A imprensa revolucionária
Fernando Correia
Jornalista
A luta dos partidos comunistas e operários e
dos grandes movimentos de massas contra o sistema capitalista e o
imperialismo é indissociável do papel informativo, formativo e
organizativo historicamente desempenhado pela imprensa
revolucionária.
Marx e Engels, desde o período da juventude, tiveram
consciência da necessidade e foram os iniciadores de um
jornalismo ligado à actividade militante da classe operária. Um
jornalismo concebido enquanto instrumento de orientação e de
organização das lutas de massas, cuja primeira grande
concretização foi a Nova Gazeta Renana (1848), que
Lénine viria a considerar o melhor, insuperável órgão
do proletariado revolucionário (1).
Na direcção e edição do jornal Marx e Engels trabalhavam
juntos: Marx era o chefe de redacção e Engels o seu mais
directo colaborador. Recordaria este mais tarde: As coisas
de Marx e as minhas daquele tempo quase que não são, em geral,
de separar, em virtude da divisão planificada do trabalho
(2). E noutra ocasião: Eram tempos de revolução,
durante os quais trabalhar na imprensa quotidiana é um
prazer. Vê-se o efeito de cada palavra diante dos olhos, vê-se
como os artigos caem como se fossem granadas e como a carga
explosiva rebenta (3).
Meio século mais tarde, porém, estavam criadas as condições
para se poder ir mais longe e mais fundo. Cabe a Lénine o
mérito de o ter conseguido. Como dirigente partidário, definiu
a missão do órgão central enquanto ferramenta ao serviço da
luta revolucionária e da construção do partido; como dirigente
do Estado soviético, atribuíu à imprensa uma decisiva e
insubstituível tarefa na edificação da nova sociedade; como
responsável de publicações, preocupou-se com os diversos
aspectos da sua produção - administrativos, gráficos,
estilísticos, de distribuição, etc; como teórico da imprensa
e do jornalismo, abordou de forma inovadora não só a função e
o funcionamento do órgão partidário, quer antes quer depois da
Revolução, mas também temas como o lugar da imprensa na
sociedade de classes e os conceitos e valores burgueses de
jornalismo. E, como todo o autêntico jornalista, foi sempre,
até ao fim da vida, um infatigável leitor de jornais...
Evocar estes tempos não significa procurar no passado modelos
para aplicar mecanicamente no presente. Mas para os que nos dias
de hoje se encontram do mesmo lado da barricada e se empenham
numa luta movida pelos mesmos ideais, não é indiferente
conhecer as razões que levaram a dar tanta importância à
imprensa partidária e os motivos que fizeram com que lhe fossem
dados determinados contornos. Sem esquecer que, entre nós,
durante mais de quatro décadas, houve um jornal que, nas
concretas e específicas condições nacionais mas no quadro das
melhores tradições da imprensa revolucionária, resistiu e
lutou contra o fascismo em ligação estreita com a actividade
partidária: o Avante!, órgão central do PCP.
As realidades de hoje são muito diferentes. Mas como não
reconhecer flagrante actualidade, em muitos aspectos, às
análises e opiniões de Lénine, por exemplo, sobre os
critérios, objectivos e concepções das classes dominantes
acerca da imprensa ou sobre o conteúdo e o estilo dos jornais
operários? E como não ver na publicação do Avante!
clandestino, na sua vida e na sua luta, uma fonte de inspiração
para as tarefas de hoje (em condições e com exigências muito
diversas) da imprensa comunista?
1. A missão da imprensa revolucionária
A parte mais substancial da herança leninista chegou-nos
através dos testemunhos da sua permanente intervenção no
quadro das situações concretas com que se foi confrontando.
Esses testemunhos consistem não só em brochuras e ensaios,
cartas e discursos, relatórios e recomendações, mas também em
muitas centenas de artigos, comentários e notas publicados em
dezenas de jornais e revistas.
Entre Lénine e a imprensa estabeleceu-se uma relação natural.
