III 1. O socialismo reaccionário c) O socialismo alemão ou [o socialismo] «verdadeiro» A literatura socialista e comunista da França, que surgiu sob a pressão de uma burguesia dominante e que é a expressão literária da luta contra esta dominação, foi introduzida na Alemanha num tempo em que a burguesia iniciava a sua luta contra o absolutismo feudal.
* Na edição de 1848 acrescenta-se: acerca da sociedade verdadeira. (N. da Ed.)
O trabalho dos literatos alemães consistiu exclusivamente em pôr as novas ideias francesas de acordo com a velha consciência filosófica que era a deles, ou antes, em apropriar-se das ideias francesas a partir do seu ponto de vista filosófico.
* Na edição de 1848 acrescenta-se: este. (N. da Ed.) A literatura socialisto-comunista francesa foi assim emasculada a preceito. E como nas mãos do Alemão deixou de exprimir a luta de uma classe contra outra, o Alemão ficou consciente de ter triunfado da «unilateralidade francesa», de ter defendido, em vez de necessidades verdadeiras, a necessidade da verdade, e em vez dos interesses do proletário, os interesses da essência humana, do homem em geral, do homem que não pertence a nenhuma classe, que nem sequer pertence à realidade, que pertence apenas ao céu nebuloso da fantasia filosófica.
* Ao reproduzirem esta Secção em 1850 na Neue Rheinisch Zeitung. Politische-+okonomie Revue. Marx e Engels substituíram por: responderam. Cf. MEGA, vol. I/10, p. 986. (N. da Ed.)
Se o socialismo «verdadeiro» desta maneira se tornou uma arma na mão dos governos contra a burguesia alemã, representou também imediatamente um interesse reaccionário o interesse da Pfahlbürgerschaf alemã. Na Alemanha é a pequena burguesia [Kleinbürgertum], legada pelo século XVI, que desde esse tempo, de formas diversas, está sempre a vir ao de cima, que constitui a base social propriamente dita das situações existentes.
* Na edição de 1888: filisteus. (N. da Ed.)
A sua manutenção é a manutenção das situações alemãs existentes. Da dominação industrial e política da burguesia teme o declínio seguro, por um lado, em consequência da concentração do capital, por outro lado, pelo advento de um proletariado revolucionário. O socialismo «verdadeiro» pareceu-lhe matar dois coelhos com uma cajadada. Espalhou-se como uma epidemia.
* Na edição de 1888: pequeno filisteu. (N. da Ed.)
* A tempestade revolucionária de 1848 varreu toda esta orientação sórdida e tirou aos seus defensores o apetite para continuarem a brincar ao socialismo. O principal representante e o tipo clássico desta orientação é o senhor Karl Grün. (Nota de Engels à edição alemã de 1890.)
Literatura socialista e comunista
Filósofos, meios-filósofos e «belos espíritos» alemães apoderaram-se avidamente desta literatura, esquecendo apenas que com a imigração destes escritos de França não imigraram ao mesmo tempo para a Alemanha as relações de vida francesas. Face às relações alemãs a literatura francesa perdeu todo o significado prático imediato e assumiu uma feição puramente literária. Tinha de aparecer como especulação* ociosa sobre a realização da essência humana. Assim, para os filósofos alemães do século XVIII as reivindicações da primeira Revolução Francesa só tinham o sentido de reivindicações da «razão prática» (47) em geral, e as expressões da vontade da burguesia revolucionária francesa significavam aos seus olhos as leis da vontade pura, da vontade como esta tem de ser, da vontade verdadeiramente humana.
Esta apropriação aconteceu do mesmo modo por que uma pessoa se apropria de uma língua estrangeira pela tradução.
É sabido que os monges escreveram hagiografias católicas insípidas sobre os manuscritos em que estavam registadas as obras clássicas do velho tempo pagão. Os literatos alemães procederam inversamente com a literatura profana francesa. Escreveram os seus disparates filosóficos por baixo do original francês. P. ex., por baixo da crítica francesa às relações de dinheiro escreveram «alienação [Entäußerung] da essência humana», por baixo da
crítica francesa do Estado burguês escreveram «superação [Aufhebung] da dominação do abstractamente universal», etc.
O* subpor deste** palavreado filosófico aos desenvolvimentos franceses baptizaram eles de «filosofia da acção», socialismo verdadeiro», «ciência alemã do socialismo», «fundamentação filosófica do socialismo», etc.
** Na edição de 1848 acrescenta-se: do seu. (N. da Ed.)
Este socialismo alemão, que tomou tão a sério, e tão solenemente, os seus canhestros exercícios escolares, e que, qual vendedor de feira, tão alto os trombeteou, foi entretanto perdendo pouco a pouco a sua inocência pedante.
A luta da burguesia alemã, nomeadamente da prussiana, contra os feudais e a realeza absoluta numa palavra, o movimento liberal tornou-se mais séria.
Foi assim oferecida ao socialismo «verdadeiro» a tão desejada oportunidade de contrapor ao movimento político as reivindicações socialistas, de arremessar contra o liberalismo, contra o Estado representativo, contra a concorrência burguesa, a liberdade burguesa de imprensa, o direito burguês, a liberdade e a igualdade burguesas, os anátemas legados, e de pregar à massa popular que nada tinha a ganhar, antes tudo a perder, com este movimento burguês. O socialismo alemão esqueceu em devido tempo que a crítica francesa, da qual era um eco sem espírito, pressupunha a sociedade burguesa moderna com as correspondentes condições materiais de vida e a adequada constituição política, pressupostos esses por cuja conquista se tratava então de lutar na Alemanha.
Serviu aos governos alemães absolutos com o seu cortejo de padres, mestres-escolas, fidalgotes e burocratas de espantalho desejado contra a burguesia ameaçadoramente ascendente.
Formou o doce complemento dos amargos golpes de chicote e balas de espingarda com que esses mesmos governos cuidaram* das insurreições de operários alemães.
A veste tecida de especulativas teias de aranha, bordada a flores de retórica de belos espíritos, embebida no orvalho sufocantemente sentimental da alma, em que os socialistas alemães envolveram a sua meia dúzia de ossudas «verdades eternas», esta veste extravagante só veio multiplicar o [bom] escoamento da sua mercadoria entre este público.
Pelo seu lado, o socialismo alemão reconheceu cada vez mais a sua vocação para ser o representante presumido desta Pfahlbürgerschaft (38).
Proclamou a nação alemã como a nação normal e o Spießbürger* (48) alemão como o homem normal. Deu a todas as infâmias deste [Spießbürger] um sentido socialista, oculto, superior, pelo qual elas significavam o seu contrário. Ao entrar em cena directamente contra a orientação «grosseiramente destrutiva» do comunismo, ao anunciar a sua sublimidade imparcial acima de todas as lutas de classes, tirou a sua última consequência. Com muito poucas excepções, o que na Alemanha circula de escritos pretensamente socialistas e comunistas pertence ao âmbito desta literatura porca e debilitante**.