O Manifesto do Partido Comunista 150 anos depois
O valor actual do Manifesto
O Manifesto do Partido Comunista
foi elaborado por Marx e Engels como programa da Liga dos
Comunistas por decisão do seu II Congresso, realizado em Londres
entre 29 de Novembro e 8 de Dezembro de 1847. Representava o
triunfo dos defensores da nova linha proletária no quadro das
discussões havidas no interior do movimento.
Ainda em Londres e depois em Bruxelas, Marx e Engels trabalharam
juntos na redacção do texto. Tendo Engels partido para Paris em
finais de Dezembro, a versão definitiva foi elaborada por Marx
fundamentalmente durante o mês de Janeiro de 1848 e remetida
finalmente para Londres, onde viria a ser publicada, pela
primeira vez, em fins de Fevereiro do mesmo ano. Há 150 anos,
portanto.
Associando-se às comemorações da publicação do
Manifesto que este a,no decorrem, O
Militante transcreve neste número um texto
do camarada Álvaro Cunhal,
divulgado no jornal Público
(1 de Fevereiro de 1998) sobre o conteúdo e a importância
histórica desta obra de Marx e Engels.
O valor actual do Manifesto
Álvaro Cunhal
Há tanto a dizer do Manifesto Comunista que, no
espaço disponível, apenas alguns limitados aspectos
seleccionados podem ser referidos num breve apontamento.
1. Comemorar 150 anos do Manifesto Comunista de
Marx e Engels é falar de um documento que - pelas suas
análises, o seu conteúdo ideológico, o objectivo e a
possibilidade que aponta de construir uma sociedade nova -
lançou e promoveu uma luta revolucionária de alcance universal:
a luta dos comunistas, que marcou e determinou as principais
realizações e conquistas de transformação social desde então
até aos dias de hoje.
Como anotavam as primeiras palavras do Manifesto, andava
pela Europa o espectro do comunismo. Ao longo do século e
meio decorrido, continuou a andar, agora pelo mundo,
o mesmo espectro, a que as forças do capital chamaram o
perigo comunista. E, ao findar o século XX, ao mesmo tempo
que proclamam que o comunismo morreu, as campanhas
violentas, constantes, universais, que lançam contra ele,
mostram que não morreu mas está vivo e para viver.
2. O Manifesto Comunista é um extraordinário
libelo acusatório contra o capitalismo.
Não apenas indicando a situação da classe operária e das
massas trabalhadoras: os salários injustos, o desemprego, o
tempo e intensidade de trabalho, as discriminações e falta de
direitos da mulher, o trabalho infantil, os problemas da
habitação e da saúde, o alastramento da pobreza e da miséria.
Não apenas apontando medidas necessárias de carácter imediato.
Mas também desvendando a natureza e as leis do capitalismo e
apontando a necessidade e possibilidade histórica de superá-lo.
Esta simultaneidade da luta com objectivos a curto e a médio
prazo e a luta pelo socialismo, caracterizou desde então a luta
dos comunistas.
À luta dos comunistas, sempre estreitamente ligados à classe
operária e às massas populares e promovendo as suas
organizações unitárias, nomeadamente o movimento sindical, se
devem, mesmo no quadro do sistema capitalista, importantes
conquistas. A ela também se deve, com a revolução de Outubro
de 1917 e outras revoluções socialistas, a prova na vida da
actualidade histórica de construir uma sociedade nova, uma
sociedade socialista.
3. É um marco fundamental dessa luta, a
revolução de Outubro de 1917 e suas repercussões em todo o
mundo.
A revolução de Outubro significou que, pela primeira vez, em
milénios de história da humanidade, o ser humano se lançou
audaciosamente à construção de uma sociedade sem exploradores
nem explorados.
Significou a realização de profundas reformas nos domínios
político, económico, social e cultural, com o melhoramento
radical das condições de vida do povo e a eliminação de
muitos dos flagelos sociais.
Significou, num curto período histórico, a transformação da
velha, atrasada e tirânica Rússia dos czares, num país
altamente desenvolvido, fazendo frente com êxito ao
imperialismo.
Significou, pela sua influência e relações de solidariedade
recíproca, uma nova e poderosa dinâmica do movimento operário
internacional e suas conquistas.
