Ampliar a luta
emancipadora das mulheres

Integradas na Marcha Mundial das Mulheres 2000, iniciada a 8 de Março deste ano, as mulheres portuguesas realizaram em Lisboa, no dia 7 de Outubro, a sua própria Marcha Nacional, que mobilizou 10 mil participantes.
Depois, a 14 de Outubro, tomaram parte, em Bruxelas, na Marcha Europeia, que movimentou mais de 30 mil mulheres.
Finalmente estiveram presentes na Marcha Mundial, em Nova Iorque, no dia 17 de Outubro, que reuniu 10 mil mulheres.
A mobilização registada e as suas reivindicações colocam em evidência a contestação às políticas neoliberais e às suas consequências na situação das mulheres no mundo.

Simultaneamente decorre o debate, nas organizações do Partido, das Teses - Projecto de Resolução Política aprovado pelo Comité Central, a levar ao seu XVI Congresso, que terá lugar em Dezembro.
Alguns dos problemas e reivindicações das mulheres, a sua luta organizada e a acção do Partido, acção especialmente dirigida aos seus direitos específicos, estão reflectidos neste documento em discussão.
Neste número de O Militante destacamos, pela sua actualidade, aspectos relacionados com a situação da mulher no mundo e outros elementos de reflexão sobre esta realidade, introduzidos pelos camaradas Manuela Pires (MP) e Aurélio Santos (AS).
Razões de espaço impedem o desenvolvimento de outros aspectos relacionados com a realidade da vida da mulher no nosso País. Entretanto, a camarada Fernanda Mateus, membro da Comissão Política do Comité Central, avança alguns elementos para o debate.

No 1º capítulo das teses é referido que não há praticamente ninguém que não se distancie dos aspectos negativos da globalização e que não se indigne perante as discriminações das mulheres. Afirma-se que a coincidência no diagnóstico da situação não corresponde a idêntica coincidência de posições nem quanto às causas reais, que em geral são subestimadas, nem quanto às soluções que, em geral, não põem em causa o sistema, são meramente parciais e frequentemente falsas alternativas.
Que reflexão te merece esta ideia no que se refere aos direitos e à luta das mulheres no mundo?

Manuela PiresManuela Pires - É realmente fascinante que os próprios protagonistas da chamada globalização (as grandes potências imperialistas, as grandes empresas multinacionais e o capital financeiro, instituições supranacionais como o Banco Mundial e o FMI) se apresentem como profundamente preocupados com a desigualdade, a pobreza, a exclusão e a injustiça de que são geradores e responsáveis. De momento uma das “preocupações” são os direitos das mulheres, em conjunto com o “desenvolvimento sustentado”, o “aliviar da pobreza” e as questões ambientais.
É óbvio que se tratam de grandes e poderosas operações de marketing para iludir os povos e as pessoas sobre as causas reais da situação e dar ao capitalismo um “rosto humano”.Trata-se de “fabricar o consenso” e de recuperar e incorporar no sistema todos os que eventualmente o possam vir a contestar.
No que se refere às mulheres, verifica-se um total distanciamento entre o discurso político oficial e a prática. Por um lado, o discurso é aparentemente mais igualitário, o poder promove e/ou financia muitos seminários, publicações e estudos sobre a temática de “igualdade de oportunidades” (esta expressão é um bom exemplo da ambiguidade do discurso do poder, que a certa altura todos “papagueamos”; se analisarmos bem, a expressão situa a problemática num plano abstracto e não concreto e omite a referência à igualdade de direitos).
Por outro lado, temos as políticas económicas e sociais concretas que geram e agravam a desigualdade a todos os níveis (entre países, entre regiões do Mundo, entre pessoas e entre homens e mulheres).
É claro que a luta das mulheres pelos seus direitos é tolerada dentro de certos limites, desde que não ponha em causa os fundamentos do sistema capitalista e patriarcal. O espelho disso na comunicação social é notório. Se o Banco Mundial difunde um relatório sobre a mulher tem direito a página inteira; uma luta de mulheres no Mundo (se referida...) é remetida para uma pequena coluna.
A verdade é que o poder nunca fez, nem nunca fará concessões, sem ser como resultado da luta das mulheres e dos povos. E sem luta não há progresso.

Que diferenças e denominadores comuns se destacam na situação das mulheres nos vários continentes?

