A propósito do "caso Enron"

Democracia e capital



Colaborador da Secção Internacional

«O moderno Estado representativo é o instrumento da exploração do trabalho assalariado pelo capital. [...] A forma suprema de Estado, a república democrática [...] oficialmente já nada sabe acerca das diferenças de posses. Nela a riqueza exerce o seu poder indirectamente, mas de um modo tanto mais seguro. Por um lado, sob a forma de corrupção directa dos funcionários, do que a América é modelo clássico, por outro lado, sob a forma de aliança entre governo e bolsa [..]». A citação é de Engels, e tem mais de um século (1) . Mas podia ter sido escrita hoje, numa análise ao escândalo Enron, que nestes dias abala os Estados Unidos.

A Enron era a sétima maior empresa dos EUA (segundo as famosas listagens da revista Fortune) e foi apresentada durante anos como exemplo de sucesso da economia capitalista “liberta das amarras do Estado”. A sua principal actividade era a especulação, em particular no desregulamentado sector energético. Só que estas actividades parasitárias não se baseavam em bolas de cristal, nem em particulares dotes de presciência. A Enron sabia, e influenciava, muito do que se iria passar em matéria de energia porque estava no centro duma vasta teia de relações e pagamentos nas altas esferas políticas dos EUA.

 

Afinal «as amarras» existem, mas são as amarras com que «o mercado» ata o Estado. A comunicação social (incluíndo o Avante!) está cheia de pormenores sobre os financiamentos e ligações entre a Enron e dirigentes políticos. Como informa o Diário de Notícias (17.1.02), 70 dos 100 senadores americanos receberam dinheiro da Enron, que no ano passado gastou 6 milhões de dólares em financiamentos a campanhas eleitorais. O seu maior investimento foi na campanha presidencial de George Bush júnior. O semanário People’s Weekly World (próximo do PC dos EUA) de 19.01.02 estima esse apoio em 2 milhões de dólares e afirma: «A Enron estava tão determinada em colocar Bush na Casa Branca, que enviou o seu mais destacado advogado, o ex-Ministro dos Negócios Estrangeiros James A. Baker III para a Florida, a fim de orquestrar a chapelada nas eleições presidenciais de 2000». A teia não se ficava pelas fronteiras dos EUA: «Baker e Lay [o Executivo-Chefe da Enron] organizaram a entrega do Prémio Enron por Serviços Públicos Ilustres a Mikhail Gorbatchov e Eduard Chevardnadze [...] como parte dos seus esforços para ganhar concessões sobre o petróleo e gás natural na Rússia, Azerbaidjão e Cazaquestão, que é um dos elementos chave da actual guerra no Afeganistão». É caso para dizer que estão bem uns para os outros.... É possível que um dia se venha a saber que a rejeição do Protocolo Ambiental de Quioto pelo Governo dos EUA foi directamente influenciada pela Enron.

Não obstante esta teia de interesses, não obstante não ter pago impostos em quatro dos últimos 5 anos, não obstante ter recebido, entre 1992 e 2000, 2,4 mil milhões de dólares em subsídios (com o dinheiro dos contribuintes americanos) para os seus projectos no estrangeiro (2) , a Enron faliu. Um exemplo a reter, para a próxima vez que nos bombardearem com campanhas contra o “esbanjamento das empresas públicas”, contra o “despesismo do Estado”, entoando loas à “eficiência do sector privado”, ou ao “dinamismo do modelo americano”. O descalabro da Enron, do abastecimento de energia eléctrica à Califórnia, ou dos caminhos de ferro britânicos (que foram, na prática, re-nacionalizados pela calada logo após o 11 de Setembro) são exemplos da destruição provocada pela privatização, mercantilização e desregulamentação em sectores essenciais. Trata-se de serviços públicos, que agora terão de ser resgatados do ruinoso regabofe privado com dinheiros públicos (para depois, novamente rentáveis, serem mais uma vez entregues aos amigos). Há quem diga que apenas será necessário aperfeiçoar os “mecanismos de regulação” do sistema, e que falhou a fiscalização. Mas o que nos estiveram a dizer ao longo dos últimos anos? Que era preciso abater os mecanismos de regulação e “libertar as empresas da tutela do Estado”!

