Presidência Portuguesa
da União Europeia
Uma oportunidade perdida


Em entrevista concedida a esta revista, no seu número anterior, tivemos a oportunidade de afirmar que "uma boa presidência portuguesa da União Europeia seria aquela que, sem deixar de ter em conta a agenda comunitária, conseguisse imprimir-lhe uma marca própria e, simultaneamente, conseguisse introduzir-lhe novas prioridades.

Sendo certo que essa marca e essas prioridades deveriam reflectir preocupações e anseios do país".

Ou seja, a presidência portuguesa só poderia por nós ser considerada uma boa presidência se, para além da normal gestão da agenda da União Europeia, lhe conseguisse imprimir uma direcção e lhe soubesse introduzir ingredientes consentâneos com os interesses do país.

Aliás, a rotatividade das presidências só faz sentido na exacta medida em que através dela são tidos em conta os naturais interesses contraditórios e as perspectivas diferenciadas que na UE se fazem sentir.

Hoje confirmamos não ter sido aquele o entendimento do governo português.

E entendemos, por isso, que o governo falhou: porque escamoteou, não indiciou respostas e muito menos resolveu problemas concretos e imediatos com que o país se depara no contexto de diferentes políticas comunitárias, ao ponto de ter ignorado no seu programa qualquer referência especial a uma efectiva promoção da coesão económica e social; mas também porque constatamos que, ao dar exclusivo seguimento àquela agenda comunitária, o fez, não raras vezes, no pior sentido.

Apressou-se, por exemplo, na abertura da Conferência Intergovernamental (CIG), com vista a preparar a nova revisão dos Tratados, mesmo se é certo que nada de bom para Portugal dela poderá resultar. Mostrou-se não só incapaz de suster a ofensiva desencadeada pelas grandes potências europeias como deu mostras de grande disponibilidade para subscrever orientações manifestamente lesivas do interesse nacional neste terreno. Acabou mesmo por embarcar e aplaudir posições assumidas exactamente por aqueles que, à margem e em manifesto desrespeito pela presidência portuguesa, foram gerindo a agenda institucional ao sabor dos seus próprios interesses e perspectivas, ao ponto de ser por eles manifestamente ultrapassado. A cimeira franco-alemã em vésperas do Conselho de Santa Maria da Feira, as afirmações do ministro alemão dos negócios estrangeiros e o discurso, em Berlim, do presidente francês são disso prova evidente.

Ainda assim e no tocante à revisão dos Tratados e mesmo se quase tudo foi transferido para a presidência francesa, subsistem motivos de inquietação quanto a algumas decisões adoptadas na cimeira da Feira. É o que decorre, por exemplo, do facto de se ter inscrito na agenda e de se ter passado a falar de "cooperação reforçada", no singular. Se tínhamos já profundas reservas quanto às até então chamadas "cooperações reforçadas", tendo em conta a sua profunda conotação com a criação dum "núcleo duro", duma "vanguarda" ou dum "grupo pioneiro" - e , portanto, com uma Europa a várias velocidades, comandada por um directório político - a adopção desta nova formulação - porque sem dúvida muito mais indiciadora de tais propósitos - reforça essas dúvidas e suscita-nos a mais profunda apreensão quanto ao tipo de "construção europeia" em que as grandes potências apostam.

Por seu lado, e de forma irresponsável e cega, o governo, através da presidência portuguesa, deu início às negociações sobre o alargamento quando tudo apontaria para a necessidade premente de se efectuar uma prévia e aprofundada análise das respectivas consequências e o estudo sério e objectivo das formas de as obviar.

Como temos referido, não temos objecções de princípio à sua concretização.

Mas a atenta análise e a definição de respostas objectivas e seguras para as suas incidências, a todos os níveis, apresentava-se-nos como indispensável, inadiável e, portanto, prioritário.

Entretanto, deu especial enfoque à cimeira extraordinária de Lisboa.

