III
Literatura socialista e comunista


1. O socialismo reaccionário

c) O socialismo alemão ou [o socialismo] «verdadeiro»

A literatura socialista e comunista da França, que surgiu sob a pressão de uma burguesia dominante e que é a expressão literária da luta contra esta dominação, foi introduzida na Alemanha num tempo em que a burguesia iniciava a sua luta contra o absolutismo feudal.

Filósofos, meios-filósofos e «belos espíritos» alemães apoderaram-se avidamente desta literatura, esquecendo apenas que com a imigração destes escritos de França não imigraram ao mesmo tempo para a Alemanha as relações de vida francesas. Face às relações alemãs a literatura francesa perdeu todo o significado prático imediato e assumiu uma feição puramente literária. Tinha de aparecer como especulação* ociosa sobre a realização da essência humana. Assim, para os filósofos alemães do século XVIII as reivindicações da primeira Revolução Francesa só tinham o sentido de reivindicações da «razão prática» (47) em geral, e as expressões da vontade da burguesia revolucionária francesa significavam aos seus olhos as leis da vontade pura, da vontade como esta tem de ser, da vontade verdadeiramente humana.

* Na edição de 1848 acrescenta-se: acerca da sociedade verdadeira. (N. da Ed.)

O trabalho dos literatos alemães consistiu exclusivamente em pôr as novas ideias francesas de acordo com a velha consciência filosófica que era a deles, ou antes, em apropriar-se das ideias francesas a partir do seu ponto de vista filosófico.

Esta apropriação aconteceu do mesmo modo por que uma pessoa se apropria de uma língua estrangeira — pela tradução.

É sabido que os monges escreveram hagiografias católicas insípidas sobre os manuscritos em que estavam registadas as obras clássicas do velho tempo pagão. Os literatos alemães procederam inversamente com a literatura profana francesa. Escreveram os seus disparates filosóficos por baixo do original francês. P. ex., por baixo da crítica francesa às relações de dinheiro escreveram «alienação [Entäußerung] da essência humana», por baixo da crítica francesa do Estado burguês escreveram «superação [Aufhebung] da dominação do abstractamente universal», etc.

O* subpor deste** palavreado filosófico aos desenvolvimentos franceses baptizaram eles de «filosofia da acção», socialismo verdadeiro», «ciência alemã do socialismo», «fundamentação filosófica do socialismo», etc.

* Na edição de 1848 acrescenta-se: este. (N. da Ed.)
** Na edição de 1848 acrescenta-se: do seu. (N. da Ed.)

A literatura socialisto-comunista francesa foi assim emasculada a preceito. E como nas mãos do Alemão deixou de exprimir a luta de uma classe contra outra, o Alemão ficou consciente de ter triunfado da «unilateralidade francesa», de ter defendido, em vez de necessidades verdadeiras, a necessidade da verdade, e em vez dos interesses do proletário, os interesses da essência humana, do homem em geral, do homem que não pertence a nenhuma classe, que nem sequer pertence à realidade, que pertence apenas ao céu nebuloso da fantasia filosófica.

Este socialismo alemão, que tomou tão a sério, e tão solenemente, os seus canhestros exercícios escolares, e que, qual vendedor de feira, tão alto os trombeteou, foi entretanto perdendo pouco a pouco a sua inocência pedante.

A luta da burguesia alemã, nomeadamente da prussiana, contra os feudais e a realeza absoluta — numa palavra, o movimento liberal — tornou-se mais séria.

Foi assim oferecida ao socialismo «verdadeiro» a tão desejada oportunidade de contrapor ao movimento político as reivindicações socialistas, de arremessar contra o liberalismo, contra o Estado representativo, contra a concorrência burguesa, a liberdade burguesa de imprensa, o direito burguês, a liberdade e a igualdade burguesas, os anátemas legados, e de pregar à massa popular que nada tinha a ganhar, antes tudo a perder, com este movimento burguês. O socialismo alemão esqueceu em devido tempo que a crítica francesa, da qual era um eco sem espírito, pressupunha a sociedade burguesa moderna com as correspondentes condições materiais de vida e a adequada constituição política, pressupostos esses por cuja conquista se tratava então de lutar na Alemanha.

Serviu aos governos alemães absolutos — com o seu cortejo de padres, mestres-escolas, fidalgotes e burocratas — de espantalho desejado contra a burguesia ameaçadoramente ascendente.

Formou o doce complemento dos amargos golpes de chicote e balas de espingarda com que esses mesmos governos cuidaram* das insurreições de operários alemães.

* Ao reproduzirem esta Secção em 1850 na Neue Rheinisch Zeitung. Politische-+okonomie Revue. Marx e Engels substituíram por: responderam. Cf. MEGA, vol. I/10, p. 986. (N. da Ed.)

Se o socialismo «verdadeiro» desta maneira se tornou uma arma na mão dos governos contra a burguesia alemã, representou também imediatamente um interesse reaccionário — o interesse da Pfahlbürgerschaf alemã. Na Alemanha é a pequena burguesia [Kleinbürgertum], legada pelo século XVI, que desde esse tempo, de formas diversas, está sempre a vir ao de cima, que constitui a base social propriamente dita das situações existentes.

* Na edição de 1888: filisteus. (N. da Ed.)

A sua manutenção é a manutenção das situações alemãs existentes. Da dominação industrial e política da burguesia teme o declínio seguro, por um lado, em consequência da concentração do capital, por outro lado, pelo advento de um proletariado revolucionário. O socialismo «verdadeiro» pareceu-lhe matar dois coelhos com uma cajadada. Espalhou-se como uma epidemia.

A veste tecida de especulativas teias de aranha, bordada a flores de retórica de belos espíritos, embebida no orvalho sufocantemente sentimental da alma, em que os socialistas alemães envolveram a sua meia dúzia de ossudas «verdades eternas», esta veste extravagante só veio multiplicar o [bom] escoamento da sua mercadoria entre este público.

Pelo seu lado, o socialismo alemão reconheceu cada vez mais a sua vocação para ser o representante presumido desta Pfahlbürgerschaft (38).

Proclamou a nação alemã como a nação normal e o Spießbürger* (48) alemão como o homem normal. Deu a todas as infâmias deste [Spießbürger] um sentido socialista, oculto, superior, pelo qual elas significavam o seu contrário. Ao entrar em cena directamente contra a orientação «grosseiramente destrutiva» do comunismo, ao anunciar a sua sublimidade imparcial acima de todas as lutas de classes, tirou a sua última consequência. Com muito poucas excepções, o que na Alemanha circula de escritos pretensamente socialistas e comunistas pertence ao âmbito desta literatura porca e debilitante**.

* Na edição de 1888: pequeno filisteu. (N. da Ed.) * A tempestade revolucionária de 1848 varreu toda esta orientação sórdida e tirou aos seus defensores o apetite para continuarem a brincar ao socialismo. O principal representante e o tipo clássico desta orientação é o senhor Karl Grün. (Nota de Engels à edição alemã de 1890.)