Um capitão de Abril à mesa da memória



Nuno Pinto Soares tem hoje 55 anos de idade e mantém a postura que fez dele uma das figuras mais prestigiadas, emblemáticas e ao mesmo tempo discretas do Movimento das Forças Armadas. Em 1973, quando aderiu ao Movimento, era capitão de Engenharia já com duas comissões na guerra colonial. Integrou, ainda na fase conspirativa, a Comissão Coordenadora do Movimento dos Capitães. Foi o elemento de ligação aos outros ramos das Forças Armadas na preparação do 25 de Abril.
Fez parte da Comissão Coordenadora do Programa do MFA, foi membro do Conselho de Estado e do Conselho da Revolução, que abandonaria quando se verificou a fractura do «Documento dos Nove» no seio do MFA. Nomeado comandante da Academia Militar, a pedido dos alunos, o que implicou a sua graduação, a contra-gosto no posto de general. Procedeu à maior reestruturação da história da Academia, finda a qual, em Dezembro de 1975, pediu o seu regresso às fileiras, na Escola Prática de Engenharia. Aposentou-se por questões de dignidade militar e pessoal em 1992, quando era o coronel mais jovem e melhor classificado da sua Arma.
A entrevista com este genuino capitão de Abril permite-nos o reencontro emotivo com experiências, valores, sonhos e esperanças que nutrem o terreno onde a Revolução lançou as suas raizes mais perenes.

Entrevista ao coronel Nuno Pinto Soares conduzida por Armando Pereira da Silva.

Como aderiu ao Movimento dos Capitães?

A dada altura, o Vasco Lourenço abordou-me nesse sentido. Pus-lhe, cruamente, a questão deste modo:trata-se de uma movimentação por causa de uns decretos ou é coisa séria? Ele riu-se e respondeu: agora é a sério, podes crer. Conhecia bem o Vasco desde os tempos da Academia e não tive dúvidas. Aderi de corpo e alma.

É claro que, ao pôr essa reserva, estava a exigir do Movimento um compromisso mais político do que corporativo. Isto é: já tinha por adquirida a necessidade de derrubar a ditadura.

Exacto. Há muito que me convencera de que a solução dos grandes problemas nacionais e das próprias Forças Armadas não seria possível sem uma transformação política radical.

Sabemos que a relação das Forças Armadas com a política e, especialmente, com a realidade social do País, era fortemente contrariada pelo regime fascista. Daí não ser fácil, e acontecer raramente, uma tomada de consciência democrática no seio do corpo militar. No seu caso, como foi?

Eu abordaria essa questão em duas fases que, digamos assim, se complementam. A primeira abrange o meu tempo de formação escolar, começando pela Escola do Exército. Apesar do regime disciplinar muito rigoroso, houve uma coisa que desde cedo me sensibilizou nessa Escola: o ambiente de igualdade que prevalecia entre os educandos. Nós estamos a ter a nossa conversa à volta desta mesa redonda, uma forma que desde muito cedo associei ao ideal das relações entre as pessoas. Talvez por isso me tenha interessado, desde muito jovem, pelas questões sociais, pela sociologia, pela política. A biblioteca que fui construindo, enquanto estudante, era essencialmente composta por obras dessa área. Como sabe sou oficial de Engenharia, o que implicou que fizesse, quando estava na Academia, algumas disciplinas no Instituto Superior Técnico. Foi um contacto muito fecundo com outra realidade, com o movimento estudantil, a descoberta, por exemplo, da cadeira de so-ciologia dada pelo Prof. Sedas Nunes. Cheguei a ser preso quando participava, fardado, numa manifestação de estudantes.

De qualquer modo, a Academia Militar era, ainda no seu tempo, uma Escola não aberta a todas as classes. Esse tipo de formação no terreno não era feita, de algum modo, ao arrepio do ambiente familiar, por exemplo?

Sou de uma família típica da burguesia, de tradições militares. O meu pai era militar. Mas nunca fui contrariado no meu desejo de participação cívica, na minha ambição, só mais tarde satisfeita, de conhecer o meu País. O meu verdadeiro País.

E quando é que isso aconteceu?

