A imprensa revolucionária




Fernando Correia
Jornalista


A luta dos partidos comunistas e operários e dos grandes movimentos de massas contra o sistema capitalista e o imperialismo é indissociável do papel informativo, formativo e organizativo historicamente desempenhado pela imprensa revolucionária.
Marx e Engels, desde o período da juventude, tiveram consciência da necessidade e foram os iniciadores de um jornalismo ligado à actividade militante da classe operária. Um jornalismo concebido enquanto instrumento de orientação e de organização das lutas de massas, cuja primeira grande concretização foi a Nova Gazeta Renana (1848), que Lénine viria a considerar “o melhor, insuperável órgão do proletariado revolucionário” (1).
Na direcção e edição do jornal Marx e Engels trabalhavam juntos: Marx era o chefe de redacção e Engels o seu mais directo colaborador. Recordaria este mais tarde: “As coisas de Marx e as minhas daquele tempo quase que não são, em geral, de separar, em virtude da divisão planificada do trabalho” (2). E noutra ocasião: “Eram tempos de revolução”, durante os quais “trabalhar na imprensa quotidiana é um prazer. Vê-se o efeito de cada palavra diante dos olhos, vê-se como os artigos caem como se fossem granadas e como a carga explosiva rebenta” (3).
Meio século mais tarde, porém, estavam criadas as condições para se poder ir mais longe e mais fundo. Cabe a Lénine o mérito de o ter conseguido. Como dirigente partidário, definiu a missão do órgão central enquanto ferramenta ao serviço da luta revolucionária e da construção do partido; como dirigente do Estado soviético, atribuíu à imprensa uma decisiva e insubstituível tarefa na edificação da nova sociedade; como responsável de publicações, preocupou-se com os diversos aspectos da sua produção - administrativos, gráficos, estilísticos, de distribuição, etc; como teórico da imprensa e do jornalismo, abordou de forma inovadora não só a função e o funcionamento do órgão partidário, quer antes quer depois da Revolução, mas também temas como o lugar da imprensa na sociedade de classes e os conceitos e valores burgueses de jornalismo. E, como todo o autêntico jornalista, foi sempre, até ao fim da vida, um infatigável leitor de jornais...
Evocar estes tempos não significa procurar no passado modelos para aplicar mecanicamente no presente. Mas para os que nos dias de hoje se encontram do mesmo lado da barricada e se empenham numa luta movida pelos mesmos ideais, não é indiferente conhecer as razões que levaram a dar tanta importância à imprensa partidária e os motivos que fizeram com que lhe fossem dados determinados contornos. Sem esquecer que, entre nós, durante mais de quatro décadas, houve um jornal que, nas concretas e específicas condições nacionais mas no quadro das melhores tradições da imprensa revolucionária, resistiu e lutou contra o fascismo em ligação estreita com a actividade partidária: o Avante!, órgão central do PCP.
As realidades de hoje são muito diferentes. Mas como não reconhecer flagrante actualidade, em muitos aspectos, às análises e opiniões de Lénine, por exemplo, sobre os critérios, objectivos e concepções das classes dominantes acerca da imprensa ou sobre o conteúdo e o estilo dos jornais operários? E como não ver na publicação do Avante! clandestino, na sua vida e na sua luta, uma fonte de inspiração para as tarefas de hoje (em condições e com exigências muito diversas) da imprensa comunista?


