Ampliar a luta emancipadora das mulheres |
Integradas na Marcha Mundial das Mulheres 2000, iniciada
a 8 de Março deste ano, as mulheres portuguesas realizaram em Lisboa,
no dia 7 de Outubro, a sua própria Marcha Nacional, que mobilizou
10 mil participantes. Simultaneamente decorre o debate, nas organizações
do Partido, das Teses - Projecto de Resolução Política
aprovado pelo Comité Central, a levar ao seu XVI Congresso, que
terá lugar em Dezembro. |
No 1º capítulo das teses é referido que não há
praticamente ninguém que não se distancie dos aspectos negativos
da globalização e que não se indigne perante as discriminações
das mulheres. Afirma-se que a coincidência no diagnóstico da situação
não corresponde a idêntica coincidência de posições
nem quanto às causas reais, que em geral são subestimadas, nem
quanto às soluções que, em geral, não põem
em causa o sistema, são meramente parciais e frequentemente falsas alternativas.
Que reflexão te merece esta ideia no que se refere aos direitos e à
luta das mulheres no mundo?
Manuela
Pires - É realmente fascinante que os próprios protagonistas
da chamada globalização (as grandes potências imperialistas,
as grandes empresas multinacionais e o capital financeiro, instituições
supranacionais como o Banco Mundial e o FMI) se apresentem como profundamente
preocupados com a desigualdade, a pobreza, a exclusão e a injustiça
de que são geradores e responsáveis. De momento uma das preocupações
são os direitos das mulheres, em conjunto com o desenvolvimento
sustentado, o aliviar da pobreza e as questões ambientais.
É óbvio que se tratam de grandes e poderosas operações
de marketing para iludir os povos e as pessoas sobre as causas reais
da situação e dar ao capitalismo um rosto humano.Trata-se
de fabricar o consenso e de recuperar e incorporar no sistema todos
os que eventualmente o possam vir a contestar.
No que se refere às mulheres, verifica-se um total distanciamento entre
o discurso político oficial e a prática. Por um lado, o discurso
é aparentemente mais igualitário, o poder promove e/ou financia
muitos seminários, publicações e estudos sobre a temática
de igualdade de oportunidades (esta expressão é um
bom exemplo da ambiguidade do discurso do poder, que a certa altura todos papagueamos;
se analisarmos bem, a expressão situa a problemática num plano
abstracto e não concreto e omite a referência à igualdade
de direitos).
Por outro lado, temos as políticas económicas e sociais concretas
que geram e agravam a desigualdade a todos os níveis (entre países,
entre regiões do Mundo, entre pessoas e entre homens e mulheres).
É claro que a luta das mulheres pelos seus direitos é tolerada
dentro de certos limites, desde que não ponha em causa os fundamentos
do sistema capitalista e patriarcal. O espelho disso na comunicação
social é notório. Se o Banco Mundial difunde um relatório
sobre a mulher tem direito a página inteira; uma luta de mulheres no
Mundo (se referida...) é remetida para uma pequena coluna.
A verdade é que o poder nunca fez, nem nunca fará concessões,
sem ser como resultado da luta das mulheres e dos povos. E sem luta não
há progresso.
Que diferenças e denominadores comuns se destacam na situação das mulheres nos vários continentes?
MP - A situação das mulheres no Mundo é muito diversa.
Factores económicos, políticos, culturais e religiosos determinam
situações e problemas concretos diferentes.
Contudo, podemos isolar alguns aspectos comuns. Por um lado a efectiva situação
de desigualdade, embora com diversos graus, entre homens e mulheres e o estatuto
de inferioridade da mulher. A violência sobre a mulher, a falta de acesso
aos centros de decisão, as discriminações laborais, as
questões ligadas ao planeamento familiar e ao aborto, a prostituição
e o tráfico de mulheres e crianças, são realidades comuns
à maioria dos países.