Aconteceu, em parte, na segunda das duas fases de que falei: o teatro da guerra. Concluído o curso na Academia Militar, seguiu-se, a breve trecho, a primeira comissão de serviço em África. Fiz duas. Finda a segunda, estava profundamente desgostoso com a situação. Decidi interromper a minha carreira militar. Tinha escrito o respectivo requerimento quando o Vasco Lourenço falou comigo sobre o Movimento dos Capitães. Rasguei-o imediatamente.

Ia abordar, julgo, a sua experiência no teatro da guerra...

Exactamente. Mas deixe-me lembrar uma coisa: nasci em África, em Moçambique, e de lá vim para Lisboa. Con-cluída a Escola, voltei pouco depois a África, desta vez para fazer a guerra. Continuava a desconhecer a realidade profunda do País. E então o País apresentou-se à minha frente no rosto, nos olhos, nos sonhos, nos problemas, nos dramas e nas angústias dos homens que comandei. Mil e duzentos ao todo, nas duas comissões. O meu primeiro grande mergulho no nosso País real foi feito através deles. As outras armas, a Infantaria, a Artilharia, os Comandos, faziam uma operação de combate e, ao fim de uns dias, recolhiam a um quartel, por modesto que fosse. A Engenharia não: acampávamos por períodos longos, vivíamos juntos, trocávamos opiniões, éramos cúmplices, expúnhamo-nos mutuamente na nossa humanidade plena e solidária. Chegávamos a comungar a leitura das cartas recebidas da família, o relato das pequenas-grandes coisas que faziam o dia-a-dia das cidades, vilas e aldeias de onde todos tínhamos sido afastados.

Uma espécie de descoberta do outro?

Sobretudo, uma descoberta do outro lado, o lado da realidade que para nós, militares profissionais, era como que escondido. Foi na guerra que tive a primeira hipótese de ver o povo em fato de trabalho, depois de conhecer o regime dos privilégios. O conhecimento de ambos os lados marcou a minha opção.

Que teve um nome concreto: 25 de Abril.

Teve e tem. Estou muito feliz por ter participado no 25 de Abril. Sinto que fui nele esses 1 200 homens que me ensinaram a ver Portugal.

Militares na política

O (então) capitão Pinto Soares fez parte da Comissão Coordenadora do Movimento dos Capitães e, depois da vitória da Revolução, integrou a Comissão Coordenadora do Programa do MFA. Ou seja: o orgão mais político, ou especificamente político da acção militar que teve de coexistir com as ambições de afirmação da política civil e gerir as contradições inevitáveis. Apenas dois meses depois, houve a primeira grande crise, a do chamado golpe Palma Carlos. Tratando-se de homens com pouca ou nenhuma experiência política, quase todos muito jovens, como foi isso?

Tínhamos um Programa claro, que embora revisto em cima dos acontecimentos em função das relações de força imediatamente tecidas, apontava objectivos inegociáveis: Democratizar, Descolonizar, Desenvolver. A missão essencial da Comissão Coordenadora era velar pelo seu cumprimento. A força do Movimento esteve sempre em cima da mesa da Comissão Coordenadora do Programa. Ora o Programa tinha de ser cumprido por pessoas, a cuja escolha a Comissão Coordenadora não era, logicamente, alheia. Mas nunca impôs nomes. Discutiu, propôs. Mas nunca saiu do seu papel de vigilância ao respeito pelo Programa. A sua intervenção na crise que ditou o fim do I Governo Provisório, a que erradamente se asssociou prioritariamente o nome do Primeiro Ministro, é exemplar a esse respeito: de facto, o general Spínola e o dr. Sá Carneiro elaboraram um plano que feria gravemente o Programa do MFA pondo em causa dois dos seus princípios basilares: a realização das eleições para a Assembleia Constituinte e, consequentemente, para o Presidente da República no prazo marcado, e o processo de descolonização. Este último era, de facto, o grande alvo da manobra. Aí, a Comissão Coordenadora respondeu: nem pensar, há um Programa para cumprir. Spínola e Sá Carneiro é que conduziram o jogo. Palma Carlos limitou-se a aceitá-lo. Perdeu e retirou-se.