1.
A missão da imprensa revolucionária

A parte mais substancial da herança leninista chegou-nos através dos testemunhos da sua permanente intervenção no quadro das situações concretas com que se foi confrontando. Esses testemunhos consistem não só em brochuras e ensaios, cartas e discursos, relatórios e recomendações, mas também em muitas centenas de artigos, comentários e notas publicados em dezenas de jornais e revistas.
Entre Lénine e a imprensa estabeleceu-se uma relação natural. Tendo-se apercebido do tipo de relações existentes entre o jornal e o quotidiano das pessoas e da capacidade da imprensa para influir sobre elas e contribuir para a transformação das realidades através da acção de massas, aproveitou e utilizou o jornal como instrumento privilegiado para a sua (dele e do partido) intervenção na prática política e na luta ideológica.
Como reflexo da grande importância por ele dada à imprensa como meio de comunicação e de ligação às massas (recorde-se que se tratava do única grande meio de comunicção social existente naquele tempo), Lénine transformou o próprio jornal em objecto de análise teórica - uma análise não feita uma vez por todas, mas em conexão com a evolução da realidade política, económica e social.
Em épocas diferente entendeu a missão da imprensa também de maneiras diferentes. Em 1900, quando se tratava de criar o partido e enraizá-lo na classe operária e nos trabalhadores, apontou para a imprensa uma função que já não seria a mesma quando, depois de Outubro de 1917, o principal objectivo era vencer a contra-revolução, combater os resquícios do passado e construir a sociedade socialista.
O que sempre permaneceu - e por isso ter permanecido é que o resto mudou - foi uma análise baseada em claras posições de princípio e a fidelidade ao marxismo enquanto íntima ligação da teoria à prática e da prática à teoria, ambas em permanente e criadora relação dialéctica.
Por exemplo: em dado momento, quais as relações e a força relativa das classes? Quais as formas de que se reveste a luta de classes? Qual a sua tradução na luta ideológica? Qual o reflexo desta na consciência e na acção das massas? Quais as tarefas prioritárias e quais os meios para as concretizar? Como se compreende se tivermos em conta estas interrogações - cuja validade e operacionalidade, aliás, se mantêm actuais - Lénine não poderia dar da missão da imprensa (ou da táctica partidária, da política de alianças, etc.) uma definição abstracta, alheia à realidade concreta e às exigências da prática política revolucionária.
A importância que Lénine atribuía à imprensa e a atenção que sempre lhe concedeu (atenção que, não por acaso, surgiu ao mesmo tempo do que os seus primeiros passos na actividade política) resultava fundamentalmente da noção que tinha do decisivo contributo que ela poderia dar à concretização do objectivo essencial: a conquista pelo proletariado da liberdade, da justiça e do progresso para todo o povo, isto é, o derrube do regime absolutista e a construção da sociedade socialista.
Reconhecendo a grande importância da imprensa como fenómeno social, ele pensava ser impossível desligar a actividade jornalística e editorial da actividade política e partidária. Mais: a imprensa teria que ser encarada como uma arma de luta nesse terreno. A sua atitude parte, sem subterfúgios, de um ponto de vista marxista e revolucionário e assenta numa posição de classe que não se esconde atrás de mentiras e hipocrisias, tais como as propaladas na Rússia de então pela imprensa burguesa sobre a “liberdade” e a “democacia”.
Para Lénine, porém, não se tratava de tirar à imprensa qualquer pretensa “neutralidade” que ela, por definição, possuiria, desviando-a e comprometendo-a no combate político e ideológico; tratava-se, sim, de a pôr nas mãos do proletariado ao serviço da luta de classes, tal e qual como a burguesia o fazia em seu próprio proveito, ainda que escondendo essa utilização sob a capa de frases empoladas sobre a “liberdade de imprensa”, a “objectividade”, a “independência”, etc..
Esta é uma das ideias de base em que assentam os principais conceitos e análises de Lénine no terreno quer da imprensa partidária quer das concepções pretensamente “democráticas” da burguesia. Serão estes dois aspectos que sinteticamente abordaremos nos pontos 2. e 3.


