Intervenção de Tiago Vieira, Sociólogo, Mesa Redonda «Plataformas digitais – tecnologia, trabalho e exploração»

Uma visão sociológica do trabalho nas plataformas

Boa tarde

Antes de começarmos quero saudar esta iniciativa do PCP. A temática que hoje tratamos é e será cada vez mais de grande actualidade por dizer respeito a um contingente cada vez maior de trabalhadores. É de grande importância que se possa reflectir sobre como as plataformas digitais vieram alterar o panorama das relações laborais.

Dito isto, permitam-me desafiar a vossa lógica com uma afirmação porventura polémica: De forma crescente vem-se falando do “trabalho por plataformas”, mas o “trabalho por plataformas” não existe.

Ou seja, no essencial, o que existe são actividades remuneradas que no lugar de serem intermediadas por uma entidade onde os seres humanos são a face mais visível, são-no por entidades onde a presença humana está camuflada por uma plataforma digital que funciona de forma aparentemente automática e neutra. Isto pode dizer respeito de um número cada vez maior, que cobre gente tão diversa como: taxistas, distribuidores de comida, trabalhadores da limpeza, designers, advogados, ou até - imagine-se - carpideiras para um funeral.

De forma gradual, as plataformas digitais estão a ocupar o espaço que de há alguns anos a esta parte era ocupado pelas empresas de aluguer de mão-de-obra - mais conhecidas por empresas de trabalho temporário ou ETT’s - só que oferecendo condições de trabalho ainda piores.

Como diz o nosso povo: no fundo do poço havia ainda um alçapão.

Bem sei que isto pode tirar algum do glamour que os deslumbrados pela chamada transição digital vêm nas plataformas, mas são os próprios relatórios da comissão europeia que colocam o assunto nestes termos. E faz sentido que assim seja.

Reparem: até aqui, uma entidade patronal requeria duma entidade intermediária (a ETT) a prestação de um serviço, e esta entidade contactava o trabalhador para o prestar. No final, a entidade patronal pagava o salário do trabalhador e uma verba à ETT por lhe ter encontrado aquele trabalhador “descartável”.

Com as plataformas digitais, aquilo que já era mau ficou ainda pior. Agora, quem quer um serviço prestado - seja uma entidade patronal como uma empresa, seja um cliente individual - limita-se a aceder a uma aplicação digital e essa aplicação recruta o trabalhador que prestará o serviço.

Parece simples, mas - na verdade - é bastante mais complexo do que aparenta.

Escuso-me a entrar em aspectos legais (há gente mais qualificada do que eu para o fazer), mas chamo a vossa atenção para cinco aspectos subjacentes a este aparente automatismo de querer algo e aparecer alguém para o fazer.

Comecemos pelo óbvio.

1) Cada vez que alguém quer um serviço prestado paga por ele. Ou seja, se um de nós decidir - por exemplo - encomendar comida por intermédio de uma aplicação digital pagará a comida que pede e, claro, um extra pelo serviço de lhe trazerem a comida a casa.

Como seria expectável, uma parte do que o cliente paga é para pagar ao trabalhador que nos trará a comida e outra parte à plataforma.

Uma das perversões do trabalho intermediado por plataformas digitais está aqui: regra geral, os trabalhadores que prestam o serviço são tratados como empresários a título individual, ou seja, são eles que pagam todos os custos associados ao trabalho - nomeadamente, os imensos custos combustível e equipamento (novo ou a sua reparação). Contas feitas, entre a fatia de leão com que ficam as plataformas e o que os trabalhadores gastam no mero processo de fazer o seu trabalho, sobra muito pouco rendimento líquido.

A isto acresce, para todos os que trabalham na rua, a ausência de coisas básicas como sejam um acesso a um local abrigado do frio ou da chuva, onde fazer uma pausa ou simplesmente esperar pela próxima tarefa, ou a mera possibilidade de utilizar uma casa-de-banho.

Isto leva-nos ao ponto 2.

