Liberdade de criação e compromisso político |
Membro do Comité Central
O problema da correlação entre liberdade de criação e compromisso político é daqueles problemas de orientação política e ideológica que se colocaram historicamente aos partidos comunistas e revolucionários, assim como aos intelectuais e, em particular, aos criadores artísticos que, sendo ou não militantes partidários, partilharam ou partilham ideais de transformação revolucionária do mundo e da vida. É também daqueles problemas que reaparecem em conjunturas de particular urgência histórica, e cuja resolução política e prática se relaciona de forma mais ou menos directa e explícita com problemas teóricos trabalhados em diferentes disciplinas ou áreas disciplinares do conhecimento. Trata-se, neste caso, de problemas quanto à natureza, condições de possibilidade, modos de existência, e funções da(s) arte(s), estudados ou investigáveis pela história da arte; pela estética, a filosofia e a teoria da arte; pela antropologia cultural, pela sociologia ou pela teoria da cultura. Mas trata-se, também, de uma questão ideológica, que se coloca especificamente no plano ético: o da conjunção da responsabilidade do artista, enquanto tal, com a sua responsabilidade (política) perante o mundo histórico da vida. O problema, que cada artista resolverá (ou não), só começa a fazer sentido quando se percebe, por um lado, que a arte tem, tendencialmente e de diferentíssimas formas, uma dimensão política, sem que isso ponha em causa a sua autonomia relativa em relação às suas determinações histórico-sociais e, por outro, que a expressão artística de um compromisso político é, para além de outros aspectos, não uma questão de obediência, mas uma opção livre ou um acto de liberdade, assim como pode configurar-se de muitas maneiras.
Abre-se, assim, um enorme caderno de encargos. Neste texto, trabalharei basicamente sobre a resolução política do problema no nosso Partido e sobre alguns dos seus pressupostos imediatos. Um largo conjunto de questões terá de ficar para outra oportunidade.
O caracter estratégico da pluralidade de opções estéticas
A formulação essencial, nesta matéria, encontra-se no actual Programa do Partido, quando, entre os traços definidores da democracia cultural que aí apresentamos, escrevemos que ela implica:
- A criação das condições materiais e espirituais ao desenvolvimento da criação, produção, difusão e fruição culturais, com a rejeição da sua subordinação a critérios mercantilistas e no respeito pela controvérsia científica e pela pluralidade das opções estéticas. (p. 67; itálicos meus).
A formulação, que vem já da 1ª versão do Programa, aprovada no XII Congresso, realizado em 1988, é clara e condensa uma complexa e contraditória experiência histórica concreta, que é a do nosso próprio Partido, mas também a do movimento comunista à escala internacional, numa grande diversidade de circunstâncias, e que comporta acertos e erros, momentos luminosos e desastres da esperança.
Trata-se, também, de uma orientação que não é uma manobra oportunista para seduzir criadores, nem sequer é apenas da esfera táctica, mas é antes uma orientação estratégica.
Estratégica porquê? Por um lado, porque encontra e desenvolve algumas das hipóteses e intuições, dos procedimentos e análises, mais ricas e de mais longo fôlego, do materialismo histórico e da dialéctica materialista; por outro lado, porque exprime uma situação e uma cultura que sustentadamente se foram construindo e vivendo no Partido; e finalmente porque é coerente com outras formulações do nosso Programa.
Começo pela ordem inversa das razões que acabo de invocar.