Significou um papel determinante, pago com 20 milhões de vidas,
para a derrota, na 2ª Guerra Mundial, da Alemanha hitleriana e
da coligação fascista (Alemanha, Itália, Japão) que ameaçava
impor ao mundo o seu domínio de terror.
Significou, em datas diversas, o estímulo a novas revoluções
socialistas, - no leste da Europa, na China, em Cuba, no
Vietname, na Coreia do Norte, no Laos - com características
diferenciadas e contraditórias, mas inseridas durante décadas
no mesmo sentido positivo da evolução mundial.
Significou, pelo exemplo e pela solidariedade, uma contribuição
para a luta dos povos oprimidos, o desenvolvimento dos movimentos
de libertação nacional, o ruir do sistema colonial e a
conquista da independência por povos secularmente submetidos ao
colonialismo.
A revolução de Outubro, pelo que foi e pelas suas repercussões
mundiais, constitui o acontecimento histórico mais importante do
século XX.
Não é por acaso que ataques, propaganda e campanhas
anticomunistas têm tido sempre em todo o mundo dois alvos
centrais: a revolução de Outubro de 1917 e a obra e papel de
Lénine que, com o Partido Bolchevique, dirigiu a luta do
proletariado russo e a revolução vitoriosa.
Ainda recentemente, quando do 80º aniversário da revolução,
assistimos a uma furiosa, vil e orquestrada campanha, - com
seminários, livros, programas nos grandes meios de comunicação
social - apresentando a revolução de Outubro e a acção de
Lénine, como histórias de odiosos crimes.
É natural que as forças do capital o façam. Sabem tudo quanto
a Revolução de Outubro, Lénine, a URSS, e outras revoluções
socialistas e nacional-libertadoras representaram na luta
libertadora dos trabalhadores e dos povos.
Um partido comunista, para continuar a sê-lo, não pode, por
atitude ou omissão, favorecer e ainda menos secundar tão
reaccionárias campanhas. Outubro e Lénine são referências
fundamentais.
4. Se a União Soviética, tal como outros
países, sofreu uma evolução negativa, que a conduziu ao
desastre, não foi por que tenha fracassado o ideal e projecto
comunista. Foi sim porque, num complexo processo, cuja análise
está por aprofundar, acabou por se instaurar um
modelo que deixou de corresponder a esse ideal e
projecto e em alguns aspectos o perverteu.
Poder centralizado e burocratizado em vez de poder dos
trabalhadores. Estatização completa da economia. Perda de
ligação viva do governo e do partido com a classe operária e
as populações. Ouvidos fechados à crítica. Não realização
da prometida democracia mil vezes mais democrática que a
mais democrática das democracias burguesas. Intolerável
abuso de métodos repressivos. Dogmatização da ideologia do
partido e sua imposição como doutrina do Estado.
Já num processo avançado de degradação, a
perestroika prometeu correcção e viragem: com mais
democracia mais socialismo. Não cumpriu. Renegou a
revolução. Renegou tudo quanto o povo havia realizado,
alcançado e vitoriado. Renegou a luta heróica dos que deram a
vida. Renegou democracia e renegou socialismo.
O desmoronamento da URSS e a evolução para o capitalismo - com
o caos económico, a liquidação de direitos sociais, as guerras
internas, os gangs de súbitos milionários, o
proliferar de poderosas mafias, a vaga da corrupção do crime e
da prostitituição - é uma terrível catástrofe e perda para
os povos da ex-URSS. Perda terrível também para os povos do
mundo, que deixa campo mais livre ao imperialismo para se lançar
à ofensiva tentando liquidar à força todas as forças que se
lhe oponham, e impor de novo o seu domínio mundial.
Explica-se que na ex-URSS e noutros países se observe o que já
se chama saudade do passado. Não no sentido de
refazer um modelo condenado, mas para, rejeitando
tudo quanto estava mal e muito era, recuperando direitos
perdidos, valorizando realizações e experiência passadas,
encontrando soluções novas, reempreender a construção do
socialismo.
5. Nos últimos 150 anos, o capitalismo conheceu
um desenvolvimento em ritmo acelerado. Novos passos na expansão
mundial. Descobertas e conhecimentos das ciências. Tecnologias
revolucionárias. Inesperado e vertiginoso desenvolvimento das
forças produtivas nos países mais desenvolvidos.