2) O que acabo de descrever só é possível porque, regra geral, as plataformas se posicionam narrativa, legal e fiscalmente como meras intermediárias entre um cliente que quer um produto e um empresário-individual que lho leva.

Assim, as plataformas apresentam-se a si próprias como clientes (não entidades empregadoras) dos jovens empreendedores que fazem o seu caminho para o sucesso e a fortuna a entregar hamburguers de bicicleta em dias de chuva e frio, e a fazer das esquinas escuras a sua casa-de-banho!

Ironias à parte, reside aqui uma parte do problema (ou, se quisermos, do seu agravamento). Enquanto que as ETT’s estabelecem com os trabalhadores contratados uma relação de assalariado, as plataformas descartam qualquer responsabilidade, remetendo tudo para o dito trabalho independente ou por conta própria - como se queira chamar.

Isto traz-nos ao ponto 3.

3) A “chico-espertice” das plataformas é facilmente desmontada por um olhar atento à realidade quotidiana dos seus trabalhadores. Vejamos:

- Embora a plataforma seja “invisível” enquanto entidade patronal, é ela que factura o cliente final pelo serviço prestado;

- Apesar da sua aparente invisibilidade, sem ela, o cliente final não teria conseguido contactar o trabalhador que lhe presta o serviço

- No caso dos distribuidores de comida, são as plataformas que negoceiam (ou melhor, impõem) aos restaurantes as condições de distribuição e as tarifas associadas;

- Em grande parte dos casos, são as plataformas que determinam quando e onde os trabalhadores estão autorizados a trabalhar, podendo até terminar a sua relação com estes de forma unilateral e sem qualquer aviso prévio - só porque sim;

- Por último, são as plataformas que determinam a gestão da atribuição das tarefas laborais. E aqui é fundamental sublinhar: como estamos no contexto do trabalho independente, cada trabalhador recebe “à peça”, ou seja: se tiver tarefas atribuídas recebe, se não, não - mesmo que esteja 5 horas parado à frente dum restaurante no Saldanha à espera dum pedido.

A atribuição de tarefas leva-nos ao ponto 4.

4) A grande novidade que estas plataformas trazem consigo (embora esteja longe de ser um exclusivo seu) reside no que se vem chamado de “gestão algorítimica”. Trocando por miúdos, isto significa que o processo laboral - designadamente a atribuição de tarefas - é dirigido por via de complexíssimas fórmulas matemáticas onde se estabelecem os parâmetros que levam a que a prestação de serviço seja atribuída a um trabalhador em concreto e não aos demais.

Como seria expectável, estes parâmetros têm em conta exclusivamente aquilo que é do interesse da plataforma, ou seja, quão eficazmente o trabalhador está em condições de executar as tarefas que lhe são atribuídas.

Isto inclui aspectos que podemos chamar “neutros”: quão perto está o trabalhador do local em que o serviço é requerido; ou de que tipo de veículo dispõe para concretizar a tarefa de forma a que esta seja realizada sem sobrecarga de esforço e em tempo útil.

Mas inclui também - e sobretudo - aspectos que dizem respeito apenas ao interesse da plataforma.

Como bem alerta a socióloga inglesa Phoebe Moore, “a tecnologia espelha sempre as relações de poder do contexto em que é desenvolvida”.

Assim, sem espanto, vemos os algoritmos a premiar:
- em termos médios, quão rápido o trabalhador costuma realizar as tarefas;
- quais as avaliações que recebe dos clientes (sim, o cliente é transformado numa espécie de “chefe intermédio”!);
- quantas horas está o trabalhador disponível para estar ligado à plataforma para garantir que nenhum pedido fica por ser satisfeito, entre outros.

Isto traz-me ao 5º ponto.

5) Embora as plataformas jamais revelem no concreto em que consiste o seu algoritmo de atribuição de tarefas, em regra elas oferecem aos trabalhadores uma informação parcial sobre o seu desempenho individual, seja sob a forma de métricas simples, seja sob formas sofisticadas com pontos e outros artifícios.