Seguiu-se a nomeação do então coronel Vasco Gonçalves, em condições já aqui explicadas, para o cargo de Primeiro Ministro. E novas tentativas golpistas, a 28 de Setembro de 1974 e 11 de Março de 1975. Ainda e sempre contra o Programa do MFA?

É óbvio. Mas a propósito de Vasco Gonçalves, gostaria de dizer o seguinte: além da competência e sentido patriótico da sua acção, não esqueçamos a sua lealdade, a sua honradez, a sua preocupação de unidade política. Raramente os seus governos tomaram decisões antes de as medidas em causa serem debatidas na Comissão Coordenadora, no Conselho de Estado ou, mais tarde, no Conselho da Revolução. A missão que lhe foi cometida era o cumprimento do Programa do MFA. Foi isso que fez. O resto é baixa política.

Seja como for, após o 11 de Março verificou-se um aumento da intervenção política dos militares.

Sim, as condições a isso obrigaram. Foi criado o Conselho da Revolução, um orgão formado por militares, mas com maior capacidade de intervenção política. Começaram também as manobras fracturantes dentro do MFA...

Os caminhos de Novembro...

Já lá vamos. Entretanto, Pinto Soares, membro do CR, foi levado ao comando da Academia Militar.

É verdade. Na altura do 11 de Março, o coronel Soares Carneiro era o comandante do corpo de alunos da Academia. Ele, alguns outros oficiais e um certo número de alunos foram detidos por envolvimento no golpe. O comandante da Academia aposentou-se e esta entrou em colapso. Um núcleo de alunos foi dizer ao Presidente da República, general Costa Gomes, que a importância da Academia Militar e a sua situação justificava que para o seu comando fosse nomeado um membro do Conselho da Revolução. Costa Gomes perguntou ao Conselho quem devia nomear: escolheram-me a mim. Os alunos e corpo docente confirmaram democraticamente a nomeação. Foi uma experiência estimulante. O problema essen-cial era a reestruturação da Academia, dos seus cursos e funcionamento. Foi eleita a primeira e única associação de estudantes da sua história. As mulheres começaram a poder candidatar-se à Academia, coisa impensável pouco tempo antes. Foram lançadas as bases de uma coordenação dos cursos com o Ministério da Educação, criado um primeiro patamar de ensino comum aos três ramos das Forças Armadas. Entrei em Maio, a reestruturação estava concluída em Dezembro. Entretanto dera-se o 25 de Novembro, a nova chefia militar apressou-se a anular o concurso de admissão de candidatos. Pedi o meu regresso às fileiras, fui colocado na Escola Prática de Engenharia.

Voltemos àquilo a que chamou as manobras fracturantes no seio do MFA. Referia-se concretamente a quê?

Do ponto de vista político-militar, o processo passou pelo chamado Documento dos Nove e acabou no 25 de Novembro.

Foi esse processo de divisão do MFA que o levou a demitir-se do Conselho da Revolução?

Foi o processo mas, sobretudo, certos valores que, a meu ver, ele ofendia.

Quando teve conhecimento do Documento dos Nove?

Se se refere ao seu conteúdo, foi já tarde. Estava há quase um mês numa campanha de dinamização cultural no distrito da Guarda. O Vasco Lourenço procurou-me, disse-me o que se passava, deu-me o documento a ler e convidou-me a assiná-lo. Li-o e disse-lhe rotundamente que não.

Porquê?

O documento era, no fundo, uma deslealdade inqualificável para com um homem honrado e leal como o general Vasco Gonçalves. A reflexão que o seu conteúdo corporizava fora muitas vezes sugerida por Vasco Gonçalves, mas agora faziam-na à sua revelia e nas suas costas. Era uma traição profunda a um homem que nunca os traiu.

A publicação do Documento dos Nove e do Documento do Copcon, ao mesmo tempo que estruturas e forças civis se desdobravam em actos de natureza contra-revolucionária ao longo do Verão e Outono de 1975 cavaram as divisões no MFA e na sociedade civil, a ponto de se julgar iminente uma confrontação armada. Foi num tal contexto que o Presidente da República propôs ao então general Pinto Soares uma missão espinhosa...