2. O jornal como propagandista, agitador e organizador

Houve dois períodos particularmente importantes na actividade jornalística de Lénine, ambos ligados à publicação dos mais destacados representantes da imprensa bolchevique: o Iskra (A Centelha) e o Pravda (A Verdade).
O Iskra é geralmente considerado não só como o iniciador da imprensa bolchevique mas também como o verdadeiro pioneiro da imprensa comunista e organicamente ligada à vida e à luta do partido. Surgiu em Dezembro de 1900 como o começo da concretização e o instrumento para a defesa de um dos objectivos que nesses anos mais preocupava Lénine: a criação de um jornal político (necessariamente ilegal, devido à opressão czarista) para toda a Rússia, concebido como “uma parte de um gigantesco fole de uma forja que atiçasse cada centelha da luta de classes e da indignação do povo, convertendo-a num grande incêndio” (4).
Lénine era de opinião que para conduzir a luta contra a autocracia se tornava absolutamente necessária a construção de um partido de novo tipo - o partido da classe operária. Nas condições da luta clandestina, numa Rússia imensa onde a dispersão e o espontaneísmo constituiam poderoso entrave à luta organizada de massas, tal objectivo, segundo ele, só seria possível de alcançar através da publicação de um jornal único que saísse regularmente e unificasse sob uma mesma bandeira ideológica e organizativa os diversos grupos locais.
Tal como o partido, também o jornal seria de um novo tipo: “A função do jornal não se limita, contudo, a difundir ideias, a educar politicamente ou a ganhar aliados. O jornal é não só um propagandista colectivo e um agitador colectivo, mas também um organizador colectivo. Neste último caso, pode comparar-se com os andaimes colocados num edifício em construção, que marcam os seus contornos, facilitam o contacto com os diversos grupos de operários, ajudando-os a distribuir as tarefas e a perspectivar os resultados obtidos graças a um trabalho organizado” (5).
Lénine, que se encontrava então no exílio, era ao mesmo tempo a alma e o corpo do Iskra, nele desempenhando todas as tarefas - nomeadamente a de autor, tendo colaborado praticamente em todos os números. Em torno do jornal foi-se criando uma verdadeira organização, ramificada pelo país, que teve um papel decisivo na estruturação e organização do partido, dando-lhe coesão ideológica e unidade na acção.
Quanto ao Pravda, surgido bastante mais tarde, em Maio de 1912, assinala já uma outra etapa da evolução da imprensa e do partido: publicando-se legalmente no próprio país, funcionou, na sua primeira fase, até Julho de 1914, como centro da actividade clandestina do partido. Não obstante nessa altura se encontrar de novo no exílio, Lénine mantinha-se em assíduo contacto com a redacção, em Petersburgo, e na prática era o verdadeiro director, conforme se verifica pela numerosa correspondência por ele enviada e recebida nesse período.
Um dos princípios defendidos por Lénine para a imprensa partidária, e de acordo com a concepção acima mencionada, era a necessidade de uma grande participação no seu conteúdo do maior número possível de trabalhadores, participação esta devidamente organizada num amplo movimento de correspondentes operários e camponeses. Mais de 17.000 textos publicados pelo Pravda nesse período foram enviados pelos leitores. Ao contrário do Iskra, o Pravda já não tinha como objectivo a formação do partido nem se destinava essencialmente aos núcleos de revolucionários, dirigindo-se às grandes massas e tornando-se para elas um pólo de atracção.


