Ciência e Sociedade
na aventura humana do II Milénio




Investigador Científico. Membro da Direcção da Organização dos Trabalhadores Científicos

“A semente da ciência não é lançada nem se desenvolve se o terreno social não estiver preparado para isso pela actividade económica”
J.D.Bernal (1)

É difícil a alguém, hoje em dia, dar um passo ou desenvolver qualquer actividade sem que venha ao seu encontro ou se lhe depare uma qualquer manifestação do engenho humano, materializada em mil e uma formas de aplicação da ciência - ferramenta ou utensílio, meio de transporte, comprimido que alivia a dor, uma extensão dos sentidos, como o telefone ou a televisão, ou a informação meteorológica, por exemplo.

A evolução a ritmo acelerado do conhecimento científico e técnico é acompanhada, proporciona e beneficia, de um desenvolvimento das forças produtivas de tal ordem que, pela primeira vez na história, a acção humana sobre a natureza se faz sentir a uma escala susceptível de pôr em causa certos equilíbrios naturais cuja perturbação pode ter consequências sérias sobre as condições de vida na terra, do homem como de outras espécies. A natureza, o meio natural - o ar, as águas, os solos, as florestas, a orla marítima - apresentam sinais do impacte da actividade de uma população muito numerosa, em crescimento rápido, determinada por necessidades de sobrevivência, e ao mesmo tempo, da depredação dos recursos naturais característica de actividades deliberadamente desreguladas com o objectivo da maximização do lucro, das grandes empresas transnacionais.

Torna isto legítimo pensar e será útil que se pense, que amadurecem no presente as condições que tornam indispensável uma modificação qualitativa da organização social em ordem a tirar partido dos grandes avanços do conhecimento da natureza (e do homem) e do desenvolvimento já alcançado pelas forças produtivas, para resolver os problemas que se colocam à espécie humana, dando condições de vida dignas aos habitantes do planeta. E, encarando assim a nossa época como uma época de transição, voltemos agora o nosso olhar para o passado para lembrar que o segundo milénio foi marcado pela grande transformação histórica, que é a transição do sistema feudal para o capitalismo.

Importa dizer que a evolução do pensamento científico e da ciência, de modo algum se processa isoladamente mas se dá num determinado contexto social, marcado por condições económicas, políticas e culturais específicas que condicionam directamente essa evolução e são também, embora a mais longo prazo, condicionadas por ela.

Por outro lado, durante o período feudal que, formalmente, se considera como indo até meados do séc. XV, no primeiro período da construção do capitalismo (o período do Renascimento e da Reforma, também chamado da primeira revolução industrial) e mesmo até à grande revolução industrial dos séculosXVII e XVIII, o aperfeiçoamento técnico e o desenvolvimento de novas técnicas não recebeu por assim dizer nehuma contribuição verdadeiramente relevante da ciência. Esse desenvolvimento e aperfeiçoamento foi no essencial obra de artífices ou operários e fruto do seu engenho e destreza. “As principais transformações que caracterizam a grande Revolução Industrial - a substituição da madeira pelo carvão, como combustível; da madeira pelo ferro como material de construção; do cavalo pela força hidráulica e o vapor; do tear simples pelo de acção múltipla - são todas produto do engenho de trabalhadores-artífices, sujeitos à tripla pressão económica dos mercados em expansão, da consequente carência de materiais tradicionais, e do estrangulamento da produção por falta de mão-de-obra” (2). A ciência, entretanto, aproveitou-se da técnica.

Com efeito, ao longo de milhares de anos, na antiguidade clássica como nas sociedades esclavagista e feudal, a ciência caracterizou-se por construções abstractas, sem base experimental, destinadas a sustentar uma visão filosófica e religiosa do mundo, e constituindo parte essencial da superestrutura ideológica da sociedade, ao serviço da classe dominante. Numa sociedade dividida em classes, os homens de ciência encontravam-se ao lado dos senhores, com os funcionários, ao passo que os artifíces e trabalhadores manuais, se achavam pouco acima dos camponeses e, em certos casos, partilhavam a condição do escravo.