MP - A situação das mulheres no Mundo é muito diversa. Factores económicos, políticos, culturais e religiosos determinam situações e problemas concretos diferentes.
Contudo, podemos isolar alguns aspectos comuns. Por um lado a efectiva situação de desigualdade, embora com diversos graus, entre homens e mulheres e o estatuto de inferioridade da mulher. A violência sobre a mulher, a falta de acesso aos centros de decisão, as discriminações laborais, as questões ligadas ao planeamento familiar e ao aborto, a prostituição e o tráfico de mulheres e crianças, são realidades comuns à maioria dos países.
Outro aspecto comum é a luta das mulheres e do movimento feminino que, muitas vezes nas mais duras condições de repressão, sob as mais diversas formas e com objectivos concretos diferenciados, prossegue a luta pela
igualdade e pela emancipação. De todo o Mundo nos chegam ecos dessas lutas. Relembremos as mulheres afegãs que têm criado e mantido em funcionamento escolas clandestinas para raparigas. As mulheres palestinianas contra a agressão israelita. As mães de Sábado na Turquia. As persistentes mães da praça de Maio na Argentina. Na Europa a luta das mulheres contra a precarização laboral e o encerramento dos equipamentos sociais. A campanha das associações de mulheres na Jordânia e no Paquistão contra os crimes de honra.
Neste momento crucial em que tantas ameaças pairam sobre os direitos das mulheres já alcançados, em que se registam já significativos recuos, há que destacar e reforçar a luta pela emancipação.

Que formas de violência exercida sobre as mulheres te merecem uma maior preocupação e destaque, neste final de século?

MP - Qualquer forma de violência exercida sobre as mulheres deve suscitar a nossa preocupação, indignação e revolta. Em geral, e até por efeito da ideologia dominante, tende-se a abordar a violência sobre a mulher de uma forma muito restritiva, reduzindo-a à violência doméstica, intra-familiar (sobretudo a física).
A realidade, contudo, é muito mais ampla e a violência sobre a mulher exerce-se a todos os níveis. Os exemplos são infindáveis. No trabalho, por exemplo, através das discriminações salariais, da precarização das relações laborais, das jornadas de trabalho intensas e prolongadas, da exploração escrava da mão-de-obra nos países subdesenvolvidos. Ou quando não se facilita o acesso ao planeamento familiar e/ou se criminaliza o aborto. Ou quando se difunde uma imagem degradante da mulher através da publicidade e da indústria pornográfica. Ou quando não se permite que as mulheres frequentem a escola ou exerçam o seu direito de voto.
É fundamental identificar claramente as causas económicas e sociais da violência, que é um componente estruturante do sistema capitalista e patriarcal em que vivemos. Para que não se reduza a violência a uma mera questão doméstica.
Gostaria de destacar como questão muito preocupante o problema ligado com a prostituição, a pornografia e as redes de tráfico de pessoas. Negócios altamente lucrativos que têm visto os seus lucros a aumentar de forma fabulosa. Milhões de mulheres e crianças em todo o Mundo são traficadas, nas condições mais degradantes, para escravatura e exploração sexual. Milhões de seres humanos são vítimas do tráfico e da prostituição por razões eminentemente ligadas à pobreza e à exclusão social.
O PNUD estima que cerca de 1,2 milhões de mulheres e crianças, por ano, são traficadas para prostituição. A Organização Mundial do Trabalho estima que em alguns países (por exemplo: a Malásia, as Filipinas e Taiwan) cerca de 0,25 a 1,5% da população está envolvida na “indústria do sexo”. Esta indústria multinacional, que em grande parte é legal, está intimamente ligada ao crime internacional, às redes de tráfico de droga, ao branqueamento de capitais.
É extraordinário e revoltante que alguém defenda, com falsos argumentos, a legalização destas actividades e a perpetuação desta terrível violência sobre as mulheres e as crianças. Mais claro seria dizerem que defendem o comércio do corpo das mulheres como uma actividade económica legítima. Mas já não soava tão bem, pois não?

No capítlo da situação internacional, destacam-se as consequências da globalização, designadamente a regressão de índices de desenvolvimento, o aprofundamento do fosso entre ricos e pobres no plano mundial e no interior de cada país. Podemos constatar e destacar a crescente feminização da pobreza neste contexto?