Outro aspecto comum é a luta das mulheres e do movimento feminino que,
muitas vezes nas mais duras condições de repressão, sob
as mais diversas formas e com objectivos concretos diferenciados, prossegue
a luta pela
igualdade e pela emancipação. De todo o Mundo nos chegam ecos
dessas lutas. Relembremos as mulheres afegãs que têm criado e mantido
em funcionamento escolas clandestinas para raparigas. As mulheres palestinianas
contra a agressão israelita. As mães de Sábado na Turquia.
As persistentes mães da praça de Maio na Argentina. Na Europa
a luta das mulheres contra a precarização laboral e o encerramento
dos equipamentos sociais. A campanha das associações de mulheres
na Jordânia e no Paquistão contra os crimes de honra.
Neste momento crucial em que tantas ameaças pairam sobre os direitos
das mulheres já alcançados, em que se registam já significativos
recuos, há que destacar e reforçar a luta pela emancipação.
Que formas de violência exercida sobre as mulheres te merecem uma maior preocupação e destaque, neste final de século?
MP - Qualquer forma de violência exercida sobre as mulheres deve
suscitar a nossa preocupação, indignação e revolta.
Em geral, e até por efeito da ideologia dominante, tende-se a abordar
a violência sobre a mulher de uma forma muito restritiva, reduzindo-a
à violência doméstica, intra-familiar (sobretudo a física).
A realidade, contudo, é muito mais ampla e a violência sobre a
mulher exerce-se a todos os níveis. Os exemplos são infindáveis.
No trabalho, por exemplo, através das discriminações salariais,
da precarização das relações laborais, das jornadas
de trabalho intensas e prolongadas, da exploração escrava da mão-de-obra
nos países subdesenvolvidos. Ou quando não se facilita o acesso
ao planeamento familiar e/ou se criminaliza o aborto. Ou quando se difunde uma
imagem degradante da mulher através da publicidade e da indústria
pornográfica. Ou quando não se permite que as mulheres frequentem
a escola ou exerçam o seu direito de voto.
É fundamental identificar claramente as causas económicas e sociais
da violência, que é um componente estruturante do sistema capitalista
e patriarcal em que vivemos. Para que não se reduza a violência
a uma mera questão doméstica.
Gostaria de destacar como questão muito preocupante o problema ligado
com a prostituição, a pornografia e as redes de tráfico
de pessoas. Negócios altamente lucrativos que têm visto os seus
lucros a aumentar de forma fabulosa. Milhões de mulheres e crianças
em todo o Mundo são traficadas, nas condições mais degradantes,
para escravatura e exploração sexual. Milhões de seres
humanos são vítimas do tráfico e da prostituição
por razões eminentemente ligadas à pobreza e à exclusão
social.
O PNUD estima que cerca de 1,2 milhões de mulheres e crianças,
por ano, são traficadas para prostituição. A Organização
Mundial do Trabalho estima que em alguns países (por exemplo: a Malásia,
as Filipinas e Taiwan) cerca de 0,25 a 1,5% da população está
envolvida na indústria do sexo. Esta indústria multinacional,
que em grande parte é legal, está intimamente ligada ao crime
internacional, às redes de tráfico de droga, ao branqueamento
de capitais.
É extraordinário e revoltante que alguém defenda, com falsos
argumentos, a legalização destas actividades e a perpetuação
desta terrível violência sobre as mulheres e as crianças.
Mais claro seria dizerem que defendem o comércio do corpo das mulheres
como uma actividade económica legítima. Mas já não
soava tão bem, pois não?
No capítlo da situação internacional, destacam-se as consequências da globalização, designadamente a regressão de índices de desenvolvimento, o aprofundamento do fosso entre ricos e pobres no plano mundial e no interior de cada país. Podemos constatar e destacar a crescente feminização da pobreza neste contexto?
Aurélio
Santos - As mulheres constituem hoje 70% dos 1300 milhões de pessoas
que, no mundo, vivem em condições oficialmente reconhecidas como
de pobreza. E, nos últimos 20 anos, o número de mulheres vivendo
em condições de pobreza absoluta aumentou quase 50%.