Tendo-se apercebido do tipo de relações existentes entre o
jornal e o quotidiano das pessoas e da capacidade da imprensa
para influir sobre elas e contribuir para a transformação das
realidades através da acção de massas, aproveitou e utilizou o
jornal como instrumento privilegiado para a sua (dele e do
partido) intervenção na prática política e na luta
ideológica.
Como reflexo da grande importância por ele dada à imprensa como
meio de comunicação e de ligação às massas (recorde-se que
se tratava do única grande meio de comunicção social existente
naquele tempo), Lénine transformou o próprio jornal em objecto
de análise teórica - uma análise não feita uma vez por todas,
mas em conexão com a evolução da realidade política,
económica e social.
Em épocas diferente entendeu a missão da imprensa também de
maneiras diferentes. Em 1900, quando se tratava de criar o
partido e enraizá-lo na classe operária e nos trabalhadores,
apontou para a imprensa uma função que já não seria a mesma
quando, depois de Outubro de 1917, o principal objectivo era
vencer a contra-revolução, combater os resquícios do passado e
construir a sociedade socialista.
O que sempre permaneceu - e por isso ter permanecido é que o
resto mudou - foi uma análise baseada em claras posições de
princípio e a fidelidade ao marxismo enquanto íntima ligação
da teoria à prática e da prática à teoria, ambas em
permanente e criadora relação dialéctica.
Por exemplo: em dado momento, quais as relações e a força
relativa das classes? Quais as formas de que se reveste a luta de
classes? Qual a sua tradução na luta ideológica? Qual o
reflexo desta na consciência e na acção das massas? Quais as
tarefas prioritárias e quais os meios para as concretizar? Como
se compreende se tivermos em conta estas interrogações - cuja
validade e operacionalidade, aliás, se mantêm actuais - Lénine
não poderia dar da missão da imprensa (ou da táctica
partidária, da política de alianças, etc.) uma definição
abstracta, alheia à realidade concreta e às exigências da
prática política revolucionária.
A importância que Lénine atribuía à imprensa e a atenção
que sempre lhe concedeu (atenção que, não por acaso, surgiu ao
mesmo tempo do que os seus primeiros passos na actividade
política) resultava fundamentalmente da noção que tinha do
decisivo contributo que ela poderia dar à concretização do
objectivo essencial: a conquista pelo proletariado da liberdade,
da justiça e do progresso para todo o povo, isto é, o derrube
do regime absolutista e a construção da sociedade socialista.
Reconhecendo a grande importância da imprensa como fenómeno
social, ele pensava ser impossível desligar a actividade
jornalística e editorial da actividade política e partidária.
Mais: a imprensa teria que ser encarada como uma arma de luta
nesse terreno. A sua atitude parte, sem subterfúgios, de um
ponto de vista marxista e revolucionário e assenta numa
posição de classe que não se esconde atrás de mentiras e
hipocrisias, tais como as propaladas na Rússia de então pela
imprensa burguesa sobre a liberdade e a
democacia.
Para Lénine, porém, não se tratava de tirar à imprensa
qualquer pretensa neutralidade que ela, por
definição, possuiria, desviando-a e comprometendo-a no
combate político e ideológico; tratava-se, sim, de a pôr nas
mãos do proletariado ao serviço da luta de classes, tal
e qual como a burguesia o fazia em seu próprio proveito,
ainda que escondendo essa utilização sob a capa de frases
empoladas sobre a liberdade de imprensa, a
objectividade, a independência, etc..
Esta é uma das ideias de base em que assentam os principais
conceitos e análises de Lénine no terreno quer da imprensa
partidária quer das concepções pretensamente
democráticas da burguesia. Serão estes dois
aspectos que sinteticamente abordaremos nos pontos 2. e 3.
2. O jornal como propagandista, agitador e
organizador
Houve dois períodos particularmente importantes na actividade
jornalística de Lénine, ambos ligados à publicação dos mais
destacados representantes da imprensa bolchevique: o Iskra
(A Centelha) e o Pravda (A Verdade).