Desligada da prática e frequentemente em confronto com ela, a ciência não se mostrava capaz de promover a inovação técnica. Ao longo do período feudal e na fase ascendente do capitalismo, se a técnica não aproveitou, salvo raras excepções, da ciência, verificou-se o contrário em diversos domínios, pois o aperfeiçoamento e a criação de novos maquinismos e processos de trabalho representou um incentivo para a construção de hipóteses e teorias explicativas de fenómenos que a inovação tecnológica punha em evidência. Assim, na fase de transição para o capitalismo, “até final do século dezassete, a ciência teve muito mais a receber de um renovado contacto com as actividades práticas do que a dar sob a forma de melhoramentos radicais das técnicas” (3).

De resto, a divisão entre as correntes tradicionais científica e técnica, que evoluíram quase sempre separadamente, persiste e ainda não se esbateu inteiramente nos nossos dias.

Entre meados do séc. XV e o final do séc. XVII deram-se transformações extraordinárias na representação do mundo e na forma de pensar a natureza e o universo. Assim, ao mesmo tempo que se verificavam grandes progressos nos domínios da mecânica e da astronomia, com Galileu e Newton, entre outros; e se davam, com os descobrimentos, avanços revolucionários no conhecimento do planeta, na geografia e nas ciências naturais, eram elaborados os novos métodos experimentais e do cálculo matemático, para o estudo científico das técnicas e da natureza, aspecto essencial do que se pode chamar o período da revolução científica (1450-1700).

A nova representação do mundo foi construída sobre as ruínas do “universo hierárquico de Aristóteles”, herdado dos clássicos, retomado e canonizado, igualmente, por filósofos e teólogos escolásticos de raiz cristã e do Islão. Citando Bernal, “o universo hierárquico de Aristóteles cedeu perante a máquina do mundo de Newton”. Tal não aconteceu, entretanto, sem a feroz oposição da Igreja católica e do papado. Com efeito, a nova filosofia da experimentação e do cálculo, olhava o conhecimento já não como um meio de acomodar o homem a um mundo estático, que deveria permanecer igual a si mesmo até ao dia do Juízo Final, mas como um instrumento para transformar o mundo e tirar partido da natureza pelo conhecimento das suas leis.

A revolução científica abriu caminho à intervenção da ciência na esfera da produção material, primeiro, na posição de contribuir para a resolução de problemas surgidos da necessidade, imposta pela evolução dos mercados, de adaptar ou substituir processos técnicos estabelecidos, e, mais tarde, já no séc. XIX, dando origem à criação de raiz de certos ramos industriais (química, electrotecnia) a partir de conhecimento científico novo. Um notável precursor deste movimento foi a descoberta do vazio na primeira metade do séc. XVII - um resultado científico - que levaria à utilização da força do vapor cerca de um século mais tarde.

No séc. XX, sobretudo a partir dos anos cinquenta, a ciência invade todas as esferas da vida e da actividade social. Com a revolução científico-técnica dá-se a penetração da ciência em todas as formas de produção, incluindo na respectiva organização, transmissão da informação e intercomunicação. Citando Bernal, na época da revolução científico-técnica junta-se ao saber como (“know how”) o saber porquê (“know why”). O impacte do conhecimento científico na economia e na política acentua-se: a ciência integra-se na técnica, torna-se elemento indispensável das forças produtivas da sociedade e é ela própria organizada e usada como instrumento de dominação pelas grandes empresas transnacionais e os centros de decisão imperialistas.

Ciência e sociedade influenciam-se e condicionam-se mutuamente, e as suas relações sempre foram e são, relações complexas cujo estudo importa aprofundar. A ciência tem impactes directos na sociedade e impactes indirectos. Os primeiros, mais fáceis de observar, são os que se traduzem em mudanças do quadro físico ou material da vida das pessoas, mudanças que são normalmente percebidas como as principais consequências da ciência. Entretanto os efeitos indirectos que actuam na esfera das ideias, são mais importantes e também mais complexos. A influência mútua entre ciência e sociedade no plano ideológico pode ilustrar-se com o exemplo de dois períodos marcantes do segundo milénio. A construção da nova imagem do mundo de Isaac Newton (1642-1727) baseada no princípio da lei natural e dispensando a intervenção divina, prende-se, na organização política, com o império da lei a substituir o governo autoritário assente no poder absoluto do soberano. A teoria da selecção natural e a luta pela sobrevivência, chave da evolução das espécies, de Charles Darwin (1809-82), reflectia a livre competição capitalista na organização económica.