3. Dois conceitos de "liberdade de imprensa"

Leitor assíduo e atento da imprensa, Lénine formulou ao longo dos anos severas apreciações aos conceitos e aos métodos dos jornais propriedade dos capitalistas. Mas houve um período em que as circunstâncias da luta política e ideológica o levaram a abordar este tema com maior insistência.
Com o derrubamento do czarismo e o estabelecimento das liberdades públicas, a Revolução de Fevereiro de 1917 instaurara no país um regima democrático-burguês que deixava praticamente intactas as estruturas essenciais do absolutismo. Socialistas-revolucionários e mencheviques (6) conluiados com a burguesia no poder, alinhavam com esta na apologia de uma democracia formal que se limitava a continuar por novas formas a opressão e a exploração anteriores. No sector da imprensa isso também era visível:
“Os capitalistas (e, com eles, por estupidez ou por inércia, muitos socialistas-revolucionários e mencheviques) chamam «liberdade de imprensa» à supressão da censura e à possibilidade para todos os partidos de poderem editar a sua imprensa.
“Na realidade, isto não é a liberdade de imprensa, mas a liberdade de os ricos, da burguesia, enganarem as massas populares oprimidas e exploradas” (7).
Chamando a atenção para a desproporção existente entre a enorme tiragem global dos jornais pertencentes à burguesia em comparação com a dos jornais democráticos, não obstante os apoiantes destes constituirem a maioria esmagadora do povo, Lénine pergunta e responde:
“Porque é que isto sucede?
“Todos o sabemos perfeitamente. A edição de um jornal é um grande e lucrativo empreendimento capitalista, no qual os ricos investem milhões e milhões de rublos. Na sociedade burguesa, a «liberdade de imprensa» consiste na liberdade, para os ricos, de enganar, corromper, mistificar sistematicamente, sem cessar, quotidianamente, por intermédio de milhões de exemplares, os pobres e as massas exploradas e oprimidas do povo” (os sublinhados são de Lénine).
À concepção de «liberdade de imprensa» defendida pela burguesia estavam associados, naturalmente, determinados métodos de praticar o jornalismo, os quais constituíam uma esclarecedora concretização daquela concepção.
“A imprensa burguesa recorre sempre e em todos os países ao seu processo mais usual e «infalível»: mente, faz barulho, grita, repete a mentira pois «dela ficará sempre alguma coisa»”, escreve ele no Pravda em Abril de 1917 (8).
Depois de citar notícias da imprensa segundo as quais numa reunião na sede do partido em Petersburgo ele tinha «vociferado desalmadamente» e num comício no Cinema Moderno discursara no telhado (!), Lénine esclarece ser tudo completamente falso: no comício no cinema nem sequer estivera presente, e na outra reunião, em vez de ter “vociferado”, limitara-se a apresentar um relatório (tratava-se das famosas teses de Abril). E contra-ataca:
“Quem «vocifera desalmadamente» são os capitalistas e a sua imprensa; esforçam-se por afogar a verdade, por impedir que ela seja ouvida, por tudo submergir sob uma torrente de injúrias e vociferações, impedindo um esclarecimento concreto”.
Com a Revolução de Outubro a situação muda radicalmente no país. No lançamento dos alicerces da nova sociedade a imprensa ocupa um lugar considerado insubstituível. Entretanto, continuaram a não faltar oportunidades nem motivos a Lénine para, por diversas vezes, retomar a sua teorização sobre a falsa liberdade da imprensa burguesa, contrapondo a esta a nova imprensa saída da revolução - uma realidade que nascia e se consolidava, não obstante todos os obstáculos, incluindo os motivados pela dificuldade em cortar radicalmente com os métodos e as concepções do passado.
Logo nos primeiros dias de Novembro, no esboço de um projecto de resolução sobre a liberdade de imprensa, escrevia:
“A burguesia entendia por liberdade de imprensa a liberdade para os ricos de publicar jornais e para os capitalistas de açambarcar a imprensa, o que na prática conduziu em todos os países, sem excluir os mais liberais, à venalidade da imprensa.
“O governo operário e camponês entende por liberdade de imprensa a libertação da imprensa do jugo do capital, a passagem para propriedade do Estado das fábricas de papel e das tipografias, a atribuição a cada grupo de cidadãos que atinja um determinado número (por exemplo 10.000) do direito à utilização de uma certa parte dos stocks de papel e da correspondente mão-de-obra para a impressão” (9).
Lembrando, no decorrer do I Congresso da Internacional Comunista, que uma das principais palavras de ordem da “democracia pura” defendida pela burguesia era precisamente a “liberdade de imprensa”, Lénine acentuava que “os operários sabem também, e os socialistas de todos os países reconheceram-no milhões de vezes, que esta liberdade é um logro enquanto as melhores tipografias e as grandes reservas de papel se encontrarem nas
mãos dos capitalistas e enquanto existir o poder do capital sobre a imprensa, que se manifesta em todo o mundo tanto mais clara, nítida e cinicamente quanto mais desenvolvidos se encontrarem a democracia e o regime republicano, como, por exemplo, na América (10).