Os compadrios, corrupção, aventureirismo económico-financeiro, evidenciados pelo caso Enron não reflectem apenas o facto de a “moral” e os “bons costumes” se tornarem, como tudo o resto nesta sociedade capitalista “de sucesso”, uma mercadoria transaccionável, que se vende a quem oferece mais. Existem também factores objectivos que empurram neste sentido. Já Marx, ao expor a sua lei geral da tendência para a baixa da taxa de lucro no capitalismo, escrevia que uma das consequências dessa tendência é «o surgimento das falcatruas e uma promoção geral das falcatruas através do recurso a iniciativas frenéticas com novos métodos de produção, novos investimentos de capital, novas aventuras, tudo com o objectivo de obter um lucro extra que seja independente da média geral, e sobre ela se possa erguer»(3) . Como assinala a Resolução Política do XVI Congresso do nosso Partido, analisando a situação dos nossos dias: «Acentuou-se ainda mais a ‘financeirização’ do capital, hoje cada vez mais rentista e especulativo, correlativa da tendência para a estagnação da esfera produtiva e da dificuldade de obtenção aí de taxas de lucro satisfatórias para as enormes massa de capital acumulado. Alimentando-se parasitariamente da sucção da mais-valia gerada na economia real e impondo-lhe os seus critérios próprios de obtenção do máximo lucro no mais curto prazo – a brutal hipertrofia da esfera financeira, com uma forte componente de capital fictício, ganha dinâmicas próprias, facilitadas pela liberalização dos movimentos de capitais, as múltiplas inovações e entidades financeiras e a utilização das novas tecnologias da informação e comunicação». Trata-se duma questão que está também associada a outros fenómenos de crescente importância nos nossos dias: as brutais tentativas de intensificar a exploração de quem trabalha, a instabilidade do sistema financeiro e monetário, o papel dos tráficos criminosos e ilícitos, a militarização e agressividade das potências imperialistas.

A derrocada da Enron entrelaça-se com a grave crise económica que actualmente investe o mundo capitalista, e que começou bem antes do dia 11 de Setembro (4) . Essa derrocada simboliza, no plano interno, aquilo que a derrocada da Argentina (mais um “exemplo de sucesso” das receitas do FMI...) representa em termos internacionais: o fracasso, mesmo sob a óptica dos critérios do grande capital, das políticas neoliberais tão em voga nos últimos anos. As dívidas da Enron ultrapassaram os 30 mil milhões de dólares. As suas acções, que chegaram a valer mais de 90 dólares na bolsa de Nova Iorque em Agosto de 2000, caíram a pique durante o ano passado, valendo apenas 30 centavos de dólar quando a empresa foi retirada das listagens de Wall Street. Numa demonstração da total irracionalidade do sistema, uma empresa cujo valor de mercado ultrapassou 80 mil milhões de dólares passou, em poucos meses, a ter o preço da sucata. O ocaso não foi vivido da mesma forma por todos, como é próprio duma sociedade de classes. Enquanto os chefes efectuavam pela calada vendas em grande escala de acções da sua empresa (que já sabiam estar a caminho de se afundar), os milhares de trabalhadores da Enron, e muito em particular aqueles que tinham as suas pensões de reforma em contas-poupança associadas às acções da empresa (as famosas “contas 401(k)”) eram mantidos na ignorância do que se passava, ou estavam mesmo contratualmente proibídos de vender as suas acções. Milhares de trabalhadores viram assim evaporar-se tudo: os seus empregos, as suas poupanças e as suas pensões de reforma. Outra lição a reter por quantos estejam tentados pela propaganda neoliberal das “vantagens duma reforma da segurança social”.

