Intervenção de Jerónimo de Sousa, Secretário-Geral do PCP, Sessão Pública «Comemorativa do Centenário de Nascimento de Bernardo Santareno»

Centenário de Nascimento de Bernardo Santareno

Ver vídeo

''

No dia do ano em que Bernardo Santareno, pseudónimo de António Martinho do Rosário, faria 100 anos de idade e quarenta anos após a sua morte, o PCP não podia deixar de homenagear, aqui, no espaço Vitória, um dos mais pujantes e singulares dramaturgos portugueses da segunda metade do século XX, cuja obra dramática soma 19 textos e, em alguns títulos, foi inovadora e a tocar o génio, como o reconhecem e evidenciam muitos dos seus pares e os críticos da literatura contemporânea que sobre ela se debruçaram.

Bernardo Santareno deixa entre o público que o leu, o público que viu a representação das suas peças, os seus amigos e companheiros de luta por uma sociedade livre da exploração, as saudades de um amigo, de um grande intelectual e também a determinação firme de continuarmos, como ele sempre fez ao longo da sua vida, a luta por uma sociedade mais justa, humana e fraterna.

O seu complexo misticismo, herdado de uma mãe fervorosamente católica, que o levará a frequentar o Seminário dos Olivais, e a influência determinante de um pai republicano laico, Joaquim Martinho do Rosário, considerado, em Santarém, uma lenda, um símbolo do combate pela Liberdade, sofrendo, por essa determinação, as agruras de quem ousava situar-se do lado justo da História, terão influência na forma como ele olha para a sociedade do seu tempo, para a miséria e o atraso que nos tolhia como povo.

O seu teatro é reflexo dessa maneira de reflectir e de encenar a opressão salazarista, o medo e a ignomínia, mas também os dias jubilosos do nosso Abril maior.

Na peça Português, Escritor, 45 Anos de Idade, Santareno porá nas falas do pai, a seguinte frase: “O nosso filho compreendeu o meu sacrifício. Tem as minhas ideias, vai continuar a minha luta...” Ainda, e sobre o pai, escreverá mais tarde: “O meu pai esteve detido em todas as cadeias políticas portuguesas. As suas detenções foram sempre injustas. Na prisão, foi espancado e conheceu a tortura, tudo por causa das suas convicções políticas. Nunca esquecerei as ideias e os princípios políticos que ele me incutiu, em prol da defesa da liberdade.”

Bernardo Santareno formou-se em medicina, na vertente de psicologia e medicina familiar e fez, desde logo, a opção de trabalhar até ao fim da sua vida junto dos pobres e dos excluídos, vítimas de uma sociedade repressora, intolerante e violenta, ao serviço dos ricos e dos mais poderosos.

Durante vários anos, e até à sua morte prematura (tinha 59 anos), optou por exercer a sua profissão de psicólogo social, trabalhando com pessoas cegas e junto de jovens no Instituto de Orientação Profissional, onde Fernanda Lapa o conheceu e o ajudou a iniciar o seu percurso, por dentro da realidade do teatro que então se fazia no Portugal cercado pelo medo e pela Censura.

Tinha já percorrido os Mares do Fim do Mundo, em navios da frota bacalhoeira, experiência que transportará também para o teatro, com a peça O Lugre. Dessa experiência humana, que muito o marcou, dirá: A deslocação aos mares da Terra Nova foi encarada por mim como uma ida para a guerra ou para a Legião Estrangeira.

A sua vida como dramaturgo começa, depois da publicação de 3 livros de poesia, quando António Pedro encena, em 1957, no Teatro Experimental do Porto, uma das suas primeiras peças: A Promessa.

Esta peça relata o drama de um jovem casal prisioneiro de uma promessa, da qual não se pode, nem consegue libertar, por fanatismo religioso, posição extrema, que levará o jovem casal a situações limite, negando os apelos da carne, mesmo contra a própria natureza humana.

Por pressões da Igreja, aquela que viria a ser considerada pela crítica “uma obra-prima” do Teatro Português, foi abruptamente retirada de cena, dias após a sua estreia, a pretexto de “não se integrar no pensamento moral que deve dirigir a nação”, segundo as directrizes dessa sinistra figura que foi António Ferro.

Do teatro de Santareno dirá, na altura, o encenador António Pedro: "Acontece, como me aconteceu, pegar sem fé num volume de peças de teatro de um autor desconhecido e descobrir, com deslumbramento, um grande dramaturgo português, com certeza um dos casos mais sensacionais da dramaturgia contemporânea depois do Lorca..."

Nesta, como em quase todas as peças de Bernardo Santareno, nomeadamente as que escreveu após o 25 de Abril, são evidentes os traços da sua formação ideológica e interventiva, logo, na defesa intransigente e corajosa que o autor nelas inscreve, de valores como o direito à diferença, o respeito pela liberdade e a dignidade do homem face a todas as formas de opressão, a luta contra todo o tipo de discriminação, racial, económica, sexual, ou ideológica.