O Iskra é geralmente considerado não só como o
iniciador da imprensa bolchevique mas também como o verdadeiro
pioneiro da imprensa comunista e organicamente ligada à vida e
à luta do partido. Surgiu em Dezembro de 1900 como o começo da
concretização e o instrumento para a defesa de um dos
objectivos que nesses anos mais preocupava Lénine: a criação
de um jornal político (necessariamente ilegal, devido à
opressão czarista) para toda a Rússia, concebido como uma
parte de um gigantesco fole de uma forja que atiçasse cada
centelha da luta de classes e da indignação do povo,
convertendo-a num grande incêndio (4).
Lénine era de opinião que para conduzir a luta contra a
autocracia se tornava absolutamente necessária a construção de
um partido de novo tipo - o partido da classe operária. Nas
condições da luta clandestina, numa Rússia imensa onde a
dispersão e o espontaneísmo constituiam poderoso entrave à
luta organizada de massas, tal objectivo, segundo ele, só seria
possível de alcançar através da publicação de um jornal
único que saísse regularmente e unificasse sob uma mesma
bandeira ideológica e organizativa os diversos grupos locais.
Tal como o partido, também o jornal seria de um novo tipo:
A função do jornal não se limita, contudo, a difundir
ideias, a educar politicamente ou a ganhar aliados. O jornal é
não só um propagandista colectivo e um agitador colectivo, mas
também um organizador colectivo. Neste último caso, pode
comparar-se com os andaimes colocados num edifício em
construção, que marcam os seus contornos, facilitam o contacto
com os diversos grupos de operários, ajudando-os a distribuir as
tarefas e a perspectivar os resultados obtidos graças a um
trabalho organizado (5).
Lénine, que se encontrava então no exílio, era ao mesmo tempo
a alma e o corpo do Iskra, nele desempenhando todas as
tarefas - nomeadamente a de autor, tendo colaborado praticamente
em todos os números. Em torno do jornal foi-se criando uma
verdadeira organização, ramificada pelo país, que teve um
papel decisivo na estruturação e organização do partido,
dando-lhe coesão ideológica e unidade na acção.
Quanto ao Pravda, surgido bastante mais tarde, em Maio
de 1912, assinala já uma outra etapa da evolução da imprensa e
do partido: publicando-se legalmente no próprio país,
funcionou, na sua primeira fase, até Julho de 1914, como centro
da actividade clandestina do partido. Não obstante nessa altura
se encontrar de novo no exílio, Lénine mantinha-se em assíduo
contacto com a redacção, em Petersburgo, e na prática era o
verdadeiro director, conforme se verifica pela numerosa
correspondência por ele enviada e recebida nesse período.
Um dos princípios defendidos por Lénine para a imprensa
partidária, e de acordo com a concepção acima mencionada, era
a necessidade de uma grande participação no seu conteúdo do
maior número possível de trabalhadores, participação esta
devidamente organizada num amplo movimento de correspondentes
operários e camponeses. Mais de 17.000 textos publicados pelo Pravda
nesse período foram enviados pelos leitores. Ao contrário do
Iskra, o Pravda já não tinha como objectivo a
formação do partido nem se destinava essencialmente aos
núcleos de revolucionários, dirigindo-se às grandes massas e
tornando-se para elas um pólo de atracção.
3. Dois conceitos de "liberdade de
imprensa"
Leitor assíduo e atento da imprensa, Lénine formulou ao longo
dos anos severas apreciações aos conceitos e aos métodos dos
jornais propriedade dos capitalistas. Mas houve um período em
que as circunstâncias da luta política e ideológica o levaram
a abordar este tema com maior insistência.
Com o derrubamento do czarismo e o estabelecimento das liberdades
públicas, a Revolução de Fevereiro de 1917 instaurara no país
um regima democrático-burguês que deixava praticamente intactas
as estruturas essenciais do absolutismo.
Socialistas-revolucionários e mencheviques (6) conluiados com a
burguesia no poder, alinhavam com esta na apologia de uma
democracia formal que se limitava a continuar por novas formas a
opressão e a exploração anteriores. No sector da imprensa isso
também era visível:
Os capitalistas (e, com eles, por estupidez ou por
inércia, muitos socialistas-revolucionários e mencheviques)
chamam «liberdade de imprensa» à supressão da censura e à
possibilidade para todos os partidos de poderem editar a sua
imprensa.