Do séc. XI ao séc. XV, a preparação técnica do renascimento

A economia feudal, baseada na terra e na actividade agrícola, estendeu-se por um período de doze séculos, entre o séc.V da nossa era e o séc. XVII mas foi na Europa entre os séculos XI e XIV que o sistema feudal conheceu o seu maior desenvolvimento, com as suas hierarquias políticas e religiosas, o seu património de conhecimentos, experiência prática e expressão artística.

A unidade económica era a aldeia que reunia um pequeno número de aldeãos geralmente ligados por laços familiares e que partilhavam a terra e os trabalhos da lavoura. Acima deles situavam-se os membros de uma classe senhorial, leigos e eclesiásticos, comandados por reis e bispos que, na Europa cristã, deviam por sua vez, formalmente, obediência ao Papa. Os camponeses das aldeias deviam retirar das terras que trabalhavam às quais estavam ligados para a vida, o sustento dos seus e do seu senhor, proprietário das terras. Esta obrigação de serviço ao senhor, constituia a servidão feudal, distinta da escravatura, porque o servo tinha a garantia da terra, e distinta da exploração capitalista em que o trabalho é vendido contra um salário.

Os senhores feudais e as suas pequenas cortes, constituiam uma minoria parasitária que se estima da ordem de dez por cento da população e que era mantida pelos produtores-servos. O comércio e os transportes eram praticamente inexistentes pelo que os senhores se deviam deslocar periodicamente nas suas terras, de lugar para lugar, albergando-se nas suas várias casas para ir ao encontro dos mantimentos que necessitavam de consumir. “O próprio rei não podia permitir-se estar muito tempo no mesmo local antes devia andar às voltas na companhia da corte como um circo. (...) O parasitismo era, contudo, exaustivo e inteligente. Os encarregados das casas senhoriais, tinham uma boa experiência de como extrair até à última gota a contribuição dos servos.” (4) Um aspecto importante do período feudal foi a crónica escassez de mão-de-obra que durou ao longo de quase todo o período. Essa escassez era consequência da permanente pressão por parte dos nobres para o alargamento das áreas cultivadas, o que, naturalmente, requeria mais gente sobretudo na época das colheitas e isto quando, na Idade Média, não existia a força de trabalho escravo do período anterior. No plano do desenvolvimento das forças produtivas esta situação de escassez foi determinante na procura de novos recursos técnicos que tiveram na Idade Média um incremento significativo e contribuiram para abrir caminho à revolução científica do Renascimento. Através da exploração e do aperfeiçoamento de invenções e descobertas que permitiram significativos avanços técnicos e uma revolução económica, com aumento da produtividade do trabalho, o incremento das manufacturas, dos transportes e do comércio, o sistema feudal avançou para a sua própria ruptura e deu uma importante contribuição para o estabelecimento da futura economia e para o desenvolvimento da ciência experimental do período seguinte.

As grandes inovações técnicas do período feudal

As inovações técnicas de maior alcance do período feudal parecem ter tido origem no Oriente, em primeiro lugar, na China. É hoje claro que o antigo império chinês, situado no continente asiático a sudoeste das ilhas nipónicas, protegido dos tártaros a noroeste, por uma imensa muralha (5), deu ao mundo uma contribuição preciosa no domínio das técnicas que, em alguns casos, chegaram ao Ocidente com um atraso de perto de mil anos. Destacam-se nessa contribuição e correspondendo a uma assimilação ocorrida no período feudal, a coelheira ou coleira de cavalo de tiro; o relógio mecânico movido a pesos; a bússola magnética; o leme de popa; a pólvora; o papel e a imprensa (6). Junta-se-lhes o moínho, sobretudo, o moínho movido a água, já utilizado, embora pouco, pelos romanos, agora usado extensivamente, no período feudal, a ponto de não haver senhorio que não possuísse nas suas terras moínho que os súbditos eram aliás obrigados a utilizar. Os moínhos não eram usados apenas para moer o grão de cereais. Eram utilizados também como mecanismo de transmissão de força para usos mais gerais tirando partido de dois dispositivos, novamente de origem oriental, o martinete e a biela-manivela. Estes dispositivos permitiam transformar um movimento de rotação em movimento de vai-e-vem (para martelar ou para estirar metal, fabricando lâminas ou fios). As azenhas e o moínho de vento, este provavelmente trazido da Pérsia e chegado à Europa em meados do séc. XII, foram usados para apisoar tecidos, accionar foles, forjar o ferro ou serrar madeiras. A sua expansão deve-se certamente à escassez de mão-de-obra que aparece assim como motor de inovação técnica.

