O imperialismo alemão
e o renascimento militarista na Europa



Professor

Poucos meses após a agressão da NATO contra a Jugoslávia, o ministro da Defesa da Alemanha, Rudolph Scharping, ex-presidente da social-democracia alemã e Presidente do Partido Socialista Europeu, anunciou a intenção de reestruturar “pela raíz” a Bundeswehr, visando o aumento para o triplo dos efectivos da força de intervenção rápida e o apetrechamento do exército com novas armas ofensivas. O Governo de Schröder pretende que a Alemanha, até ao ano 2006, esteja em condições de participar no estrangeiro, durante um ano, numa “grande operação” militar envolvendo 50 mil homens, ou em duas simultâneas, durante vários anos, cada uma com um contigente até dez mil soldados. Trata-se de uma dramática rotura na doutrina militar alemã em vigor desde 1945 e que modifica o carácter defensivo das forças armadas, transformando-as num verdadeiro exército de intervenção e agressão. Será difícil encontrar um formulação mais precisa dos objectivos belicistas da Alemanha do que a descrita pelo general Reinhard Herden do Estado-Maior General do Exército.

Herden, que dirige no Serviço de Informações da Bundeswehr o departamento de análise e prognóstico de riscos, escreve no orgão oficial do exército, Truppenpraxis (2196, pág. 7) que “as grandes guerras do século vinte processaram-se entre Estados abastados. No próximo século, os Estados ricos que agora vivem em paz terão de defender o seu nível de vida contra os povos dos Estados e regiões mais pobres. A humanidade tem à sua frente um século de grandes insuficiências. Para se obterem coisas que antes se podiam comprar vai ser necessário fazer a guerra”. E o general, que pelos vistos continua a sonhar com o regresso aos impérios coloniais, passa a desenvolver o cenário seguinte: “O séc. 21 será a época de um novo colonialismo... as futuras colónias serão fundamentalmente fornecedoras de matérias-primas e mercados de escoamento para as potências coloniais... Os governos dos Estados ricos estabelecerão corredores de segurança físicos e digitais para o transporte das riquezas naturais e do comércio, assim como da informação, que terão de ser vigiados militarmente. E aquele oficial general das forças armadas da Alemanha conclui que “os países menos privilegiados opor-se-ão ao Ocidente. Os povos desses países irão levantar-se com armas contra o mundo industrializado. Grandes conflitos convencionais podem irromper com base na disputa pelas riquezas naturais ou em conflitos interculturais ou em ambos simultaneamente”.

Pela voz de um dos seus generais, o imperialismo, convencido de que a rapina é um direito legítimo do mais forte, ameaça recorrer à guerra para conter a revolta contra as injustiças que vitimam os povos por ele oprimidos.

Desde há uma década que a Alemanha tem vindo a instigar a vertiginosa militarização da União Europeia e a adopação pela NATO de um novo conceito estratégico abertamente agressivo e contrário ao direito internacional.

Logo no chamado “dia da unificação” (3.10.90), em que Kohl afirmaria eufórico que “somos o país mais forte da Europa, não só devido ao número de habitantes mas de acordo com muitos outros dados”, os círculos do capital alemão reconheceram imediatamente que, com o fim da URSS e dos Estados Socialistas do Leste, tinha chegado a hora da revanche e de uma nova fase expansionista do imperialismo na Europa. Mais tarde, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Kinkel, ao abordar “a política externa alemã numa nova ordem mundial” (FAZ/93), será muito mais explícito ao defender que “agora trata-se de concretizar duas tarefas. No interior temos de nos transformar de novo num só povo, e no exterior temos de conseguir aquilo que já falhámos por duas vezes”. Para não assustar com ambições que no passado desencadearam duas guerras mundiais, Kinkel acrescentará: “... encontrarmos, em sintonia com os nossos vizinhos, o papel que corresponde aos nossos desejos e ao nosso potencial”. O reconhecimento da Croácia pela Alemanha, em Dez/91, contra a vontade de esmagadora maioria dos Estados europeus e de todo o mundo, mostra qual o valor atribuído por Bona à tão apregoada “sinfonia”. Em 95, será a vez do presidente da república, Roman Herzog, proclamar que “a globalização da política alemã é inevitável” e que “temos de estar preparados para o emprego da força militar”.

A adopção pela Alemanha desta nova doutrina militar de carácter expansionista começou a ser delineada nas cimeiras da NATO de Londres (5/6.6.1990) e de Roma (7/8.11.1991), sendo posteriormente desenvolvida nas célebres “Directivas para a Política de Defesa” (Verteidigungspolitischen Richtlinien - 26.11. 92), apresentadas pelo então ministro da Defesa do governo de Kohl, Volker Rühe. Aí se diz que a rotura política mundial “criou uma nova constelação de chances e perigos”, na qual “o papel da Alemanha unificada na/e para a Europa, incluindo o horizonte estratégico” terá de ser “redefinido” de acordo com os seus “interesses vitais de Segurança”, os quais englobam “a protecção dos seus cidadãos contra perigos externos e a chantagem política” (sem especificar que perigos nem a sua proveniência concreta). A nova política militar passa ainda a incluir “a prevenção, a contenção e o fim de crises e conflitos que possam afectar a estabilidade e a integridade da Alemanha” (sem qualquer limite geográfico), assim como o assegurar “a manutenção do mercado livre mundial e o acesso sem obstáculos aos mercados e matérias-primas”.