Na realidade, isto não é a liberdade de imprensa, mas a
liberdade de os ricos, da burguesia, enganarem as massas
populares oprimidas e exploradas (7).
Chamando a atenção para a desproporção existente entre a
enorme tiragem global dos jornais pertencentes à burguesia em
comparação com a dos jornais democráticos, não obstante os
apoiantes destes constituirem a maioria esmagadora do povo,
Lénine pergunta e responde:
Porque é que isto sucede?
Todos o sabemos perfeitamente. A edição de um jornal é
um grande e lucrativo empreendimento capitalista, no qual os
ricos investem milhões e milhões de rublos. Na sociedade
burguesa, a «liberdade de imprensa» consiste na liberdade, para
os ricos, de enganar, corromper, mistificar sistematicamente, sem
cessar, quotidianamente, por intermédio de milhões de
exemplares, os pobres e as massas exploradas e oprimidas do
povo (os sublinhados são de Lénine).
À concepção de «liberdade de imprensa» defendida pela
burguesia estavam associados, naturalmente, determinados métodos
de praticar o jornalismo, os quais constituíam uma esclarecedora
concretização daquela concepção.
A imprensa burguesa recorre sempre e em todos os países ao
seu processo mais usual e «infalível»: mente, faz barulho,
grita, repete a mentira pois «dela ficará sempre alguma
coisa», escreve ele no Pravda em Abril de 1917
(8).
Depois de citar notícias da imprensa segundo as quais numa
reunião na sede do partido em Petersburgo ele tinha «vociferado
desalmadamente» e num comício no Cinema Moderno discursara no
telhado (!), Lénine esclarece ser tudo completamente falso: no
comício no cinema nem sequer estivera presente, e na outra
reunião, em vez de ter vociferado, limitara-se a
apresentar um relatório (tratava-se das famosas teses de Abril).
E contra-ataca:
Quem «vocifera desalmadamente» são os capitalistas e a
sua imprensa; esforçam-se por afogar a verdade, por impedir que
ela seja ouvida, por tudo submergir sob uma torrente de injúrias
e vociferações, impedindo um esclarecimento concreto.
Com a Revolução de Outubro a situação muda radicalmente no
país. No lançamento dos alicerces da nova sociedade a imprensa
ocupa um lugar considerado insubstituível. Entretanto,
continuaram a não faltar oportunidades nem motivos a Lénine
para, por diversas vezes, retomar a sua teorização sobre a
falsa liberdade da imprensa burguesa, contrapondo a esta a nova
imprensa saída da revolução - uma realidade que nascia e se
consolidava, não obstante todos os obstáculos, incluindo os
motivados pela dificuldade em cortar radicalmente com os métodos
e as concepções do passado.
Logo nos primeiros dias de Novembro, no esboço de um projecto de
resolução sobre a liberdade de imprensa, escrevia:
A burguesia entendia por liberdade de imprensa a liberdade
para os ricos de publicar jornais e para os capitalistas de
açambarcar a imprensa, o que na prática conduziu em todos os
países, sem excluir os mais liberais, à venalidade da imprensa.
O governo operário e camponês entende por liberdade de
imprensa a libertação da imprensa do jugo do capital, a
passagem para propriedade do Estado das fábricas de papel e das
tipografias, a atribuição a cada grupo de cidadãos que atinja
um determinado número (por exemplo 10.000) do direito à
utilização de uma certa parte dos stocks de papel e da
correspondente mão-de-obra para a impressão (9).
Lembrando, no decorrer do I Congresso da Internacional Comunista,
que uma das principais palavras de ordem da democracia
pura defendida pela burguesia era precisamente a
liberdade de imprensa, Lénine acentuava que os
operários sabem também, e os socialistas de todos os países
reconheceram-no milhões de vezes, que esta liberdade é um logro
enquanto as melhores tipografias e as grandes reservas de papel
se encontrarem nas
mãos dos capitalistas e enquanto existir o poder do capital
sobre a imprensa, que se manifesta em todo o mundo tanto mais
clara, nítida e cinicamente quanto mais desenvolvidos se
encontrarem a democracia e o regime republicano, como, por
exemplo, na América (10).