Uma outra consequência dessa expansão foi o aparecimento de uma classe profissional de artífices capazes de construir, manter e reparar moínhos de água e de vento, acumulando uma rica experiência de mecânica e hidraúlica. Esses artífices viriam a ser mais tarde protagonistas de outros desenvolvimentos técnicos, de maior complexidade, nos períodos subsequentes, do Renascimento e da fase inicial da Revolução Industrial.

A coleira do cavalo de tiro, que permitia que a força fosse transmitida pelos ombros do animal e não pelo peito (sistema que aquele veio substituir e que dificultava a respiração do animal) permitiu multiplicar por cinco a força de tracçâo. Com os novos arreios passou a poder usar-se o cavalo para lavrar solos pesados em vez de usar o boi. Introduziu-se também a ferradura cravada nos cascos e pôde trazer-se o cavalo para os caminhos, sem lhe ferir as patas, puxando carros carregados, o que facilitou os transportes e abriu a porta ao desenvolvimento das trocas comerciais.De entre as inovações técnicas medievais distingue-se como uma das mais ricas em consequências sociais mas também científicas, a introdução da pólvora e do canhão, a ponto de, figuradamente, se poder dizer que com eles o sistema feudal foi pelos ares.

A pólvora, mistura de salitre (nitrato de potássio) com enxofre e carvão de madeira em pó, terá sido usada na China durante séculos na manufactura de fogo de artifício, antes de chegar ao Ocidente. Na Península Ibérica terá sido introduzida pelos mouros e apareceu em Portugal pela primeira vez, em finais do séc. XIV, nos “trons de fogo”, pequenas peças de artilharia que os castelhanos trouxeram para Aljubarrota. A técnica militar foi revolucionada pelo canhão e por uma variedade de “tubos de fogo”, individuais e portáteis - mosquetes e outros - que depressa se seguiram. Os canhões eram muito mais baratos e apesar de tudo mais facilmente deslocáveis de que outras armas que lançavam projécteis a distância, como as catapultas e balistas, cuja fonte de energia era puramente mecânica. As muralhas dos castelos senhoriais começaram a vir abaixo a tiro de canhão ao mesmo tempo que só os grandes senhores e os reis, podiam dispor dos meios necessários para aceder às matérias-primas e aos conhecimentos tecnológicos necessários para levar a bom termo a fabricação dos canhões. Assim, a pólvora acabou por abrir caminho ao fortalecimento dos estados-nação com a subordinação dos senhores feudais ao poder central do rei.

A fabricação da pólvora exigia matérias-primas das quais a mais importante seria o salitre que importava extrair e purificar, envolvendo conhecimentos, nomeadamente, de solubilidade de sais e cristalização. O fenómeno da explosão por seu lado é, em si mesmo, portador de um manancial de conhecimentos novos e de incentivo à descoberta de outros fenómenos e regras da natureza. Trata-se de uma poderosa libertação de energia misteriosamente contida num pequeno volume ou massa de matéria. Havia claramente fogo, luz e calor que se manifestavam, mas ao contrário de todos os outros fogos conhecidos, não precisava de se alimentar de ar. O ar, “elemento” reputado indispensável à combustão! Pensou-se que o ar conteria um “espírito de salitre”, mas não se pensou que o inverso estaria mais próximo da verdade (7). Por outro lado a força que se manifestava e que impelia a bala - uma bola de pedra ou metal - a grande distância, era a demonstração prática e fazia despertar a consciência da possibilidade de, pelo fogo e pelo calor, produzir trabalho, princípio que levaria à utilização da força do vapor em máquinas alimentadas pelo vapor produzido numa caldeira aquecida. A arte de fabricar os canos dos canhões mostrou-se mais tarde indispensável na fabricação dos cilindros das máquinas a vapor. Por outro lado, ainda, o movimento das balas e a necessidade de estudar as trajectórias e o alcance dos projécteis, deu impulso ao desenvolvimento da mecânica dos movimentos - a cinética e a dinâmica.

