Sobre o Forum
de Porto Alegre

 

De 25 a 31 de Janeiro realizou-se na cidade brasileira de Porto Alegre, o Forum Social Mundial (FSM) acontecimento que, surgindo como contraponto e em simultâneo com o Forum Económico Mundial de Davos, teve uma significativa projecção internacional.

Não é fácil situar com inteiro rigor as origens desta iniciativa. São muito frequentes as referências às movimentações de 1998 em França contra o AMI (Acordo Multilateral de Investimentos), às acções de Seattle em Dezembro de 1999 contra a OMC - Organização Mundial de Comércio - e outras manifestações realizadas aquando de reuniões de organizações internacionais. O papel de certas ONGs e a mobilização via Internet de intelectuais e outros sectores sociais, que é real, é também muito sublinhada. Por vezes são também referidas as acções organizadas por ocasião de cimeiras da União Europeia, nomeadamente as grandes manifestações de Lisboa e Porto, de Março e Junho de 2000, respectivamente, embora estas últimas promovidas pelas organizações representativas de trabalhadores. Aparentemente a iniciativa assenta basicamente num acordo entre ONGs como as acima referidas e as Autoridades de Porto Alegre, sendo o Comité Organizador Brasileiro composto por organizações de distinta natureza. (*)

Certo é que o FSM se inscreveu objectivamente no amplo e diversificado movimento de resistência, contestação e luta contra o neoliberalismo e muitas das suas mais concretas e nefastas consequências, e a reconhecida necessidade de conjugar esforços e empreender acções comuns no plano internacional.

O facto desta iniciativa se ter realizado no Brasil concorreu fortemente para o seu êxito e repercussão. O Brasil é um país onde são particularmente visíveis e gritantes as contradições geradas pelo capitalismo e também onde, com as suas características próprias, se desenvolvem importantes lutas populares e movimentos sociais (de que o MST é exemplo bem conhecido), onde o sindicalismo de classe tem tradições e as forças de esquerda desfrutam de grande audiência popular e apreciável peso nas instituições. O facto de o Estado do Rio Grande do Sul e o município de Porto Alegre serem dirigidos por uma coligação de partidos de esquerda (Partido dos Trabalhadores, Partido Comunista do Brasil, Partido Socialista e outros...) permitiu criar condições políticas, organizativas e logísticas particularmente favoráveis às diversificadas iniciativas políticas e culturais que integraram o FSM. A começar pelos numerosos debates realizados nas instalações da Universidade Católica, a PUC, e outros locais públicos.

Digno de destaque foi o ambiente popular que rodeou a realização do FSM, a começar pela combativa e alegre manifestação de muitos milhares de pessoas com que no dia 25 se inauguraram os trabalhos.

Naturalmente que a grande maioria das organizações participantes eram brasileiras. Da América Latina havia também um grande número de organizações, instituições e personalidades sendo a representação dos outros continentes muito mais reduzida e certamente muito insuficientemente representativa das organizações políticas e sociais - partidos, sindicatos, movimentos sociais, forças declaradamente anti-imperialistas - enraizadas no tecido social e na resistência dos respectivos países. Muitas organizações eram de facto representativas, mas outras pouco mais representariam que as próprias siglas. Embora os partidos políticos como tal não tenham sido convidados, o FSM contou com a presença e a intervenção de membros de vários partidos comunistas e progressistas, como foi o caso do PCP, que inseridos nas organizações sociais, ONGs, ou convidados como personalidades ou detentores de cargos públicos participaram activamente nos trabalhos do Forum e na intensa luta de ideias que o percorreu. A voz dos comunistas - brasileiros, cubanos, portugueses, colombianos, chilenos e outros - foi uma contribuição muito positiva para os debates realizados. Tendências elitistas e especulativas, demasiado distantes (quando não contrapostas) dos processos reais da resistência e luta popular, tiveram de recuar perante o testemunho convincente de numerosos activistas e revolucionários, possibilitando que problemas tão relevantes como o bloqueio a Cuba, as ameaças do imperialismo norte-americano à Colômbia, a questão da reforma agrária protagonizada nomeadamente pelo MST... tivessem forte repercussão. De assinalar entretanto a quase total ausência de discussão em torno das candentes questões da paz e desarmamento e do imperialismo.

No FSM terão participado cerca de 15.000 pessoas e cerca de 600 organizações do mais variado tipo, sindicalistas, instituições universitárias, ONGs diversas, grupos religiosos, deputados, autarcas, activistas de associações e movimentos de distinta natureza e orientação. Algumas conhecidas personalidades políticas e do mundo da cultura com opções ideológicas muito distintas, foram convidadas para os Debates Centrais, muito previamente orientados aliás, ou para alguns dos 400 debates temáticos promovidos e dirigidos por quem o desejasse.

Tratou-se pois de um “Forum” envolvendo forças e organizações com posições muito diversas, contraditórias até em muitas questões: umas circunscrevendo o horizonte da sua acção a objectivos muito parcelares e limitados, outras agindo com uma perspectiva global revolucionária; umas preconizando apenas medidas anti-neoliberais e pugnando por simples reformas e “melhorias” no quadro do sistema, outras colocando abertamente o socialismo como alternativa ao estado de coisas existente; umas preconizando o espontaneismo e a informalidade, outras insistindo no valor insubstituível do trabalho organizado; umas erigindo as chamadas acções “globais” no alfa e no ómega do combate à globalização capitalista, outras reiterando a importância decisivamente do desenvolvimento da luta de massas lá onde se sofrem os efeitos da exploração; umas sublinhando o papel central da classe operária e do trabalho assalariado, outras dando como caduca e ultrapassada a luta de classes, o sindicalismo de classe, o partido revolucionário.