4. O estilo do trabalho e o estilo da prosa
Parece-nos útil e interessante evocar alguns episódios e reter
algumas opiniões de Lénine expressas ao longo do seu contacto
próximo com a produção da imprensa partidária. Ele mostra ter
do jornal uma concepção dinâmica e combativa, singularmente
actual, conciliando o rigor ideológico e político com a
vivacidade jornalística.
A não publicação pelo Pravda de uma determinada
notícia, entretanto divulgada pelo jornal dos mencheviques,
motivou uma áspera carta de Lénine à redacção: O que
é que isto quer dizer? Para que serve um jornal operário se
trata com tanto desprezo aquilo que interessa aos
operários? Para além da falha política, chama a
atenção para o aspecto puramente jornalístico da
questão, acentuando que o jornal não é uma coisa pela
qual o leitor apenas passa a vista e na qual o autor lança
apressadamente as suas reflexões. Um jornal deve ele próprio
procurar, encontrar a tempo e publicar no momento oportuno os
materiais essenciais. Um jornal deve procurar e encontrar os
contactos de que tem necessidade (11).
Por mais de uma vez considerou a monotonia como uma
inimiga da imprensa. Em 1901, numa carta a Plekhanov, pedia-lhe
que redigisse para o Iskra pequenos artigos (Lénine era
contrário às longas prosas nos jornais, reservando-as para as
revistas) sobre temas económicos, nem que fosse apenas uma vez
por outra, sublinhando: Esperamos sinceramente que nos
ajude, senão o Iskra arrisca-se a tornar-se monótono
(12).
Anos mais tarde, respondendo a uma carta do Nievskaia Zvezda
(13) na qual os próprios jornalistas se queixavam da
monotonia, Lénine comentava que esta se torna
inevitável enquanto não se der o devido lugar à
polémica. Ao iludir as «questões
espinhosas», o Zvezda e o Pravda tornam-se
secos e monótonos, pouco interessantes e pouco combativos.
Defende que um órgão socialista deve lançar a
polémica, levantando as questões em vez de se limitar a
uma posição defensiva. Sublinhando ser pernicioso deixar ao
adversário a iniciativa de tomar posição sobre as
divergências, adverte: um jornal que se limita a ir a
reboque está perdido (...). A monotonia e o atraso são
incompatíveis com o jornalismo.
Nas suas cartas ao Pravda incita frequentemente os
jornalistas a serem mais batalhadores e estabelece comparações
com a imprensa rival: O Loutch combate com furor,
com histeria, abandonando desavergonhadamente os seus
princípios. O Pravda, para o humilhar, assume um ar
sério, afectado, e pura e simplesmente não luta! Tem isto
alguma coisa a ver com o marxismo? Não é verdade que Marx sabia
aliar a luta mais apaixonada, mais intrépida e mais implacável
a um perfeito espírito de princípio? (14).
Lénine considerava que o ardor no combate jornalístico não
devia pôr em causa a fidelidade aos princípios. Mas também era
preciso adequar a linguagem e o estilo ao conteúdo.
Comentando um artigo que lhe fora enviado para apreciação,
escrevia ele ao autor: Em minha opinião o tema está bem
escolhido e convenientemente tratado, mas a redacção parece-me
insuficiente. Contém demasiada - como dizer? - «agitação», o
que não convém a um estudo sobre uma questão teórica
(15).
Noutra oportunidade, ao dar a opinião sobre um artigo por ele
considerado mau, criticava: É mordaz, mas não
mais do que isso. Por amor de Deus, um pouco menos de
mordacidade. É necessário expor os argumentos com mais calma e
insistir na verdade de uma maneira mais
detalhada, mais simples (16).