A destilação do alcool, já aperfeiçoada pelos árabes, foi introduzida na Europa por volta do séc. XII e conheceu uma considerável expansão dois séculos mais tarde, por altura da Peste Negra que causou grande número de vítimas, já que se supôs que a ingestão do alcool impediria que se contraísse o mal. A indústria da destilação foi-se expandindo, alargando-se a outros produtos e aperfeiçoando-se nos seus processos, com a introdução de aparelhos de destilação mais elaborados dotados de condensadores. Formou-se assim, a partir da necessidade social do alcool e do incentivo à sua obtenção, o embrião de uma indústria química de base científica que abriu o caminho ao desenvolvimento da química orgânica.

O estudo da destilação, envolvendo os fenómenos da evaporação, ebulição e condensação, levantou questões incompreensíveis que levaram alguns séculos a entender, num longo, processo de amadurecimento que conduziria já no séc. XVIII à descoberta do conceito de calor latente e, mais à frente, ao estabelecimento da termodinâmica, e à concepção de máquinas e motores térmicos eficientes.

É curioso notar que apesar da sua importância social as inovações técnicas introduzidas no período feudal, foram quase completamente ignoradas quer pelos humanistas do Renascimento que consideraram aquele período uma “idade das trevas” quer pelos intelectuais e cronistas medievais, quase todos eles eclesiásticos, ainda que referências a essas mesmas técnicas estejam presentes com destaque em certos documentos da vida do dia-a-dia tais como pendências judiciais e descrições de herdades ou senhorios feudais. Trata-se sem dúvida de um reflexo do distanciamento, que então era marcante, entre actividade intelectual teórica, de uma aristocracia do pensamento e uma actividade prática plebeia, como tal, objecto de desvalorização.

A energia misteriosa

A energia que se liberta quando a pólvora explode decorre de uma transformação química associada à transformação de umas substâncias em outras: os reagentes e os produtos da reacção. É, de algum modo, uma energia contida na matéria, oculta e insuspeitada, que, em circunstâncias particulares, se manifesta.

Ao longo dos séculos, grande parte da actividade científica ocupou-se do estudo de transformações da matéria - mudanças de forma e de qualidade - que em muitas situações se davam visivelmente em associação com energia absorvida ou libertada nessas transformações.

Um aspecto fundamental do estudo consiste em distinguir exactamente, em qualidade e em quantidade, o que finalmente é transformado e por isso desaparece e o que resulta da transformação e por isso é novo e aparece.

Foi na época da Revolução Francesa, em finais do séc. XVIII, que o grande químico francês Antoine Lavoisier (8) estabeleceu numa base experimental e quantitativa o princípio fundamental da conservação da matéria traduzido na expressão “nada se cria nada se perde, tudo se conserva”.

Este foi um golpe de asa que constitui um marco no pensamento científico e no pensamento racional em geral. A matéria não podia surgir do nada nem desvanecer-se sem rasto, tal como a vida não podia surgir senão de outra vida (como Pasteur viria a estabelecer em meados do séc. XIX contra a teoria da geração espontânea dos micróbios). E a energia?

Com a entrada do séc. XIX, adquiriram novo ímpeto os progressos da ciência e os progressos da técnica, agora numa relação já muito mais equilibrada, ciência-técnica e técnica-ciência. Naturalmente, com a crescente utilização do carvão, do vapor e também da electricidade, a questão do rendimento das máquinas e, logo, da utilização da energia, adquiria uma importãncia extraordinária. Entende-se assim que se diga que o príncipio da conservação da energia, estabelecendo uma medida comum às várias formas de energia - trabalho mecânico, electricidade, calor - e estabelecendo uma equivalência entre elas, terá sido a maior descoberta física dos meados do século dezanove. Passa a existir um termo ou substracto comum - energia- a toda a actividade humana , indústria, transportes, iluminação, a alimentação e a própria vida.