4. O estilo do trabalho e o estilo da prosa

Parece-nos útil e interessante evocar alguns episódios e reter algumas opiniões de Lénine expressas ao longo do seu contacto próximo com a produção da imprensa partidária. Ele mostra ter do jornal uma concepção dinâmica e combativa, singularmente actual, conciliando o rigor ideológico e político com a vivacidade jornalística.
A não publicação pelo Pravda de uma determinada notícia, entretanto divulgada pelo jornal dos mencheviques, motivou uma áspera carta de Lénine à redacção: “O que é que isto quer dizer? Para que serve um jornal operário se trata com tanto desprezo aquilo que interessa aos operários?” Para além da falha política, chama a atenção para o aspecto “puramente jornalístico” da questão, acentuando que “o jornal não é uma coisa pela qual o leitor apenas passa a vista e na qual o autor lança apressadamente as suas reflexões. Um jornal deve ele próprio procurar, encontrar a tempo e publicar no momento oportuno os materiais essenciais. Um jornal deve procurar e encontrar os contactos de que tem necessidade” (11).
Por mais de uma vez considerou a “monotonia” como uma inimiga da imprensa. Em 1901, numa carta a Plekhanov, pedia-lhe que redigisse para o Iskra pequenos artigos (Lénine era contrário às longas prosas nos jornais, reservando-as para as revistas) sobre temas económicos, nem que fosse apenas uma vez por outra, sublinhando: “Esperamos sinceramente que nos ajude, senão o Iskra arrisca-se a tornar-se monótono” (12).
Anos mais tarde, respondendo a uma carta do Nievskaia Zvezda (13) na qual os próprios jornalistas se queixavam da “monotonia”, Lénine comentava que esta se torna inevitável enquanto não se der o devido lugar à “polémica”. “Ao iludir as «questões espinhosas», o Zvezda e o Pravda tornam-se secos e monótonos, pouco interessantes e pouco combativos”. Defende que um órgão socialista “deve lançar a polémica”, levantando as questões em vez de se limitar a uma posição defensiva. Sublinhando ser pernicioso deixar ao adversário a iniciativa de tomar posição sobre as divergências, adverte: “um jornal que se limita a ir a reboque está perdido (...). A monotonia e o atraso são incompatíveis com o jornalismo”.
Nas suas cartas ao Pravda incita frequentemente os jornalistas a serem mais batalhadores e estabelece comparações com a imprensa rival: “O Loutch combate com furor, com histeria, abandonando desavergonhadamente os seus princípios. O Pravda, para o humilhar, assume um ar sério, afectado, e pura e simplesmente não luta! Tem isto alguma coisa a ver com o marxismo? Não é verdade que Marx sabia aliar a luta mais apaixonada, mais intrépida e mais implacável a um perfeito espírito de princípio?” (14).
Lénine considerava que o ardor no combate jornalístico não devia pôr em causa a fidelidade aos princípios. Mas também era preciso adequar a linguagem e o estilo ao conteúdo.
Comentando um artigo que lhe fora enviado para apreciação, escrevia ele ao autor: “Em minha opinião o tema está bem escolhido e convenientemente tratado, mas a redacção parece-me insuficiente. Contém demasiada - como dizer? - «agitação», o que não convém a um estudo sobre uma questão teórica” (15).
Noutra oportunidade, ao dar a opinião sobre um artigo por ele considerado “mau”, criticava: “É mordaz, mas não mais do que isso. Por amor de Deus, um pouco menos de mordacidade. É necessário expor os argumentos com mais calma e insistir na verdade de uma maneira mais detalhada, mais simples” (16).