O problema do emprego e, em geral, a situação social que hoje se verifica na generalidade dos Estados-membros bem justificariam, com efeito, uma mudança de agulha neste domínio. E suscita, de resto, as mais legítimas preocupações, mesmo quando e por curtos períodos, se assiste a algumas melhorias. E assim é porque a taxa de desemprego se mantém a níveis bastante elevados - quase 10%; porque se agrava permanentemente o desemprego de longa duração - quase metade do desemprego total; e porque são extremamente baixos os níveis de emprego - que, em média, não ultrapassam os 61% e os quais, no respeitante às mulheres, não vão mesmo além dos 51%.

Elementos estes que são ainda acompanhados e agravados com a crescente precariedade do emprego. E que dão nota, em definitivo, do nível de degradação social a que se chegou, a qual é ainda evidenciada, de forma dramática, pelos cerca de 50 milhões de excluídos que podemos encontrar na União Europeia.

Impunha-se, por tudo isso, uma forte vontade política para alterar definitivamente uma tal situação, atacando as suas causas mais profundas, alterando radicalmente orientações e políticas dominantes.

Porém mostrou-se redundante e inconsequente em domínios que adoptou como prioritários: inicialmente definida como de promoção do emprego esta cimeira resultou, no essencial e finalmente, na repetição de orientações neo-liberais, já gastas de tão repetitivas na liberalização sem peias e na flexibilização dos mercados de trabalho, que exactamente estão na base dos actuais dramas sociais com que a Europa se confronta; e tudo isto em nome da modernidade e da sociedade da informação e apesar de os governos socialistas e social-democratas pontificarem na grande maioria dos Estados membros da União Europeia, incluindo os quatro "grandes" (Alemanha, França, Reino Unido e Itália).

Também a realização da cimeira Europa/África, no Cairo, mereceu do governo particular destaque.

Consideramos positivo que, depois de tantas duvidas e hesitações, tenha sido possível realizá-la.

Mas era indispensável ir mais além e assegurar a adopção de resultados capazes de melhorar as relações entre os dois continentes e contribuir para a resolução dos enormes problemas que afectam o continente africano.

Tal não se verificou, por manifesta falta de vontade política da parte europeia, que se bastou com a tradicional fotografia de família e com conclusões a todos os títulos insatisfatórios.

Tratou-se, manifestamente, de um verdadeiro diálogo de surdos e, portanto, de mais uma oportunidade perdida.

Finalmente tivemos a cimeira da Feira.

Não trouxe quaisquer novidades. Os principais temas - do alargamento à CIG, passando pela Carta dos Direitos Fundamentais - transitaram para a cimeira de Nice.

Essa a razão porque o governo sentiu a necessidade de inventar um acordo de última hora relativo à calendarização do pacote fiscal que, no essencial, se limita a remeter para um acordo futuro a resolução desta matéria.

Um puro acto de ilusionismo, já que não só remete para um outro acordo, a nove anos de distância, como este estará ainda condicionado a uma duvidosa aceitação por parte de países terceiros, precisamente os actuais paraísos fiscais. Pelo que, significativamente, ele foi especialmente festejado por quem nunca o desejou!

Mas, entretanto e em nome da conclusão do mercado interno e da continuidade da cimeira extraordinária de Lisboa, novas pressões no sentido da aceleração dos processos de liberalização e de desregulamentação do mercado de trabalho se fizeram sentir; e, ao serem aprovadas as "grandes orientações das políticas económicas para 2000", aceitou-se mesmo o reforço e a antecipação de constrangimentos decorrentes do pacto de estabilidade, o que faz prever novos e acrescidos problemas, nomeadamente e ainda no domínio social.

Compreende-se, assim, a importante manifestação que o movimento sindical promoveu por ocasião do Conselho da Feira, a qual, pelas várias dezenas de milhar de trabalhadores que envolveu, se transformou, seguramente, num dos factos mais marcante desta cimeira.

Par além de que merece particular nota de desaprovação a tendência clara para a militarização da União Europeia, bem evidenciada pela orientação também saída da cimeira da Feira no sentido da implementação de capacidades militares próprias em clara associação com a NATO, mesmo se é certo que a OSCE continua ser o quadro mais adequado para o desenvolvimento dum sistema de segurança pan-europeu e se a prevenção e o tratamento civil das crises deverão prevalecer sobre quaisquer intuitos intervencionistas.

Joaquim Miranda


Portugal e a CE - Nš 36 - Julho/Setembro de 2000