Ganhou assim novo fôlego. Manteve porém a sua natureza
exploradora, opressora e agressiva.
Estes 150 anos de capitalismo são assinalados por duas guerras
mundiais que sacrificaram uma centena de milhão de vidas e
destruíram países inteiros. Por outras guerras, agressões e
intervenções militares. Pelo terrorismo de Estado. Pelos crimes
e genocídios de ditaduras fascistas e de regimes autocráticos.
Por rapinas devastadoras de recursos e violentas agressões
ecológicas. Pela exploração colonial e neo-colonial e guerras
coloniais.
É certo que, depois de sofrer grandes derrotas históricas que,
com os comunistas, lhe infligiram os trabalhadores e os povos, o
capitalismo conseguiu, na segunda metade do século XX, inverter
de momento a tendência da evolução mundial que vinha a
processar-se a favor do socialismo. E, ao mesmo tempo que agrava
ainda mais a exploração e opressão de classe, as
desigualdades, injustiças e flagelos sociais, proclama-se como
um sistema final, um capitalismo civilizado, no qual
desaparece a luta de classes através de soluções de consenso,
e no qual imperará o pensamento único, ou seja, a
ideologia do capitalismo, que se acoberta na proclamação do
fim das ideologias.
A verdade é porém que o capitalismo, passados 150 anos do
Manifesto Comunista, nem sequer resolveu um único dos graves
problemas da classe operária e das massas oprimidas apontados no
Manifesto. E, ao findar o século, mostra-se incapaz de resolver
os grandes problemas da humanidade, está roído por crescentes
contradições. O que tem por diante não é o fim da luta de
classes mas um novo e inevitável fluxo da luta dos trabalhadores
e dos povos e novas explosões revolucionárias na continuidade
da luta anunciada e lançada há 150 anos pelo Manifesto
Comunista.
Por muito difícil que seja o percurso, o socialismo, aprendendo
com vitórias e derrotas, continua a ser a verdadeira
alternativa.
6. As teorias de Marx e Engels, das quais o
Manifesto Comunista faz uma primeira síntese, revolucionaram o
pensamento e as sociedades no século XX.
A sua expansão mundial foi possível por explicar o que até
então não tinha explicação. Sobre a relação do ser humano
com a natureza que o envolve. Sobre as contradições e história
das sociedades. Sobre a economia capitalista e suas leis. Sobre a
actualidade da construção revolucionária de uma nova
sociedade. Porque científicas e dialécticas, teorias abertas à
reflexão e contrárias à própria cristalização.
As conquistas das ciências, as transformações provocadas pelas
novas tecnologias, a internacionalização a nível mundial dos
processos produtivos, as alterações na composição social das
sociedades, incluindo na composição do proletariado, obrigaram
e obrigam a novas respostas e a um novo rigor dos princípios
teóricos.
Curioso que certos estudiosos, quando falam do marxismo,
investigam o pensamento de Marx antes de este ter formulado as
grandes conclusões teóricas. Ou seja: de quando Marx ainda não
era marxista. O marxismo há que considerá-lo em movimento,
acompanhando a vida.
Lembre-se que, apenas passados 50 anos do Manifesto Comunista,
já o desenvolvimento do capitalismo exigia novos acertos
teóricos. Lembre-se que coube a Lénine definir o capitalismo
monopolista, o imperialismo etapa suprema do
capitalismo, como indica o título da sua obra célebre.
Neste e noutros aspectos, negar ou recusar o pensamento de
Lénine é negar o marxismo ao longo do século XX. Não foram
infelizmente poucos os que, começando por negar Lénine acabaram
por negar Marx.
A ideologia que inspirou as transformações e conquistas
revolucionárias do século XX é correctamente designada por
marxismo-leninismo.
Além do mais, porque a teoria adquiriu na sociedade força
material quando amplas massas a tomaram como sua e, mesmo que
conhecendo e assimilando apenas aspectos essenciais, sentem nela
inspiração para lutarem com convicção, coragem e confiança.
O marxismo-leninismo foi a grande ideologia revolucionária que
inspirou e encaminhou as grandes lutas, realizações e
experiências libertadoras de transformação social que marcam
para sempre o século XX, na história da humanidade.
Não sem um percurso acidentado. Tanto tendências revisionistas
como dogmáticas têm com frequência incapacitado de responder
criativamente às transformações da realidade. Se muitas
respostas têm sido dadas, muitas mais estão por dar.