5. Portugal: O fascismo e a imprensa clandestina
A acção de Marx, Engels e Lénine no que se refere à imprensa
revolucionária (nas condições da luta clandestina ou noutras)
constituíu uma preciosa fonte de ensinamentos e experiências
para o movimento comunista internacional e para todos os que se
empenham no combate a regimes ditatoriais ou lutam pelo
aprofundamento da democracia e pelo fim da exploração.
Em Portugal, foi em 24 de Junho de 1926 que pela primeira vez os
jornais inseriram a célebre menção Este número foi
visado pela Comissão de Censura, ainda que só em 1933,
após seis anos de subordinação ao Ministério da Guerra,
tivesse sido criada uma Direcção-Geral dos Serviços de
Censura, no âmbito do Ministério do Interior.
Oportunamente a censura desaparecerá e todas as liberdades
públicas serão restabelecidas, assegurava em entrevista
ao Mundo de 13 de Julho de 1926 o general Carmona, que
três dias antes substituira o general Gomes da Costa na chefia
do movimento do 28 de Maio (17). Mas a oportunidade
nunca veio a surgir, nem mesmo quando, mais de quarenta anos
depois, o pretenso liberal Marcelo Caetano
substituiria as palavras censura por exame
prévio e cortado por proibido,
naquilo a que alguém chamaria a reforma dos carimbos
(18).
A luta contra a censura seria uma das constantes da luta mais
geral contra o regime, tanto mais que representava uma das suas
faces mais odiosas. Tão odiosa que, em público, até os seus
mais fieis servidores na imprensa se sentiam, por vezes,
nomeadamente nos últimos anos do regime, na obrigação de a
criticar, mesmo que apenas perante audiências restritas,
chegando-se ao ponto de, por exemplo, Barradas de Oliveira,
director do oficioso Diário da Manhã, ter chamado à
censura forma grosseira, declarada, impudente da
intervenção do Estado (19).
É no contexto da resistência contra a censura e da luta mais
geral contra o fascismo que se insere a acção da imprensa
clandestina, cuja história e cuja acção são parte
inseparável do combate desenvolvido durante décadas. Um combate
a que não faltam heróis e mártires que na luta pela liberdade
sacrificaram a própria vida, como foi o caso de José Moreira,
responsável pelo aparelho de imprensa do PCP na segunda metade
dos anos quarenta, torturado pela PIDE até à morte sem prestar
nenhuma informação, e que um dia escreveu, lapidarmente:
Uma tipografia clandestina é o coração da luta popular.
Um corpo sem coração não pode viver.
Os jornais clandestinos surgiram ou tiveram particular
desenvolvimento nos períodos de ascenso da luta popular. A
partir do início da década de sessenta, com o eclodir da guerra
colonial, o agravamento das contradições do regime e a
intensificação e o alargamento da luta de massas (a que se
devem juntar as novas possibilidades técnicas de impressão), os
jornais clandestinos ganharam um importante impulso, provindos,
para além da imprensa do PCP, de sectores tão diversos como os
grupos esquerdistas, o núcleo do que viria a ser o Partido
Socialista, os católicos progressistas e estruturas diversas de
natureza sindical, estudantil e de carácter unitário.
De uma maneira geral, tratou-se de jornais de vida efémera e
publicação descontínua, muitas vezes feitos no estrangeiro e
com pouca intervenção no dia-a-dia da situação nacional,
desprovidos dos meios organizativos que possibilitassem uma
produção contínua e uma chegada fácil ao seu potencial
público. A verdade é que a vida de um jornal clandestino está
directamente condicionada por um enquadramento em que há que ter
em conta factores essenciais como o aparelho técnico e a
ligação às massas.
Um jornal clandestino desligado de uma organização forte e
coesa, naturalmente também ela clandestina (ou essencialmente
clandestina), está votado ao malogro. Não tem defesas nem cobertura,
não tem protecção para o seu aparelho técnico, não tem meios
humanos e vínculos orgânicos que o façam chegar às massas.
Vive isolado, sem ultrapassar um reduzido círculo de leitores -
e, necessariamente, vive pouco. Foi o que aconteceu com a maior
parte da imprensa clandestina durante o fascismo.