1. Razões de consistência e coerência programáticas
Para além de consistente com o projecto da democracia avançada que integra quatro vertentes inseparáveis, esta orientação é coerente com outras, quanto à democracia cultural. Logo na primeira frase do 1º parágrafo do subcapítulo dedicado à política cultural, escreve-se que ela consiste na criação de condições para o desenvolvimento integral da pessoa humana e dos valores culturais da sociedade (pág. 66). Esta frase e, designadamente, a expressão que sublinhei só são compreensíveis e só fazem efectivamente sentido, por um lado, porque se correlaciona desenvolvimento individual e desenvolvimento dos valores culturais da sociedade, seguindo assim a repetida recomendação de Marx de que não devemos construir a noção de indivíduo a partir de uma sua contraposição abstracta com a de sociedade (ou, dito de outro modo, os indivíduos humanos são indivíduos que em larga medida se constroem socialmente). Por outro lado, a expressão sublinhada constitui um uso da noção de valores culturais que os toma implicitamente como positivos; o que não deve significar que não se possa reconhecer e falar de valores (ou de culturas) profundamente conservadores e reaccionários (como o racismo ou a xenofobia, o salve-se-quem-puder, a indiferença perante a opressão, a injustiça e a desigualdade, etc.). Acontece apenas que no texto se reserva o uso da palavra cultura para algo que é da ordem da criação livre e da acção emancipatória.
As ideias contidas na frase citada são ainda retomadas e desenvolvidas no último parágrafo deste subcapítulo do Programa, quando se avança que a democracia cultural [...] é um factor de emancipação individual, social e nacional, um factor de desenvolvimento multilateral dos indivíduos e da sociedade, um poderoso incentivo ao diálogo das culturas (pág.69-70). Finalmente, quando o Programa esboça os objectivos e as características do nosso projecto de construção de uma sociedade socialista, defende-se designadamente a transformação da cultura em património, instrumento e actividade de todo o povo, o progresso da ciência e da técnica, a expansão da criação artística, o estímulo à criatividade [...] (pág. 86).
Em todas estas frases do Programa supõe-se um papel radicalmente positivo da arte, enquanto aspiração, manifestação de liberdade e de capacidades humanas e, designadamente, enquanto factor de emancipação. Deve notar-se e merece desenvolvimento a ideia de que tais pressupostos não implicam uma idealização a-histórica e simplificadora, mas antes a valorização de uma possibilidade real.
2. Razões de experiência histórica e tradição cultural.
Entretanto,
anotemos o uso das expressões desenvolvimento integral
e desenvolvimento multilateral dos indivíduos; o que nos
permite passar à 2ª razão do caracter estratégico
do respeito pela pluralidade das opções estéticas. Essas
expressões vêm claramente na tradição cultural
do nosso Partido, e nomeadamente do pensamento de Bento de Jesus Caraça
sobre a cultura. Não só da conferência sobre A Cultura
integral do indivíduo, mas também por exemplo da conferência
sobre As Universidades Populares e a Cultura (1931). Nesta sua
intervenção, não só denuncia a apropriação
da cultura enquanto monopólio da classe burguesa que, por virtude
da organização social, torna inacessível a sua aquisição
à massa geral da humanidade - o que contém um esboço
de resposta à questão que acima coloquei sobre a idealização
da arte - como responde a uma crítica larga e longamente feita à
nossa tradição de pensamento, segundo a qual o marxismo apenas
implicaria uma noção instrumental da cultura.
O aperfeiçoamento constante dos meios de satisfação e desenvolvimento das necessidades [materiais], ideias [de cooperação e objectivos de ordem moral], e sentimentos [do belo], constitui a cultura, que no dizer de Karl Marx «compreende o máximo desenvolvimento das capacidades intelectuais, artísticas e materiais encerradas no homem».
A cultura é assim simultaneamente um meio e um fim. (pág. 6)
Mas, entre esses anos 30 e o nosso presente, podemos citar outras formulações, outros modos de pensar, que mostram o caracter estratégico da orientação que estamos a procurar compreender. A obra de Óscar Lopes, que é um dos grandes autores da cultura humanística em Portugal, é um largo e poderoso tesouro de razões que se prendem directa e indirectamente com o nosso tema. Mas escolhamos, para exemplo, um discurso directa e concentradamente político: toda a secção 7ª da intervenção de Álvaro Cunhal no encerramento da 1ª Assembleia de Artes e Letras da ORL do PCP (1976). Aí se diz, por exemplo:
[...]
O Partido não pretende hoje, nem pretenderia se dirigisse a política cultural do país, impor aos seus militantes e aos artistas em geral modelos estéticos ou escolas estéticas.