Independentemente dos desenvolvimentos que venha a conhecer este caso, a teia da Enron está muito longe de ser uma excepção. São por demais conhecidas as ligações estreitíssimas do Governo Bush com a indústria petrolífera e armamentista dos EUA. O DN de 17.1.02 dava conta de mais algumas das ligações dos Ministros de Bush: «A Secretária [Ministro] da Agricultura esteve ligada à Monsanto e à Pharmacia; John Ashcroft [Ministro da Justiça] à AT&T e à Microsoft; Donald Rumsfeld [Ministro da Defesa] à Pharmacia, Motorola e Sears; o Secretário da Energia, Spencer Abraham, à GM, Ford e Lear; o Secretário dos Transportes, Norman Minetta, à Lockheed, à Boeing e à United Airlines; [o M. dos Negócios Estrangeiros] Colin Powell à AOL e à Gulfstream; Paul O’Neill à Alcoa, International Papers e Lucent Technologies; Andrew Card à GM; e Condoleeza Rice à Chevron, Charles Schwaab e Transamerica». O Governo dos EUA é um Estado-Maior do grande capital norte-americano. Que, ao contrário do que por vezes se diz, tem “pátria”: tem Estado, Forças Armadas, meios diplomáticos e Serviços Secretos ao seu dispor. E como bem mostram os acontecimentos dos nossos dias, utiliza todos esses recursos na promoção dos seus interesses económicos e estratégicos, tanto a nível interno como a nível mundial.

Não se trata duma realidade exclusiva dos Estados Unidos. As teias de relações entre poder económico e poder político, “legais” ou “ilegais”, mas sempre atentatórias duma real democracia, são uma constante em todas as maiores potências capitalistas: do Japão à Alemanha; de Itália a França; do Reino Unido à Espanha ou Bélgica. Para não falar do nosso país, e dos países dependentes e periféricos. É cada vez mais evidente que o grande capital controla, directa ou indirectamente, o exercício do poder na generalidade dos países capitalistas. Assim se explica que as políticas de fundo sejam comuns (em especial após o enfraquecimento a nível mundial das forças mais consequentemente defensoras dos trabalhadores), quaisquer que sejam as cores políticas e as raízes históricas de quem governa. A Enron é exemplo de quem são esses “agentes económicos” e “forças do mercado” em nome dos quais reaccionários, conservadores, “socialistas”, “democratas-cristãos”, “ecologistas” ou outros “progressistas” mais ou menos “renovados” apregoam ser “necessário” privatizar indústrias, a saúde, o ensino, a segurança social, a energia, os transportes; ser “inevitável” aceitar sacrifícios de empregos, direitos, reformas, soberanias nacionais. Ao mesmo tempo que reforçam as despesas e políticas de guerra e de repressão interna. São políticas que não correspondem aos interesses, nem à vontade, da esmagadora maioria da população, e que por isso mesmo alimentam o crescente divórcio, apatia e abstencionismo (mas também revolta) que caracteriza hoje as democracias liberais em todo o mundo. Não se trata de coisas “inevitáveis”, nem “necessárias”: trata-se duma colossal operação de transferência de riqueza (e poder) das mãos da sociedade em geral para as mãos de um punhado de grandes capitalistas (que também a disputam entre si).

O facto de esta ser a realidade generalizada em regimes formalmente democráticos não pode deixar de suscitar a questão da verdadeira natureza e conteúdo das “democracias ocidentais de economia de mercado”. Assegurar uma democracia política, económica, social e cultural, exige hoje, mais do que nunca, a destruição do poder desses gigantescos grupos económico-financeiros que corrompem e corroem e que, controlando o poder estatal, estão dispostos a recorrer à pilhagem e à guerra em defesa dos seus lucros e do seu poder. Quem achar que “política anti-monopolista e anti-imperialista” é um chavão, que lhe chame o que quiser. Não será por isso que deixa de ser uma necessidade imperiosa dos nossos dias.

(1) Em A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, Obras Escolhidas de Marx e Engels, Volume III, p. 368-9, Edições Avante!

(2) Imperialism in Action, de John Peterson, em http://www.marxist.com.

(3) O Capital, Vol. III, Capítulo XV, p. 259, Edição em língua inglesa da Editorial Progresso, Moscovo, 1978.

(4) Recorde-se, a este respeito, a análise da Resolução Política do XVI Congresso do PCP.

«O Militante» - N.º 257 - Março/ Abril de 2002