6. O Avante! - órgão central do PCP
Compreende-se assim que tenha sido o Avante!, órgão
central do PCP (o único partido político antifascista existente
durante o quase meio século de ditadura em Portugal), o jornal
clandestino de maior duração, divulgação e influência ao
longo desse negro período, sendo mesmo internacionalmente
considerado o jornal que, em todo o mundo, durante mais tempo
resistiu com êxito às duras condições da clandestinidade.
O primeiro número do jornal surgiu em 15 de Fevereiro de 1931,
na sequência de uma importante reorganização do Partido
iniciada dois anos antes. Os dez anos seguintes caracterizaram-se
por uma grande irregularidade de publicação, que por cinco
vezes foi interrompida e retomada. Era o reflexo das debilidades
do próprio Partido, ainda impreparado para resistir à
repressão.
Houve nesse período um ano em que a citada impreparação se
traduziu numa sobrevalorização das capacidades próprias e numa
não menos clara subestimação dos obstáculos a vencer: em
1937, apesar das dificuldades orgânicas do Partido motivadas
pelos sucessivos golpes da polícia e pela falta de quadros
provados e experientes, o jornal passou de mensal a semanal,
atingindo os 10.000 exemplares de tiragem.
Consumidas quase todas as forças da organização nessa tarefa,
quando, passados alguns meses, na sequência de uma série de
prisões, a repressão atingiu o aparelho técnico, não houve
capacidade de resposta e a publicação foi interrompida durante
cerca de dois anos.
O jornal reaparece em Agosto de 1941, no quadro de uma
reorganização que finalmente dotaria o PCP dos meios
organizativos e humanos e da orientação política capazes de
lhe permitirem enfrentar com êxito as perseguições policiais e
de dirigir a luta contra a ditadura e pela instauração da
democracia.
A existência, sempre em território nacional, de aparelho
técnico próprio (extensivo a O Militante, boletim de
organização, e a outras edições do partido e de carácter
unitário, no que se refere quer à composição e à impressão
quer à distribuição) permitiram que o jornal permanecesse
desde então incólume perante as arremetidas policiais. Por
várias vezes houve tipografias clandestinas localizadas e
assaltadas, mas logo uma outra entrava em funcionamento,
assegurando assim que o contacto com os leitores não fosse
interrompido.
Ao longo dos anos, mais de 80 casas - andares ou vivendas
aparentemente normais - foram em todo o país
utilizadas como local de produção do Avante!. O jornal
publicava-se em papel-bíblia, com quatro ou seis páginas de
formato A-4 (com algumas variações), composto manualmente e
impresso através do processo do prelo imortalizado no célebre
desenho de José Dias Coelho.
Lidos hoje, com a lupa do historiador ou na perspectiva do
simples curioso das coisas do passado recente, o Avante!
e outros jornais clandestinos apresentam-se como uma fonte
insubstituível para o conhecimento da situação social e
económica no país, da política do fascismo e da luta contra
ele. Nas suas páginas surge tudo aquilo que a censura e a falta
das liberdades em geral impedia que por outra forma fosse tornado
público: a denúncia da repressão e dos crimes fascistas, a
exploração dos trabalhadores, as greves e outras lutas nas
fábricas, nos campos, nos escritórios e nas escolas, a
actividade do partido e dos movimentos e organizações
unitárias, o desmascaramento da política governamental, assim
como a acção do imperialismo, a luta de libertação dos povos,
a solidariedade internacionalista, etc..
Mas o órgão central do PCP não se limitou a informar e a
formar: tomando ele próprio parte activa no trabalho militante e
na movimentação popular, apelava e dava sentido à luta,
apontava caminhos, circulava de mão em mão funcionando como
vínculo e veículo de laços orgânicos e ideológicos,
integrava-se no trabalho organizativo, contribuindo para o
alargamento, a coesão e a operacionalidade do colectivo
partidário e ajudando à mobilização das massas, à
convergência dos objectivos, à unidade na acção e ao
fortalecimento e implantação do Partido. Tratava-se de levar à
prática a concepção do jornal revolucionário não apenas
enquanto propagandista e agitador, mas também enquanto
organizador colectivo.