O FSM teve uma significativa repercussão internacional. Os grandes “media”, incluindo na Europa, não puderam ocultar o acontecimento e o seu essencial conteúdo antineoliberal e, em particular “anti-Davos”. Simultaneamente predominou do FSM uma imagem deformada e interesseira do ponto de vista político-ideológico. Os grandes meios de comunicação valorizaram sobretudo aquilo que, de facto, foi mero episódio ou simples folclore, dando uma visão redutora dos debates realizados, ignorando a massa de activistas e suas causas e focalizando a atenção em figuras isoladas que, como José Bové, foram promovidos a “vedetas da luta anti-globalização”. E, o que é mais sério, procuraram, através de uma torrente de artigos de opinião e entrevistas bem direccionadas, fazer passar a modernaça mensagem do “pós-revolução” e do “pós-comunismo”. Particularmente característico nesta torrente de preconceitos e mal disfarçada apologia do capitalismo, é a contraposição sistemática da classe ao indivíduo, é a desvalorização dos partidos (de esquerda e revolucionários) e do sindicalismo (de classe) perante uma mitificada “sociedade civil”, é a consideração da luta revolucionária e do objectivo de conquista do poder, como algo inútil ou perverso, supostamente evidenciado no caso zapatista, absurdamente erigido em exemplo de valor universal. Mesmo o amplo espaço dado ao “diálogo” entre “Davos” (protagonizado por esse conspirador internacional que é Soros) e “Porto Alegre” lança uma mensagem confusa e contraditória.

A propósito desta importante iniciativa, é ainda de sublinhar que os tempos de “globalização” imperialista que vivemos, com o crescente papel das grandes potências e das instâncias de articulação internacional do imperialismo, exigem de facto dos comunistas e outras forças de esquerda e revolucionárias, persistência e criatividade para encontrar os caminhos de acção comum ou convergente de todas as classes e camadas antimonopolistas e a elaboração de plataformas de acção que facilitem a convergência. Simultaneamente é indispensável a estreita articulação com a dinâmica concreta das lutas populares e que não se perca de vista que o Estado soberano continua a constituir um marco incontornável no processo de transformação social. É também indispensável que a procura da mais ampla convergência de forças na luta contra as mais gravosas e insuportáveis consequências da “globalização” imperialista não conduza, nem à diluição dos comunistas e outras forças consequentemente anticapitalistas, nem ao abandono de objectivos revolucionários. Como foi sublinhado no XVI Congresso do PCP, o socialismo, como alternativa necessária ao capitalismo é mais actual e “moderno” do que nunca.

De um leque tão diversificado de organizações e de um tão largo contraste de opiniões não era de esperar que pudessem sair grandes conclusões e plataformas claras para o prosseguimento da luta. Nem se pensa que esse fosse o local próprio para que tal pudesse acontecer. A simples realização do FSM, nas concretas condições em que o foi, é em si mesmo um valioso acontecimento, que objectivamente constituiu uma importante manifestação antineoliberal e, em muitos aspectos, anticapitalista. A decisão de realizar um novo Forum em Porto Alegre em 2002 é positiva. Não será empreendimento simples, embora a experiência já adquirida possa ajudar. É de esperar que forças e personalidades que procuraram consagrar teses especulativas de sentido reformista/libertário ou de mera “humanização do capitalismo”, se movimentem para tentar influenciar o evento. Não terão porém a tarefa facilitada. O próprio agravamento das contradições do capitalismo e a exigência cada vez mais visível de profundas transformações revolucionárias, reduzem o campo de manobra de teses reformistas mais ou menos social-democratizantes, ainda que disfarçadas de uma fraseologia pseudo-radical.

Pelo seu lado, o PCP procurará participar com o mesmo espírito construtivo, com que vários militantes seus participaram já este ano em Porto Alegre. Para trocar ideias e experiências, para aprender e também divulgar o muito que a nossa experiência revolucionária encerra. E contribuir para que as resistências e lutas que estão no terreno concreto da batalha de classes por todo o mundo, na sua quase infinita diversidade, confluam no mesmo objectivo: deter e inverter o curso desastroso do actual processo de globalização imperialista, impôr novas conquistas de progresso e transformação social e revolucionária.

 

(*) O Comité Organizativo Brasileiro incluía estruturas tão diversas como a ABONG (Associação Brasileira de ONGs), a ATTAC (Acção pelas Tributações das Transacções Financeiras em Apoio aos Cidadãos), a CBJP (Comissão Brasileira Justiça e Paz), a CIVES (Associação Brasileira de Empresários pela Cidadania), a CUT (Central Única dos Trabalhadores), o IBASE (Instituto Brasileiro de Análises Sócio Económicas), o CGC (Centro de Justiça Global) e o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra).

«O Militante» - N.º 252 - Maio/Junho 2001