5. Portugal: O fascismo e a imprensa clandestina

A acção de Marx, Engels e Lénine no que se refere à imprensa revolucionária (nas condições da luta clandestina ou noutras) constituíu uma preciosa fonte de ensinamentos e experiências para o movimento comunista internacional e para todos os que se empenham no combate a regimes ditatoriais ou lutam pelo aprofundamento da democracia e pelo fim da exploração.
Em Portugal, foi em 24 de Junho de 1926 que pela primeira vez os jornais inseriram a célebre menção “Este número foi visado pela Comissão de Censura”, ainda que só em 1933, após seis anos de subordinação ao Ministério da Guerra, tivesse sido criada uma Direcção-Geral dos Serviços de Censura, no âmbito do Ministério do Interior.
“Oportunamente a censura desaparecerá e todas as liberdades públicas serão restabelecidas”, assegurava em entrevista ao Mundo de 13 de Julho de 1926 o general Carmona, que três dias antes substituira o general Gomes da Costa na chefia do movimento do 28 de Maio (17). Mas a “oportunidade” nunca veio a surgir, nem mesmo quando, mais de quarenta anos depois, o pretenso “liberal” Marcelo Caetano substituiria as palavras “censura” por “exame prévio” e “cortado” por “proibido”, naquilo a que alguém chamaria a “reforma dos carimbos” (18).
A luta contra a censura seria uma das constantes da luta mais geral contra o regime, tanto mais que representava uma das suas faces mais odiosas. Tão odiosa que, em público, até os seus mais fieis servidores na imprensa se sentiam, por vezes, nomeadamente nos últimos anos do regime, na obrigação de a criticar, mesmo que apenas perante audiências restritas, chegando-se ao ponto de, por exemplo, Barradas de Oliveira, director do oficioso Diário da Manhã, ter chamado à censura “forma grosseira, declarada, impudente da intervenção do Estado” (19).
É no contexto da resistência contra a censura e da luta mais geral contra o fascismo que se insere a acção da imprensa clandestina, cuja história e cuja acção são parte inseparável do combate desenvolvido durante décadas. Um combate a que não faltam heróis e mártires que na luta pela liberdade sacrificaram a própria vida, como foi o caso de José Moreira, responsável pelo aparelho de imprensa do PCP na segunda metade dos anos quarenta, torturado pela PIDE até à morte sem prestar nenhuma informação, e que um dia escreveu, lapidarmente: “Uma tipografia clandestina é o coração da luta popular. Um corpo sem coração não pode viver”.
Os jornais clandestinos surgiram ou tiveram particular desenvolvimento nos períodos de ascenso da luta popular. A partir do início da década de sessenta, com o eclodir da guerra colonial, o agravamento das contradições do regime e a intensificação e o alargamento da luta de massas (a que se devem juntar as novas possibilidades técnicas de impressão), os jornais clandestinos ganharam um importante impulso, provindos, para além da imprensa do PCP, de sectores tão diversos como os grupos esquerdistas, o núcleo do que viria a ser o Partido Socialista, os católicos progressistas e estruturas diversas de natureza sindical, estudantil e de carácter unitário.
De uma maneira geral, tratou-se de jornais de vida efémera e publicação descontínua, muitas vezes feitos no estrangeiro e com pouca intervenção no dia-a-dia da situação nacional, desprovidos dos meios organizativos que possibilitassem uma produção contínua e uma chegada fácil ao seu potencial público. A verdade é que a vida de um jornal clandestino está directamente condicionada por um enquadramento em que há que ter em conta factores essenciais como o aparelho técnico e a ligação às massas.
Um jornal clandestino desligado de uma organização forte e coesa, naturalmente também ela clandestina (ou essencialmente clandestina), está votado ao malogro. Não tem defesas nem cobertura, não tem protecção para o seu aparelho técnico, não tem meios humanos e vínculos orgânicos que o façam chegar às massas. Vive isolado, sem ultrapassar um reduzido círculo de leitores - e, necessariamente, vive pouco. Foi o que aconteceu com a maior parte da imprensa clandestina durante o fascismo.