Com o derrube do fascismo e a conquista da democracia,
transformaram-se profundamente o contexto político, as
condições de trabalho, os contornos jornalísticos e os
objectivos editoriais do Avante!, assim como de O
Militante. Alteraram-se a sua vida e a sua luta, tal como
anteriormente inseparáveis da vida e da luta do Partido, mas
permanece a sua identidade (tal como a do Partido) enquanto
jornais revolucionários empenhados na transformação da
sociedade.
A situação tornou-se muito diferente. No entanto, a evolução
da comunicação social, em íntima ligação com a evolução
económica, política e cultural, concede hoje particular
actualidade, em vários aspectos, a muitos dos traços
distintivos da imprensa do Partido anterior ao 25 de Abril,
continuando a exigir dela - no quadro de uma tarefa pela qual
todo o colectivo partidário é responsável - a complexa
missão de simultaneamente informar e esclarecer, denunciar e
combater, divulgar e propor, mobilizar e organizar. Voltaremos a
este tema.
Notas:
(1) Karl Marx. Biografia, Edições Avante!
- Edições Progresso, Lisboa - Moscovo, 1983, p. 194.
(2) (3) Ob. Cit., p. 191 e p. 193.
(4) V.I. Lénine, Que Fazer?, in Obras Escolhidas
em seis tomos, Edições Avante! - Edições
Progresso, Lisboa - Moscovo, 1984, tomo I, p. 200.
(5) V.I. Lénine, Por onde começar?, in Oeuvres,
Editions Sociales - Editions du Progrés, Paris - Moscou,
1977, t. 5, p. 19.
(6) Socialistas-revolucionários: partido pequeno-burguês cujos
dirigentes, depois da revolução de Fevereiro, fizeram parte do
Governo Provisório, vindo mais tarde a opor-se frontalmente ao
poder soviético. Mencheviques: representavam a facção
minoritária entre os comunistas (daí o seu nome, em
contraposição aos bolcheviques, maioritários, segundo as
palavras correspondentes em russo), tendo também participado no
Governo Provisório.
(7) V.I. Lénine, Como assegurar o êxito da Assembleia
Constituinte? (A Propósito da Liberdade de Imprensa), in Oeuvres,
t. 25, pp. 407-412.
(8) V.I. Lénine, A Aliança da Mentira, in Oeuvres,
t. 24, pp. 112-115.
(9) V.I. Lénine, Projecto de Resolução sobre a Liberdade
de Imprensa, in Oeuvres, t. 26, pp. 294-295.
(10) V.I. Lénine, Teses e Relatório sobre a Democracia
Burguesa e a Ditadura do Proletariado (I Congresso da
Internacional Comunista, Março de 1919), in Obras Escolhidas
em três tomos, Edições Avante! - Edições
Progresso, Lisboa - Moscovo, 1979, t. 3, pp. 78-79.
(11) V.I. Lénine, in Oeuvres, t. 35, pp. 54-55.
(12) V.I. Lénine, in Oeuvres, t. 36, pp. 88-89.
(13) V.I. Lénine, in Oeuvres, t. 35, pp. 31-33. O Nievskaia
Zvezda (A Estrela do Neva) era um jornal
bolchevique que se publicou em 1912 em Petersburgo.
(14) V.I. Lénine, Oeuvres, t. 36, p. 187. O Louch
(O Raio) era um jornal menchevique que se publicou em
Petersburgo em 1912 e 1913.
(15) Ibidem.
(16) V.I. Lénine, in Oeuvres, t. 35, p. 115.
(17) Cit. In Alberto Arons de Carvalho, A Censura e as Leis
de Imprensa, Lisboa, Seara Nova, 1973, pp. 41-42.
(18) A expressão é de Raul Rego. Cf. Teses ao 3º Congresso
da Oposição Democrática, Seara Nova, 1974, p. 137.
(19) Cf. Curso de Jornalismo, Estudos de Ciências
Políticas e Sociais, Junta de Investigação do Ultramar,
Lisboa, 1963, p. 171.
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Os media em Portugal