Uma parte significativa da vida de Bernardo Santareno, tanto na sua vertente artística, como no exercício da medicina, desenvolve-se em pleno fascismo, sendo a sua primeira fase criativa, temporalmente considerada entre os finais dos anos 1950 (década em que publica 3 livros de poesia e um volume com 3 textos de teatro) e inícios de 1970. Ou seja, numa época particularmente dura para a actividade intelectual progressista no nosso País.

Em 1957, ano da estreia de A Promessa, a ONU condena Portugal pela situação política que se vive nos territórios denominados “províncias ultramarinas”; 72 advogados de Lisboa, Porto e Coimbra, protestam publicamente contra a prática da tortura pela PIDE e em Aveiro realiza-se o I Congresso da Oposição Democrática. Nesse mesmo ano tem lugar o 5º. Congresso do PCP. A fuga de Peniche, a rebelião armada nas colónias, entre muitos outros acontecimentos históricos determinantes, farão da década de sessenta o início do fim do fascismo e um dos mais violentos da repressão sobre os antifascistas.

Apesar da repressão, a luta mantém-se, a intervenção dos intelectuais, tanto na Literatura, no Teatro, nas Artes Plásticas, na Crítica e até no Cinema, fervilha de intensidade e conteúdo. Mesmo amordaçada e perseguida, a Cultura e a intervenção crítica desenvolvem-se graças à tenacidade e coragem de um punhado de intelectuais antifascistas os quais, opondo-se aos desígnios retrógrados e antipopulares da camarilha salazarista, conseguiram, com a sua intervenção e luta, criar uma obra ímpar em vários domínios das artes e dos saberes, obras que ainda perduram e fazem hoje parte integrante do nosso património cultural.

Entre esses intelectuais encontrava-se, naturalmente, Bernardo Santareno, o qual, para além das suas actividades profissionais, manteve sempre intervenção cívica, nomeadamente nas páginas da Seara Nova, identificando-se com as linhas programáticas da revista. Num artigo publicado na Seara, declarava:

…”queremos constituir na Seara Nova um núcleo de homens de boa consciência e vontade enérgica, dispostos a assumir perante a espoliação, a rapina, o egoísmo e a mentira nacionais uma violenta e sistemática atitude de protesto”.

…”Possam os homens de boas intenções de todas as Pátrias erguer um dia, sobre um mundo que ainda hoje se debate em miseráveis disputas nacionalistas, o arco-de-aliança duma humanidade justa e livre, realizando na paz vitoriosa as conquistas da inteligência e da vontade desinteressada”.

Terá, igualmente, papel de relevo como um dos fundadores do Movimento Unitário dos Trabalhadores Intelectuais. Desempenhando a sua função criadora, os intelectuais democratas opõem-se à ditadura fascista dado que as suas posições ideológicas e o seu humanismo os mobilizam para a defesa dos ideais supremos da Liberdade, do Progresso e da Paz.

Procurando reprimir a manifestação de tais ideais, a Censura, prévia e obrigatória, exercida sobretudo no Teatro e nos jornais, mas também no Cinema, nas rádios e nas exposições, está na raiz do embate permanente entre os intelectuais progressistas e a política obscurantista e tolhedora do governo de Salazar.

A proibição de jornais sérios, a mutilação de conteúdos, a proibição e confiscação de muitas obras de carácter progressista, o corte e a adulteração de informações objectivas sobre a vida nacional, ou do estrangeiro, as perseguições e prisões de intelectuais democratas prestigiados, os assaltos a livrarias, a editoras, a proibição de publicação de obras estrangeiras de reconhecido valor literário ou científico, são apenas alguns dos aspectos repressivos que a “política do espírito” da ditadura, produtora de uma ultrajante ignorância a que o fascismo tentava reduzir o nosso povo, foram as armas que o nepotismo utilizou para tentar atrasar o progresso histórico e social do País. A criação esteve, nestes anos, duramente condicionada e ferida.

É no consulado marcelista, em 1969, que a peça de Santareno, O Pecado de João Agonia, estreará pela Companhia Amélia Rey-Colaço/Robles Monteiro, com encenação de Rogério Paulo e, em 1971, a mesma Companhia levará a cena a sua peça O Duelo, encenada por Varela Silva.

Sendo esta, de Amélia Rey-Colaço, a Companhia que mais vezes produziu textos de Santareno, há quem, por esse facto, olhe com uma certa perplexidade para o modo como hoje, no Portugal democrático, se encara o nosso património teatral e como se cuida dessa inestimável herança. E se questione se um dramaturgo da dimensão de Bernardo Santareno pode, neste tempo, ser ignorado por quem de direito.

A Censura não impediu Bernardo Santareno de continuar a escrever, com muita coragem e determinação, como se pode verificar nos textos censurados na obra “O Judeu”, peça sobre a qual o autor escreveu, entre a amargura e a revolta: «Tenho conhecido homens destes na Igreja (Santareno, referia-se à personagem “Inquisidor-Mor”/Salazar), na governança política e nas guerras: é da sua massa que se fazem os inquisidores, os tiranos e os heróis. E também os grandes criminosos. (…) A mim, repugnam-me».

