante conjunto de compromissos nesta área, entre os quais a despenalização do aborto.
Uma lei injusta e desumana
Portugal é um dos países da Europa com uma legislação mais restritiva em relação ao aborto. A lei em vigor em Portugal é injusta e desajustada da realidade social (9), pondo em perigo a saúde das mulheres, alimentando redes clandestinas e penalizando, sobretudo, as mulheres dos estratos sociais mais desfavorecidos. A manutenção da criminalização não resolveu, nem resolverá, este grave drama social.
Uma lei que despenalize o aborto não se impõe à consciência individual de cada um, nem obriga alguém a recorrer ao aborto. Como afirma a Drª Teresa Beleza: (...) descriminalizar um comportamento apenas significa que o Estado entende que a sua inclusão na lei penal não tem efeitos positivos sobre a preservação do bem que se quer proteger, e não uma declaração de princípio de que se trata de uma conduta lícita ou recomendável. (10)
28 anos após a Revolução de Abril, as mulheres portuguesas continuam a ser penalizadas pela prática de aborto. 28 anos passados, os secretários-gerais do PS e do PSD assumiram já o compromisso eleitoral de manter esta situação e de continuar
a punir as mulheres portuguesas. Em 2002, no novo milénio, persiste uma lei que é um verdadeiro atentado aos direitos das mulheres, à sua saúde e dignidade e à sua capacidade e liberdade de tomar decisões.
Uma importante iniciativa
A nossa camarada Ilda Figueiredo, deputada ao Parlamento Europeu, promoveu uma Declaração de Solidariedade Internacional (www.pcp.pt) para com as mulheres que foram julgadas na Maia. O processo suscitou surpresa, indignação e sinceras manifestações de solidariedade de muitas pessoas e organizações de todo o mundo. Num curto espaço de tempo, recolheu o apoio de 1213 personalidades e 68 organizações
de 43 países, destacando-se nomes como o recentemente falecido Pierre Bourdieu, Noam Chomsky ou Hanna Schygula. (11)
Recentemente, a Associação Internacional para o Planeamento da Família, lançou uma petição internacional (www.ipp.org) para alteração da legislação de aborto em Portugal.
8 de Março - uma jornada de luta pelos direitos das mulheres
O 8 de Março - Dia Internacional da Mulher - comemora-se, pela primeira vez desde a Revolução de Abril, em plena campanha eleitoral. É hora dos diversos partidos clarificarem as suas posições e os seus compromissos quanto aos direitos das mulheres.
O PCP, como sempre, reafirma a sua determinação na luta por uma efectiva igualdade entre mulheres e homens, pela emancipação da mulher, por uma sociedade mais justa e fraterna.
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A ilegalização e a punição penal são, pois, juridicamente ineficazes e socialmente condenáveis. São, além do mais, directa ou indirectamente um verdadeiro atentado contra direitos fundamentais das mulheres. Álvaro Cunhal, in O Aborto. Causas e soluções, 1940.
Carlos Carvalhas, no Forum "A situação das mulheres no limiar do séc. XXI", 23.01.99.
Albino Aroso, médico, DN, 19.11.00.
Maia Costa, Procurador-Geral Adjunto, Público, 6.11.01.
Fernanda Mateus, Avante!, 17.01.02.
Odete Santos, JN, 19.01.02.
Bettencourt Resende, Director do DN, 19.01.02. |
Era a espinha do País beato, hipócrita e obsoleto que deveria ter sido anteontem no banco das rés no Tribunal da Maia. Não a vida individual, inviolável, privadissíma, de um grupo de mulheres pobres e de parca defesa. Hélder Bastos, Editor Redacção Norte do DN, 20.01.02.
Anabela Fino, Avante!, 24.01.2002.
(...) A política de esquerda que o PCP propõe exige (...) a defesa dos direitos da maternidade-paternidade. Exige que, em paralelo com a generalização do planeamento familiar e da educação sexual, seja posto termo à penalização legal do aborto clandestino. Do Comunicado do Comité Central do PCP, 19.01.02.
Inês Pedrosa, Expresso, 26.01.02.
Clara Ferreira Alves, Expresso, 26.01.02. |
(1) Estatísticas da Justiça, Ministério
da Justiça
(2) Associação Internacional para o Planeamento
da Família
(3) INE
(4) Dados publicados por clínicas espanholas
(5) Direcção-Geral de Saúde
(6) Visão, 26.01.02; TSF, 28.01.02
(7) Público,19.01.02
(8) Essa alteração tem a ver com questões
de imagem e não de princípios.Por exemplo, a Igreja Católica
continua a condenar o aborto, o recurso aos meios contraceptivos e à
educação sexual.
(9) Odete Santos considera a lei inconstitucional por ofender
direitos fundamentais; Teresa Beleza considera que contraria frontalmente o
princípio da igualdade; certos autores adiantam que as disposições
restritivas que penalizam o aborto são inconstitucionais por violarem
o direito da mulher à liberdade e à segurança.
(10) Prefácio a Penalizar ou Despenalizar o Aborto,
J. Magalhães, Quetzal, 1998.
(11) Pierre Bourdieu (sociólogo francês); Noam
Chomsky (linguista e activista política dos EUA); Hanna Schygula (actriz
e cantora alemã).
«O Militante» - N.º 257 - Março/ Abril de 2002