As consequências económicas e sociais da globalização
têm uma responsabilidade directa nesta evolução. O processo
da globalização procurou a destruição das estruturas
de produção dos países em vias de desenvolvimento, levando
à proletarização de centenas de milhões de famílias
em todo o mundo. Com a proletarização das famílias, a participação
das mulheres na força de trabalho assalariado subiu para 40% - mas as
mulheres continuam sujeitas a remunerações mais baixas e são
as primeiras a ser despedidas.
Três outros fenómenos ligados à globalização
atingem também sobretudo as mulheres: a precarização no
posto de trabalho; a flexibilização e o emprego a tempo parcial;
e a subcontratação (a que se associa a multiplicação
do trabalho doméstico
para o mercado).
Não só nos paí-ses menos desenvolvidos a pauperização
agravou a condição da mulher. A pretexto da "competitividade"
regista-se também dentro dos países capitalistas mais desenvolvidos
economicamente. Nos Estados Unidos o número de mulheres em situação
de pobreza aumentou 20% em 40 anos, subindo de 40% para 60%. E em Inglaterra
o fosso separando o salário horário de homens e mulheres é
de 34%.
Mas, além de serem atingidas pelos choques tecnológicos e sociais
da globalização, designadamente na sua actividade de produtoras
de bens e serviços, as mulheres, devido à natureza dos seus papeis
tradicionais, são também mais atingidas pelas políticas
neoliberais a ela ligadas: os cortes orçamentais nos serviços
de saúde, na assistência materno-infantil e nos cuidados infantis
e de educação, recaem sobretudo sobre as mulheres e anulam ganhos
alcançados anteriormente.
Confirma-se, assim, que o agravamento da "exploração do homem
pelo homem" implica uma super-exploração da mulher...
No Fórum realizado pela Organização das Mulheres Comunistas, em Janeiro de 99, destacou-se a abordagem da situação das mulheres e mudanças de mentalidades. Que reflexão se pode transportar deste tema para esta fase de preparação do XVI Congresso?
As injustiças que marcam a condição da mulher não
resultam só de um processo histórico de exploração
do trabalho humano. Situam-se também na consciência dos homens
e mulheres e nos modelos culturais nela implementados pelas classes sociais
interessadas nessa exploração. A manutenção da imagem
tradicional da mulher visa afastá-la não só das suas reivindicações
específicas como da participação nas lutas políticas
e sociais pela liquidação da "exploração do
homem pelo homem"...
O consenso mais amplo que se regista actualmente quanto à evolução
das mentalidades e constumes quanto à condição das mulheres
deve-se fundamentalmente à amplitude alcançada pelas reclamações
e lutas das mulheres e de um amplo leque de forças progressistas. Mas
tem-se limitado no fundamental a preconceitos e costumes ultrapassados pela
evolução social, sem abalar os fundamentos económicos do
sistema que sustenta a discriminação da mulher.
A mudança de mentalidades - da mulher e do homem -, a luta pela mudança
de comportamentos, são indispensáveis para pôr fim às
discriminações que penalizam as mulheres. Mas para as eliminar
(e designadamente para pôr côbro à feminização
da pobreza) é necessário ir à sua raiz, estancar a sua
fonte: a contradição entre os detentores dos meios de produção
da riqueza social e os que garantem essa produção e dela são
espoliados.
Essa contradição visivelmente atinge mais a mulher. A participação
das mulheres para lhe pôr côbro coincide com as aspirações
de uma condição igualitária que a sociedade lhes tem negado.
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Alguns elementos para o debate As Teses - Projecto de Resolução Política
incorporam nos seus quatro capítulos referências a aspectos
da situação específica das mulheres, da sua luta
organizada e da acção do Partido. A análise da evolução
do estatuto das mulheres no mundo actual e do cumprimento dos seus direitos
não pode ser aferida, apenas, pelas formulações específicas
que o texto incorpora dado o seu carácter sintético. Importa,
contudo, examiná-las visando suprir insuficiências e lacunas
e enriquecer os seus conteúdos. |
«O Militante» - Nš 249 - Novembro/Dezembro 2000