Entretanto, princípios fundamentais continuam válidos e
continuam não só a explicar o mundo, mas também a indicar como
transformá-lo.
7. Uma breve referência:
Válidos os princípios fundamentais do materialismo dialéctico
que, rejeitando verdades absolutas e eternas, confia no
conhecimento científico.
Válida a confiança no conhecimento das realidades exteriores ao
ser humano dispensando a imaginativa crença em forças
sobrenaturais que testemunha a insuficiência do saber.
Válida a descoberta do modo de produção, das relações de
produção, como determinante em última instância
da vida social.
Válido, como o Manifesto Comunista proclama, que a
história de todas as sociedades até agora existentes é a
história da luta de classes.
Válido que uma política de classe, de exploração e opressão
de classe, é característica da política dos governos dos
estados capitalistas.
Válidos os princípios fundamentais da teoria económica,
nomeadamente da teoria da mais-valia pedra angular da
teoria económica de Marx.
Válido que o capitalismo, tal como sistemas anteriores, contêm
contradições que, em determinado momento histórico, conduzem
à sua substituição e que, como indica o Manifesto Comunista,
entrámos num tal momento histórico.
Válido o objectivo, a necessidade e a possibilidade de construir
uma sociedade nova, que liquide a exploração do homem pelo
homem, que erradique as grandes desigualdades, injustiças e
flagelos sociais.
Não é por insistência dogmática, mas porque a vida o
comprovou nos 150 anos decorridos desde o Manifesto Comunista,
que se afirma a validade e actualidade de princípios essenciais.
8. Não foi apenas a escolha de um nome, mas uma
declaração programática, ter sido editado o Manifesto
Comunista com o título de Manifesto do Partido Comunista.
O projecto, não só de luta com objectivos a curto e médio
prazo, mas de superação do capitalismo e de construção do
socialismo continha, como um elemento central, a existência e
acção não só de um novo partido, mas de um partido novo.
Um partido independente dos interesses, dos objectivos, da
ideologia das forças do capital. Um partido da classe operária,
como sublinhou Engels, constituído, não como a cauda de
qualquer partido burguês, mas sim como partido independente, que
tem o seu próprio objectivo, a sua própria política.
Grandes e pequenas vitórias da causa comunista, a capacidade de
resistência às mais violentas perseguições, pressões e
tentativas de liquidação, devem-se à existência de partidos
assim concebidos, embora com diferenças resultantes de lutarem
em diferentes condições e terem diferentes percursos e
história.
Inversamente muitas derrotas resultaram do facto de partidos se
terem afastado dos ideais comunistas. Da ligação viva com a
classe operária e as massas populares. Da sua natureza e
independência política e ideológica de classe. Dos seus
objectivos revolucionários. Do património histórico da luta.
Da sua identidade que diferencia um partido comunista dos outros
partidos. Seguindo tais caminhos, alguns partidos acabaram por
dissolver-se ou converter-se noutra coisa. Outros,
evoluindo nesse sentido, absorvem-se em conflitualidades internas
susceptíveis de conduzir a rupturas.
Neste findar do século XX, tal como quando foi proclamado o
Manifesto Comunista, tanto a luta por objectivos a curto e a
médio prazo, como a luta pelo socialismo, continuam a não poder
dispensar partidos comunistas, com este ou outro nome, mas
convictos e confiantes nos traços essenciais da sua identidade.
Concretamente: A natureza e política de classe. A ligação à
classe operária e às vastas massas populares. A defesa dos seus
interesses e direitos. O objectivo da construção da sociedade
socialista. A firmeza ideológica. A solidariedade
internacionalista tendo como raiz o internacionalismo
proletário. E também respeito pela verdade, convicção,
confiança e coragem.
Leia-se ou releia-se o Manifesto
Comunista. Passe-se em revista, sem ideias feitas nem
preconceitos, a história dos 150 anos decorridos. Não se
apresente como novo o que já é velho e revelho nem se diga ser
velho o que é historicamente novo. Não se insista em proclamar
que morreu o que está vivo e que viverá para sempre um sistema
social já historicamente condenado. A história indica e a vida
mostrará que o futuro não pertence ao capitalismo mas ao
socialismo e ao comunismo.