O Judeu, uma das peças que só após a Revolução de Abril foi possível ver encenada, diz-nos do processo que a Inquisição Portuguesa moveu ao dramaturgo António José da Silva, denominado o Judeu, que, através de um julgamento fantoche, inquisidor e arbitrário, o condenou à fogueira. Santareno pretendeu com este trágico episódio histórico denunciar, de forma explicita, as perseguições, as injustiças e a opressão exercidas pela ditadura sobre os autores e todos aqueles que não se resignavam às férreas leis da ditadura.

Bernardo Santareno desde muito cedo desenvolveu a sua ligação ao Partido Comunista Português, trabalhando com muitos intelectuais comunistas, nomeadamente aqueles que mais directamente estavam envolvidos nas artes do teatro e da literatura, como Fernanda Lapa, Rogério Paulo, António Rama, Mário Pereira, Urbano Tavares Rodrigues, Carlos Paredes, que escreveu a música para duas das suas peças: António Marinheiro e A Traição do Padre Martinho, e tantos outros nossos camaradas.

Santareno foi vítima, como grande números de outros intelectuais seus contemporâneos, da feroz repressão da ditadura sobre a produção intelectual, mas nunca se amedrontou, nem a sua voz deixou de se manifestar contra o poder arbitrário do fascismo, defendendo sempre o amor que sentia pelo povo, que sentia e pensava.

Desse amor pelo nosso povo, que o seu teatro reflecte, dirá Luiz Francisco Rebelo: “Oscilando entre os pólos de sinal contrário, mas de força equivalente, de uma fascinação do mal e de uma obsessão de angelismo, o seu teatro realiza a inesperada fusão de temas de raiz popular com as preocupações existenciais mais fundamente sentidas na carne e no espírito do homem seu e nosso contemporâneo.”

Depois de uma pausa de quatro anos determinada pelo desencanto de ver constantemente as suas peças proibidas pela Censura, e por uma consciência cada vez mais aguda do papel do Teatro no Movimento dos Intelectuais Progressistas, numa sociedade moderna e civilizada, que se confrontava com problemas terríveis de repressão, miséria e guerra, Bernardo Santareno volta à escrita com obras fundamentais do seu processo criativo, como O Judeu, em 1966, O Inferno, em 1967 (peça nunca representada), ou A Traição do Padre Martinho, em 1969.

É neste quadro de luta por uma sociedade mais justa, antes e depois de Abril de 1974, que Bernardo Santareno irá desenvolver uma ligação mais profícua e próxima com o PCP, tendo participado com outros intelectuais comunistas em inúmeras lutas.

Como Álvaro Cunhal escreveu: “ao lado do povo estiveram sempre, contra o fascismo, tudo quanto de melhor existia na ciência, na literatura, na arte, nas profissões liberais, lutando pela democracia, a paz, o progresso social”.

A ditadura fascista não conseguiu nem ganhar, nem corromper, nem abafar a voz dos intelectuais portugueses. Antes pelo contrário, a pertinaz ofensiva policial contra escritores, actores, médicos, engenheiros, arquitectos, economistas, não fez senão reforçar o espírito combativo dos intelectuais e as suas ligações ao povo.

Nem a Censura, nem a apreensão de livros, nem a liquidação de jornais e revistas, nem a proibição do trabalho científico, nem a fiscalização e a supervisão fascistas das associações culturais, nem o encerramento de muitas delas, conseguiram impedir a formação e desenvolvimento do poderoso movimento democrático dos homens dos saberes e da inteligência, onde se integrou, naturalmente, Bernardo Santareno.

Com o 25 de Abril de 1974, Bernardo Santareno vive uma época de exaltação e euforia criativas e de luta, participando activamente das grandes transformações da sociedade, obrigando-se a tarefas cívicas e políticas, limitado, contudo, pela doença que o ia minando.

Morreu a 29 de Agosto de 1980, sem que tivesse visto publicada a sua última peça, “O Punho”, um dos seus mais vigorosos dramas, cuja acção se localiza no quadro revolucionário da Reforma Agrária, Foi publicada, postumamente, em 1987.

Morreu, supomos, reconciliado com o conflito nele sempre presente, entre a fé católica e o marxismo, mas com uma vida intensa de luta por uma sociedade melhor e mais justa.

Mesmo sem a Censura a atrapalhar-lhe o caminho, Santareno viu o seu trabalho subir ao palco menos vezes do que merecia o talento que a crítica, o público e os seus pares lhe creditavam. Como a nossa camarada Fernanda Lapa, que nos deixou recentemente, sublinhou.

Bernardo Santareno foi um dos injustiçados do teatro em Portugal.

Cabe-nos, no futuro, corrigir essa injustiça!