É na sequência desta doutrina que o secretário de estado da Defesa, Lothar Rühe, precisará que “a defesa do país não pode continuar a ser o critério para a existência das forças armadas. Defesa colectiva confinada ao território da Aliança não pode manter-se como a função central da NATO, tendo como núcleo mais importante forças armadas nacionais. A principal função das forças armadas aliadas tornou-se o apoio militar à contenção de crises e a prevenção de conflitos; o intervir preventivamente em situações ameaçadoras. Para tal são necessárias forças de intervenção aérias, marítimas com uma componente de forças terrestres aeriamen-te transportadas sem o inconveniente das grandes mobilizações” (“Ainda faltam os exércitos do século vinte e um” - Die Welt, 4.6.1996).

É impressionante verificar que desde Maastricht, ao Euro e ao Banco Central Europeu em Frankfurt, da expansão da NATO e da União Europeia para o Leste até à agressão imperialista nos Balcãs, tudo se processa de acordo com os chamados “interesses vitais” da Alemanha.

É neste quadro que se insere ainda a intervenção proferida em Washington em 1996, pelo ministro da Defesa, Volker Rühe, defendendo que “com o tempo é impossivel aceitar que a fronteira leste da Alemanha seja a fronteira entre estabilidade e instabilidade na Europa. A fronteira leste da Alemanha não pode ser a fronteira da União Europeia e da NATO. Ou nós exportamos estabilidade ou importamos instabilidade”. A este propósito o investigador do movimento pacifista alemão, Ernst Woit - citando opiniões expressas pelo ex-presidente da comissão militar da NATO, general Klaus Naumann, e pelo antecessor de Rühe, Rupert Scholz - adverte que “mesmo se neste momento os dirigentes alemães não mostram qualquer interesse em alargar as fronteiras do seu Estado para o Leste, a sentença do Tribunal Constitucional Federal de 31 de Julho de 1973, segundo a qual o III Reich de 1945 não desapareceu mas continua a existir como sujeito do direito internacional, configurado na existência da República Federal da Alemanha, e que só se esgotará com a reposição das fronteiras de 1937, continua em vigor”.

A uma lógica idêntica tem obedecido o papel da Alemanha nos Balcãs visando a desmantelamento total da Jugoslávia.

Num encontro da Federação do Patronato Alemão com generais da Bundeswehr, realizado em Setembro de 91, sob o lema “questões evidentes para os alemães”, o ministro da Defesa, Rupert Scholz afirmaria que “o conflito na Jugoslávia tem um significado para toda a Europa; enquanto as consequências da segunda guerra mundial já foram superadas, trata-se agora de rever os resultados da Primeira Grande Guerra. A Jugoslávia tem sido uma construção artificial incompatível com o direito à autodeterminação dos povos... a Croácia e a Eslovénia têm de ser imediatamente reconhecidas. Logo que esse reconhecimento se processar, então já não se trata de um conflito interno da Jugoslávia e uma intervenção internacional será possível”. O papel diabólico da Alemanha no atiçar do fogo dos conflitos étnicos e religiosos nos Balcãs é tão evidente que o ex-mediador da U.E., Lorde Carrington, e o antigo Secretário-Geral da ONU, Peres de Cuellar, viram-se obrigados a avisar que Bona estava a “estender o rastilho da guerra para a Bósnia”.

Não só o exemplo da Jugoslávia, mas também a divisão do Iraque em zonas de segurança controladas pela aviação americana e inglesa, ou a fragmentação do povo palestiniano num tapete de ilhas isoladas sem direito a um verdadeiro Estado nacional, mostram que o imperialismo procura destruir os Estados dos povos que lhe resistem, ao mesmo tempo que prossegue a aglutinação em estruturas supranacionais, por si controladas, dos Estados e nações que já se encontram sob a sua alçada, como é o caso da União Europeia.

A globalização, os embargos e as chamadas «intervenções humanitárias», mostram que um dos traços mais marcantes do imperialismo na actualidade é a desigualdade de poder e de direitos entre as nações. O Professor D. Locurdo da universidade italiana de Urbino explica que “qualquer pessoa com um mínimo de sentido lógico compreenderá que as grandes potências ao declararem a soberania dos restantes Estados ultrapassada, obtêm para si mesmas um monstruoso alargamento da própria soberania, pois ficam em condições de ditar as regras não só na sua casa mas também em casa dos outros... Os ideólogos das grandes potências que proclamam o fim das classes e da luta de classes no plano interno, apregoam igualmente no plano internacional a superação da nacionalidade e dos Estados nacionais. As classes exploradas e os povos oprimidos são assim chamados a identificarem-se com a ordem dominante vigente e a enterrarem para sempre a esperança da sua emancipação”.

«O Militante» - N.º 252 - Maio/Junho 2001