6. O Avante! - órgão central do PCP

Compreende-se assim que tenha sido o Avante!, órgão central do PCP (o único partido político antifascista existente durante o quase meio século de ditadura em Portugal), o jornal clandestino de maior duração, divulgação e influência ao longo desse negro período, sendo mesmo internacionalmente considerado o jornal que, em todo o mundo, durante mais tempo resistiu com êxito às duras condições da clandestinidade.
O primeiro número do jornal surgiu em 15 de Fevereiro de 1931, na sequência de uma importante reorganização do Partido iniciada dois anos antes. Os dez anos seguintes caracterizaram-se por uma grande irregularidade de publicação, que por cinco vezes foi interrompida e retomada. Era o reflexo das debilidades do próprio Partido, ainda impreparado para resistir à repressão.
Houve nesse período um ano em que a citada impreparação se traduziu numa sobrevalorização das capacidades próprias e numa não menos clara subestimação dos obstáculos a vencer: em 1937, apesar das dificuldades orgânicas do Partido motivadas pelos sucessivos golpes da polícia e pela falta de quadros provados e experientes, o jornal passou de mensal a semanal, atingindo os 10.000 exemplares de tiragem.
Consumidas quase todas as forças da organização nessa tarefa, quando, passados alguns meses, na sequência de uma série de prisões, a repressão atingiu o aparelho técnico, não houve capacidade de resposta e a publicação foi interrompida durante cerca de dois anos.
O jornal reaparece em Agosto de 1941, no quadro de uma reorganização que finalmente dotaria o PCP dos meios organizativos e humanos e da orientação política capazes de lhe permitirem enfrentar com êxito as perseguições policiais e de dirigir a luta contra a ditadura e pela instauração da democracia.
A existência, sempre em território nacional, de aparelho técnico próprio (extensivo a O Militante, boletim de organização, e a outras edições do partido e de carácter unitário, no que se refere quer à composição e à impressão quer à distribuição) permitiram que o jornal permanecesse desde então incólume perante as arremetidas policiais. Por várias vezes houve tipografias clandestinas localizadas e assaltadas, mas logo uma outra entrava em funcionamento, assegurando assim que o contacto com os leitores não fosse interrompido.
Ao longo dos anos, mais de 80 casas - andares ou vivendas aparentemente “normais” - foram em todo o país utilizadas como local de produção do Avante!. O jornal publicava-se em papel-bíblia, com quatro ou seis páginas de formato A-4 (com algumas variações), composto manualmente e impresso através do processo do prelo imortalizado no célebre desenho de José Dias Coelho.
Lidos hoje, com a lupa do historiador ou na perspectiva do simples curioso das coisas do passado recente, o Avante! e outros jornais clandestinos apresentam-se como uma fonte insubstituível para o conhecimento da situação social e económica no país, da política do fascismo e da luta contra ele. Nas suas páginas surge tudo aquilo que a censura e a falta das liberdades em geral impedia que por outra forma fosse tornado público: a denúncia da repressão e dos crimes fascistas, a exploração dos trabalhadores, as greves e outras lutas nas fábricas, nos campos, nos escritórios e nas escolas, a actividade do partido e dos movimentos e organizações unitárias, o desmascaramento da política governamental, assim como a acção do imperialismo, a luta de libertação dos povos, a solidariedade internacionalista, etc..
Mas o órgão central do PCP não se limitou a informar e a formar: tomando ele próprio parte activa no trabalho militante e na movimentação popular, apelava e dava sentido à luta, apontava caminhos, circulava de mão em mão funcionando como vínculo e veículo de laços orgânicos e ideológicos, integrava-se no trabalho organizativo, contribuindo para o alargamento, a coesão e a operacionalidade do colectivo partidário e ajudando à mobilização das massas, à convergência dos objectivos, à unidade na acção e ao fortalecimento e implantação do Partido. Tratava-se de levar à prática a concepção do jornal revolucionário não apenas enquanto propagandista e agitador, mas também enquanto organizador colectivo.
Com o derrube do fascismo e a conquista da democracia, transformaram-se profundamente o contexto político, as condições de trabalho, os contornos jornalísticos e os objectivos editoriais do Avante!, assim como de O Militante. Alteraram-se a sua vida e a sua luta, tal como anteriormente inseparáveis da vida e da luta do Partido, mas permanece a sua identidade (tal como a do Partido) enquanto jornais revolucionários empenhados na transformação da sociedade.
A situação tornou-se muito diferente. No entanto, a evolução da comunicação social, em íntima ligação com a evolução económica, política e cultural, concede hoje particular actualidade, em vários aspectos, a muitos dos traços distintivos da imprensa do Partido anterior ao 25 de Abril, continuando a exigir dela - no quadro de uma tarefa pela qual todo o colectivo partidário é responsável - a complexa missão de simultaneamente informar e esclarecer, denunciar e combater, divulgar e propor, mobilizar e organizar. Voltaremos a este tema.