Nada mais prejudicial à criação artística que a submissão a ordens burocráticas ou patronais impondo à iniciativa do criador parâmetros estreitos que cortem a imaginação e o sonho.
Um partido como o nosso, capaz de todos os sacrifícios para libertar o homem, luta necessariamente também para libertar o artista. Quando a própria revolução é a realização de sonhos milenários, como poderia o nosso Partido, força revolucionária que é, cortar as asas ao sonho.
O partido não procura impor aos artistas nem escolas, nem estilos. Modelo estético partidário é coisa que não existe.
A nossa própria organização, de que a Assembleia foi o espelho, mostra bem como se encontram, unem e actuam no Partido, escritores e artistas de muito diversas tendências estéticas. [...] (pág. 211-2, itálicos do texto)
Mesmo que não tenha sido sempre assim, a situação a que o camarada se refere, neste último parágrafo, era e continua hoje a ser real.
Se ampliarmos a nossa observação, no espaço e no tempo, poderemos verificar muito provavelmente que, ao longo do século XX, um pouco por todo o mundo, e em muitos dos grandes movimentos estéticos que marcaram as diferentes artes, encontramos criadores artísticos que foram, mais ou menos duradouramente, comunistas, ou que connosco trabalharam e lutaram. É particularmente notória a sua participação em momentos de profunda renovação das linguagens artísticas, mesmo se não é possível generalizar a existência de uma correlação entre vanguarda política e vanguarda estética, como em certos momentos foi pensada, tentada e experimentada por alguns. É também provavelmente certo que a história, em larga medida por contar, da relação entre partidos comunistas e criadores artísticos não é nem linear, nem idílica, antes é feita de encontros fulgurantes e de equívocos e desencontros decepcionantes, dolorosos e por vezes terríveis; assim como as razões nem sempre são puramente de divergência estética, mas de efectiva e estrita divergência política; e as responsabilidades não são sempre e de igual modo imputáveis a um destes campos que se intersectam.
De qualquer forma, só o mais cego preconceito pode rasurar o papel de muitos comunistas na criação de obras que são hoje património artístico indeclinável das sociedades humanas.
3. Razões teórico-metodológicas
Aqui entro na parte mais árdua e complexa do caderno de encargos. Só passarei o limiar. Desde o início do trabalho de Marx e Engels, encontramos formulações pelas quais se procura entender a arte na sua específica articulação com as outras instâncias da vida social e mesmo como expressão da conflitualidade de classe; assim como encontramos também uma fecunda intuição do papel da arte como factor do que designarei como construção histórico-antropológica. Apenas duas citações que nos convidam a fazer esse caminho.
No movimento final da Introdução à crítica da economia política de 1857, Marx escreve:
Mas a dificuldade não está em compreender que a arte grega e a epopeia [ou Shakespeare, um pouco antes no texto] estão ligadas a certas formas do desenvolvimento social. A dificuldade reside no facto de nos proporcionarem ainda um prazer estético e de terem ainda para nós, em certos aspectos, o valor de normas e de modelos inacessíveis. (pág. 240)
E nos Manuscritos Económico-Filosóficos de 1844:
Por outro lado, apreendido subjectivamente: tal como só a música desperta o sentido musical do homem, tal como para o ouvido não musical a mais bela música não tem nenhum sentido, não é nenhum objecto, porque o meu objecto só pode ser a confirmação de uma das minhas forças essenciais, [...]somente pela riqueza objectivamente desdobrada da essência humana é em parte produzida, em parte desenvolvida a riqueza da sensibilidade humana subjectiva - um ouvido musical, um olho para a beleza da forma, somente em suma sentidos capazes de fruição humana, sentidos que se confirmam como forças essenciais humanas. Pois não só os 5 sentidos, mas também os chamados sentidos espirituais, os sentidos práticos (vontade, amor, etc.), numa palavra o sentido humano, a humanidade dos sentidos, apenas advém pela existência do seu objecto, pela Natureza humanizada.
A formação dos 5 sentidos é um trabalho de toda a história do mundo até hoje. (pág. 98)
«O Militante» - N.º 255 - Novembro/Dezembro 2001