Nos últimos anos do séc. XIX uma sucessão de novas descobertas fundamentais viriam pôr em causa a estrutura do edifício do conhecimento científico construído nos cem anos anteriores desde a grande racionalização da química empreendida por Lavoisier e que assentava na imutabilidade e indestrutibilidade das substâncias químicas elementares, isto é, dos átomos.

Em 1895, entram em cena os raios X e em ligação com esta descoberta, imediatamente a seguir, no mesmo ano, Henri Becquerel, descobre o fenómeno inteiramente novo da radioactividade ao verificar que um sal de urânio conhecido pela sua fosforência, emitia espontaneamente uma radiação penetrante invísivel como acontecia com os raios X, capaz de impressionar uma chapa fotográfica colocada na sua vizinhança.

A grande novidade era o facto de a misteriosa radiação do urânio surgir de uma matéria aparentemente inerte, não de qualquer aparelho, não se tratando também de uma reacção química que exigiria sempre mais do que um reagente.

A surpresa desta descoberta é patente na seguinte citação do notável químico Frederick Soddy (9): “A força que acciona a maquinaria do mundo moderno é muitas vezes misteriosa mas as leis da energia dizem que nada se move sózinho e a nossa experiência, apesar das muitas máquinas de movimento perpétuo que diversos inventores afirmaram ter construído, sempre confirmou esta doutrina até encontrarmos o rádio. Nada se modifica por si na Natureza, excepto aparentemente o rádio e as substâncias radioactivas. Eis porque, com a radioactividade, a ciência se acha em terreno completamente novo.”

Desde então percorreu-se um longo caminho que viu enormes avanços na ciência e na técnica surgir a um ritmo nunca antes igualado na história.

O “terreno completamente novo” não se esgotou e se algum ensinamento de fundo deve aqui ser sublinhado, a fechar esta necessariamente breve digressão pela aventura humana do segundo milénio, é o de que a descoberta dos segredos da natureza, tarefa colectiva da Humanidade, é uma tarefa sempre inacabada, e a explicação da natureza que em cada época se aceita é sempre uma verdade relativa condicionada pelos valores da cultura e da economia dominantes.

Notas:

(1) John Desmond Bernal (1901-1971) autor da obra monumental “A Ciência na História”, foi um dos fundadores da Federação Mundial dos Trabalhadores Científicos, com Frédéric Joliot-Curie. Professor em Cambridge e Londres, físico distinto, membro da britânica Royal Society, distinguiu-se pelo seu trabalho em prol da Paz tendo recebido, entre outras distinções, o Prémio Lenin, em 1953.
(2) J. D. Bernal, “Science in History”, Vol.4, p.1229, Penguin Books, 1969.
(3) Op. Cit. Vol. 2, p. 375.
(4) Op. Cit. Vol. 1, p. 288.
(5) A obra monumental, justamente famosa, chamada “muralha da China”.
(6) Sendo claro que estas inovações tiveram, como se verá adiante, enorme impacte económico e social na Europa medieval, há ainda que esclarecer porque razão estes e outros avanços técnicos que surgiram muito cedo na China, alguns na Índia e também no mundo árabe, não tiveram aí as consequências que tiveram na Europa feudal. (Bernal, op. cit. Vol. 1, p. 312).
(7) Isto é, que o salitre conteria o agente da combustão. O oxigénio só viria a ser descoberto 400 anos mais tarde (Priestley, 1774). A descoberta do oxigénio pôs fim à teoria do misterioso fluido chamado flogisto que se inventara para explicar a combustão e que era geralmente aceite mesmo pelo próprio Priestley.
(8) Lavoisier pertencia à corporação dos cobradores de impostos do Rei, que foi perseguida, e ele próprio guilhotinado, mas a sua execução não teve directamente a ver com a sua pessoa e muito menos com a sua actividade científica.
(9) Frederick Soddy que foi também um notável divulgador de ciência, reuniu em livro com o sugestivo título “A interpretação do rádio”, uma série de “lições experimentais populares” dadas em 1908 na Universidade de Glasgow para um público vasto. É desse livro que se retirou a citação apresentada.

«O Militante» - N.º 253 - Julho/Agosto 2001