Notas:

(1) Karl Marx. Biografia, Edições “Avante!” - Edições Progresso, Lisboa - Moscovo, 1983, p. 194.
(2) (3) Ob. Cit., p. 191 e p. 193.
(4) V.I. Lénine, “Que Fazer?”, in Obras Escolhidas em seis tomos, Edições “Avante!” - Edições Progresso, Lisboa - Moscovo, 1984, tomo I, p. 200.
(5) V.I. Lénine, “Por onde começar?”, in Oeuvres, Editions Sociales - Editions du Progrés, Paris - Moscou, 1977, t. 5, p. 19.
(6) Socialistas-revolucionários: partido pequeno-burguês cujos dirigentes, depois da revolução de Fevereiro, fizeram parte do Governo Provisório, vindo mais tarde a opor-se frontalmente ao poder soviético. Mencheviques: representavam a facção minoritária entre os comunistas (daí o seu nome, em contraposição aos bolcheviques, maioritários, segundo as palavras correspondentes em russo), tendo também participado no Governo Provisório.
(7) V.I. Lénine, “Como assegurar o êxito da Assembleia Constituinte? (A Propósito da Liberdade de Imprensa), in Oeuvres, t. 25, pp. 407-412.
(8) V.I. Lénine, “A Aliança da Mentira”, in Oeuvres, t. 24, pp. 112-115.
(9) V.I. Lénine, “Projecto de Resolução sobre a Liberdade de Imprensa”, in Oeuvres, t. 26, pp. 294-295.
(10) V.I. Lénine, “Teses e Relatório sobre a Democracia Burguesa e a Ditadura do Proletariado” (I Congresso da Internacional Comunista, Março de 1919), in Obras Escolhidas em três tomos, Edições “Avante!” - Edições Progresso, Lisboa - Moscovo, 1979, t. 3, pp. 78-79.
(11) V.I. Lénine, in Oeuvres, t. 35, pp. 54-55.
(12) V.I. Lénine, in Oeuvres, t. 36, pp. 88-89.
(13) V.I. Lénine, in Oeuvres, t. 35, pp. 31-33. O Nievskaia Zvezda (A Estrela do Neva) era um jornal bolchevique que se publicou em 1912 em Petersburgo.
(14) V.I. Lénine, Oeuvres, t. 36, p. 187. O Louch (O Raio) era um jornal menchevique que se publicou em Petersburgo em 1912 e 1913.
(15) Ibidem.
(16) V.I. Lénine, in Oeuvres, t. 35, p. 115.
(17) Cit. In Alberto Arons de Carvalho, A Censura e as Leis de Imprensa, Lisboa, Seara Nova, 1973, pp. 41-42.
(18) A expressão é de Raul Rego. Cf. Teses ao 3º Congresso da Oposição Democrática, Seara Nova, 1974, p. 137.
(19) Cf. Curso de Jornalismo, Estudos de Ciências Políticas e Sociais, Junta de Investigação do Ultramar, Lisboa, 1963, p. 171.

No próximo número:
Os media em Portugal


«O Militante» Nº 233 - Março / Abril - 1998