O importante a reter é que - combinado com a total incerteza relativamente ao rendimento - esta medição constante do desempenho do trabalhador o induz a trabalhar sempre no limite das suas capacidades, investindo o máximo de si para obter êxito.

Marx diz n’ “O Capital” que há condições nas quais os trabalhadores podem ser levados a voluntariamente desejar aumentar a sua jornada diária de trabalho. Aqui se prova como isso não podia ser mais verdade.

A este fenómeno eu chamo de “auto-exploração”. Ela assume várias expressões:

- créditos contraídos pelos trabalhadores para comprar veículos ou outros equipamentos,

- trabalho consecutivo por horas, dias e semanas sem descanso (na distribuição de comida há gente a trabalhar 80 horas por semana!),

- e, adopção de práticas que violam as mais básicas regras de segurança individual e colectiva (passar sinais vermelhos, abusar de bebidas energéticas, etc).

Perante tudo isto, as plataformas encolhem os ombros, apontando para o estatuto de trabalho independente e acenando com rendimentos mensais altíssimos.

No entanto, se fizermos as contas às despesas e ao tempo de trabalho não remunerado (designadamente à procura de tarefas por realizar), veremos que muitos destes trabalhadores recebem bem abaixo do salário mínimo. Se fizéssemos as contas tendo como referente os contratos colectivos, a diferença seria por certo abissal!

Perante isto, hoje como sempre, a questão é: o que fazer?

Antes, porém, é útil termos presente que as plataformas alojam no seu seio um contigente de trabalhadores ultra-precariezado. Em muitos casos o recurso às plataformas teve como motivação a fuga ao desemprego ou a formas ainda mais abjectas de exploração, decorrentes da situação de muitos serem trabalhadores não documentados.

Relembrando Marx de novo: o capitalismo ofereceu à classe trabalhadora uma dupla liberdade, a liberdade de vender a sua força de trabalho a quem quiser, e a liberdade de perecer se não o fizer.

As empresas por detrás das plataformas perceberam-no como ninguém.

A sua ardilosa armadilha garante a quem tem de pagar as suas contas, por um lado, dinheiro fresco a cada quinze dias, e por outro, que não há limite para o tempo dedicado a trabalhar e, assim, ao que se pode ganhar.

Por isso, fugindo da precariedade, dos baixos salários, da miséria (no caso dos imigrantes não documentados), são muitos os trabalhadores que se entregam voluntariamente a índices de exploração que são absurdos de tão elevados.

Por isso, inverter esta situação exige, antes de mais, uma estratégia que assente numa acção não apenas dirigida às plataformas digitais, mas que tenha em conta o quadro laboral mais amplo: reforçando os direitos de quem trabalha e aumentando os rendimentos da maioria dos trabalhadores.

Sobre as plataformas em particular, a conformidade com a lei já existente e a garantia que no futuro os direitos dos trabalhadores não serão nivelados por baixo, exige que:

- se combata todas as situações de falso trabalho independente, convertendo em vínculos permanentes assalariados todos os casos onde seja manifesta a relação de dependência entre entidade patronal e o trabalhador (independentemente do meio que intermedeia o trabalho ser ou não digital) - não é por acaso que por essa Europa fora há cada vez mais decisões de tribunais a atestarem isto mesmo!

- exige também que esta transição deva garantir que o cumprimento de todas as disposições legais adjacentes: retribuição de acordo com o contrato colectivo, respeito por tempos de descanso, e acesso a ausências por baixa nas várias circunstâncias previstas na lei

- por último, mas não menos importante, em conformidade com a lei, exige que o processo de atribuição de tarefas seja transparente e objecto de negociação colectiva, ou seja, que os algoritmos não sejam caixas negras sobre os quais as estruturas representativas dos trabalhadores nada têm a dizer

Termino salientando que o problema não reside na tecnologia, mas na eterna questão de ao serviço de quem ela é colocada. Como disse Álvaro Cunhal:

“A história não pára e a humanidade segue. O grande problema é a direcção que ela seguirá. Aos homens cabe escolher e decidir.”

Obrigado pela vossa atenção.

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