Aurélio SantosAurélio Santos - As mulheres constituem hoje 70% dos 1300 milhões de pessoas que, no mundo, vivem em condições oficialmente reconhecidas como de pobreza. E, nos últimos 20 anos, o número de mulheres vivendo em condições de pobreza absoluta aumentou quase 50%.
As consequências económicas e sociais da globalização têm uma responsabilidade directa nesta evolução. O processo da globalização procurou a destruição das estruturas de produção dos países em vias de desenvolvimento, levando à proletarização de centenas de milhões de famílias em todo o mundo. Com a proletarização das famílias, a participação das mulheres na força de trabalho assalariado subiu para 40% - mas as mulheres continuam sujeitas a remunerações mais baixas e são as primeiras a ser despedidas.
Três outros fenómenos ligados à globalização atingem também sobretudo as mulheres: a precarização no posto de trabalho; a flexibilização e o emprego a tempo parcial; e a subcontratação (a que se associa a multiplicação do trabalho doméstico
para o mercado).
Não só nos paí-ses menos desenvolvidos a pauperização agravou a condição da mulher. A pretexto da "competitividade" regista-se também dentro dos países capitalistas mais desenvolvidos economicamente. Nos Estados Unidos o número de mulheres em situação de pobreza aumentou 20% em 40 anos, subindo de 40% para 60%. E em Inglaterra o fosso separando o salário horário de homens e mulheres é de 34%.
Mas, além de serem atingidas pelos choques tecnológicos e sociais da globalização, designadamente na sua actividade de produtoras de bens e serviços, as mulheres, devido à natureza dos seus papeis tradicionais, são também mais atingidas pelas políticas neoliberais a ela ligadas: os cortes orçamentais nos serviços de saúde, na assistência materno-infantil e nos cuidados infantis e de educação, recaem sobretudo sobre as mulheres e anulam ganhos alcançados anteriormente.
Confirma-se, assim, que o agravamento da "exploração do homem pelo homem" implica uma super-exploração da mulher...

No Fórum realizado pela Organização das Mulheres Comunistas, em Janeiro de 99, destacou-se a abordagem da situação das mulheres e mudanças de mentalidades. Que reflexão se pode transportar deste tema para esta fase de preparação do XVI Congresso?

As injustiças que marcam a condição da mulher não resultam só de um processo histórico de exploração do trabalho humano. Situam-se também na consciência dos homens e mulheres e nos modelos culturais nela implementados pelas classes sociais interessadas nessa exploração. A manutenção da imagem tradicional da mulher visa afastá-la não só das suas reivindicações específicas como da participação nas lutas políticas e sociais pela liquidação da "exploração do homem pelo homem"...
O consenso mais amplo que se regista actualmente quanto à evolução das mentalidades e constumes quanto à condição das mulheres deve-se fundamentalmente à amplitude alcançada pelas reclamações e lutas das mulheres e de um amplo leque de forças progressistas. Mas tem-se limitado no fundamental a preconceitos e costumes ultrapassados pela evolução social, sem abalar os fundamentos económicos do sistema que sustenta a discriminação da mulher.
A mudança de mentalidades - da mulher e do homem -, a luta pela mudança de comportamentos, são indispensáveis para pôr fim às discriminações que penalizam as mulheres. Mas para as eliminar (e designadamente para pôr côbro à feminização da pobreza) é necessário ir à sua raiz, estancar a sua fonte: a contradição entre os detentores dos meios de produção da riqueza social e os que garantem essa produção e dela são espoliados.
Essa contradição visivelmente atinge mais a mulher. A participação das mulheres para lhe pôr côbro coincide com as aspirações de uma condição igualitária que a sociedade lhes tem negado.

Fernanda Mateus
Fernanda Mateus
Membro da Comissão Política

Alguns elementos para o debate

As Teses - Projecto de Resolução Política incorporam nos seus quatro capítulos referências a aspectos da situação específica das mulheres, da sua luta organizada e da acção do Partido. A análise da evolução do estatuto das mulheres no mundo actual e do cumprimento dos seus direitos não pode ser aferida, apenas, pelas formulações específicas que o texto incorpora dado o seu carácter sintético. Importa, contudo, examiná-las visando suprir insuficiências e lacunas e enriquecer os seus conteúdos.
A contextualização da situação internacional e nacional dos últimos quatro anos, apresentada no documento aprovado pelo Comité Central, dá-nos um barómetro das principais causas das discriminações e dos obstáculos à sua luta emancipadora. Será, contudo, importante que, a partir deste debate, aumente o número de camaradas - mulheres e homens - que aposte numa maior intervenção individual e colectiva de modo a permitir dar uma maior visibilidade a estes problemas e reivindicações. E que, aos vários níveis da intervenção do Partido, se aprofunde a discussão das perspectivas de reforço da organização das mulheres, nas suas diversas expressões contra as consequências das políticas neoliberais dos governos do PS e de apoio político e eleitoral às propostas do PCP.

«O Militante» - Nš 249 - Novembro/Dezembro 2000