Pois foi. O general Costa Gomes contactou-me e disse-me mais ou menos isto: você está fora desta confusão, julgo ser a pessoa indicada para os juntar todos à mesa, aí na Academia, a ver se se chega a um compromisso. Aceitei a incumbência. Informei a Escola, alunos e corpo docente, do que ali se ia passar. Nos dias 21 e 22 de Novembro reuniram-se na Academia Militar as três facções (Grupo dos Nove, os chamados «gonçalvistas» e o Copcon). A coisa até correu bem, chegou-se a um entendimento. Foi marcada uma reunião de compromisso na chefia do Estado Maior do Exército. Mas o Copcon faltou. No dia 23 tivemos um encontro com Costa Gomes. Disse-lhe: desisto, o Otelo é o responsável, ele que explique porquê. E Otelo explicou: não prescindia dos paraquedistas nem cedia o comando da Região Militar de Lisboa a Vasco Lourenço.
Entretanto, o general Morais e Silva, chefe do EM da Força Aérea, extinguira o Corpo de Paraquedistas. Otelo Saraiva de Carvalho, comandante do Copcon, opôs-se. Seguiu-se o 25 de Novembro.

Acha que com isso fica explicado o golpe?

Não, de modo algum. De certeza que há muito por saber acerca do 25 de Novembro.

Por exemplo, quem ordenou a saída dos paraquedistas?

Aí está um considerável ponto de interrogação. Como sabe, as instalações que abrigavam o comando do Copcon eram exíguas e sem condições. Aquilo parecia a casa da barafunda, onde se acotovelavam civis e militares que tinham de gritar para se poderem ouvir. Os interesses e opções dessas pessoas eram os mais diversos. Admito que, naquelas condições, qualquer pessoa podia pegar num telefone e dar a ordem em nome do Otelo.

Com o triunfo da acção armada de 25 de Novembro, houve para aí muita gente que viu em Ramalho Eanes o executor da sua vingança sobre a Revolução. Teve esse receio?

O que penso é que Eanes desiludiu, certamente, os que quiseram ou julgaram poder fazer dele um Pinochet à portuguesa. Era um homem de formação conservadora, talvez essencialmente castrense, mas democrata. Naquele complicadíssimo jogo de forças, ele acabou por ser o ponto de equilíbrio.

O certo é que Pinto Soares entregou os seus galões de general e regressou aos quartéis, isto é, retomou a sua carreira militar normal. Desiludido?

Com os últimos desenvolvimentos do processo político, com muitos acontecimentos na vida por-tuguesa de então e, sobretudo, com certas atitudes de homens e grupos, talvez. Com o 25 de Abril e a minha participação, de modo nenhum. Embora, como já escrevi, nunca tenha mitificado a acção dos capitães de Abril: apenas tivemos a coragem de, enquanto militares, nos termos consciencializado para uma acção que nos dignificaria como intérpretes dos sentimento do nosso povo.

Vinte e cinco anos depois, como aprecia os efeitos dessa acção?

Francamente, acho que a nossa geração cumpriu o seu papel histórico, fez coisas bem feitas, outras menos bem, como tudo na vida. Julgo que o importante, agora, é o presente e o futuro. A evolução do processo, por erros nossos e pressões alheias, conduziu-nos a um período difícil em que os contra-valores da competição e do dinheiro prevaleceram sobre os valores mais importantes da solidariedade e da cultura. As vítimas maiores foram e continuam a ser os mais jovens, os nossos filhos, as gerações nascidas depois do 25 de Abril. Mas não creio que se tenham perdido os grandes objectivos da Revolução. Sinceramente, acho que o 25 de Abril continua vivo, o corpo social despertado há 25 anos mantém-se afinal vivo e evolui em condições de liberdade a caminho de uma democracia mais profunda. Absorveu o que a nossa utopia tinha de melhor.

Resta-nos agradecer a sua disponibilidade, este reencontro, estas memórias.

Também eu agradeço, sobretudo o prazer muito grande de estar convosco, nesta casa.


«O Militante» Nº 241 - Julho / Agosto - 1999