Intervenção de Paulo Antunes, Investigador, Conferência do PCP «Engels e a luta na actualidade pelo socialismo»

O socialismo científico: uma teoria revolucionária em desenvolvimento e um guia para a acção

Ver vídeo

''

Antes de mais, cumprimentar os presentes e depois citar o seguinte: «A nossa teoria não é um dogma, mas um guia para a ação – diziam Marx e Engels […]».

Com esta lacónica e conhecidíssima passagem leninista, quase chavão e com Engels vamos, resumidamente, dirimir a questão de um socialismo científico como teoria revolucionária em desenvolvimento, bem como o tal “guia para a ação”.

Antes de mais coloquemos uma simples questão: o que é isto do “socialismo científico”? Ou melhor, o que é isto do socialismo ser (ou poder ser) científico?

Em primeiro lugar, vem-nos logo à cabeça que a “ciência” é algo quase hermético e enxutamente enclausurado num laboratório qualquer, às vezes até passa no telejornal uma descoberta científica e logo aparecem aqueles indivíduos, cientistas por sinal, fardados a rigor com fatos de resguardo branco, a brandir frases que só o “bom” do jornalista nos pode traduzir para massificado entendimento. “Amém!”

Bem, e depois há aqueles documentários que passam em canal aberto, ou alguns em canais menos abertos, em que nos dizem que foram de certeza uns “alienígenas” – seja de que tipo esverdeado for – que construíram ou proporcionaram mesmo a construção das pirâmides do Egipto! Não nos embasbaquemos, outros feitos de igual monta costumam estar em análise.

Ou ainda tantos outros indivíduos revestidos de especialistas que não se cansam de nos mostrar a geográfica e (inter)nacional natureza sempre ou quase sempre pela ótica vencida da “sobrevivência do mais forte” (como se hoje até a ideia de “seleção natural” não fosse mais preferencialmente utilizada como uma metáfora, em vez de uma descrição científica realmente).

Quer dizer, em segundo lugar, a “ciência” também pode aparecer como o “guarda-chuva” que encobre tudo e mais um par de botas, desde que interesse a quem esteja a transmitir tal perspetiva, como também aparece como um “carimbo” pronto a deixar a sua marca no que é “científico”, ora, indiscutível; por conseguinte, “cesse-se o debate, senhor, tem toda a razão!”.

Neste sentido, resta-nos mesmo repetir a fórmula, tê-la na ponta da língua se não quisermos fazer figuras tristes ou parecer que não sabemos nada de nada; pois claro, não seremos “científicos” o suficiente para falar de tal ou tal assunto.

Em terceiro lugar, porque a tendência – que de alguma maneira em primeiro e segundo lugar já se anunciava, exercendo uma pressão quasi normativa – é a de um “empirismo”, “positivismo”, até de um vetusto “empiriocriticismo” e porque não de um “pós-positivismo”. (Podendo até resumir-se a questão apelando à ideia de um “modo metafísico de pensar”, como Engels identificava.)

Quer dizer, a tendência é para se compreender a ciência como se esta se tratasse de uma análise supostamente mais apurada da “imediatez” – do que é uma “coleção de experiências” e do que é o reflexo mais imediato destas –, normalmente como quem testa uma teoria pré-concebida e com a sua escolha “laboratorial” já obtivesse a globalidade do que é a “coisa”. Bastando dar com ela e proceder à sua melhor descrição.

O apetrecho de abstrações vazias, mas às vezes até absolutizadas, vem a reboque.

É, por isso, que normalmente somos eivados com as suas taxonomias, mensurações e estatísticas, tabelas e mais tabelas, gráficos e mais gráficos, como se a riqueza da realidade e do devir coubesse numa coluna de Excel. O que não quer dizer que estes métodos e formas de entender e apresentar o estudado não sejam úteis, só não são toda a “verdade”. (Por exemplo, à luz de uma tabela de um qualquer cientista social, apresentando a estatística mais acabada da “média de rendimentos”, dá que pensar, como dizia o outro: “quem é que afinal comeu o meu caviar?” De certeza que não está nesta sala!)

Enfim, por um lado, o adjetivo “científico” funciona como uma espécie de “argumento de autoridade”, como não estando ao alcance de todos e seguramente não se adunando a nenhuma ideologia (mesmo que por vezes assaz e ideologicamente permeados); por outro lado, funciona como o “main stream”, dando conta de uma corrente, alegadamente científica, que se tornou hegemónica em relação às demais conceções.

Quando ao menor ensejo: «Procura[m]-se […] retirar antecipados dividendos ideológicos de uma “epistemologia” grosseiramente simplificada, convenientemente enviesada e controlada […]».

O que se pretende com este arrazoado é constatar que a “cientificidade” do que quer que seja não pode servir de “certificado abstrato de garantia antecipada”. Pelo contrário, a ciência, que se quer ciência, não se pode evadir a um programa concreto de investigação, não se pode deixar levar por veleidades ou casos mediáticos do momento.

É preciso «[…] dar conta do real na unidade e na multiplicidade da sua determinação deveniente, […] na contraditoriedade plurifacetada de que se tece e entretece.».

O que já nos deixa entrever o carácter dialético da questão.

O que pode acontecer a maior parte das vezes é o cientista, ou o ideólogo da ciência, transpor, na passagem da investigação para a exposição desta, o resultado do estudo em linguagem diversa e até antagónica ao processo e desenvolvimento dialético que na verdade se dava conta.

Às vezes, porém, estes indivíduos até se podem expressar dialeticamente, só que não assumem ou não sabem que o seu tipo de investigação o teve em conta ou que o seu discurso não se pode evadir a tal, e só fique, quando fica, tacitamente presente.

Então, o Marxismo

Este terá que ver com tudo isto e mais, com a materialidade desse mesmo desenvolvimento, não porque se conceba simplesmente a matéria como previamente dada (mesmo que aí esteja independente e fora de nós), mas por se dar conta desta e dos seus reflexos por via da práxis transformadora, revolucionante. É porque transformamos e somos transformados que o melhor compreendemos e podemos compreender.

O “materialismo dialético” ou a “dialética materialista” não são resultado de uma arbitrariedade teórica que previu qualidades imensas na junção de duas correntes outrora separadas e agora a juntar com laivos de genialidade ou até de insanidade, diriam outros. Engels chamava a atenção sem peias, “a natureza é a prova da dialética”.

Esta é a ontologia (estudo ou ciência do ser) que deve presidir à epistemologia em causa, à teoria e teorização do conhecimento que se quer o mais próximo possível de um efetivo epiteto de “ciência”, de “científico”.

Enfim, «Para fazer do socialismo uma ciência era necessário dar-lhe, primeiro, um chão real.». Apesar de tal empreendimento teórico e prático ferir os ouvidos de uma “respeitabilidade britânica”, como Engels jocosamente identificava, isto é, a inadmissibilidade de terminologias tais como “materialismo” e ainda mais o caso do “materialismo histórico”; “respeitabilidade” que, como sabemos, vai bem além da Grã-Bretanha.

De acordo com o nosso homenageado:

O socialismo moderno é […] antes de mais o produto da observação, por um lado, dos antagonismos de classes, que dominam a sociedade atual, entre possuidores e não-possuidores, entre capitalistas e trabalhadores assalariados, por outro, da anarquia que domina a produção.

Mas ainda que fosse comumente aceite a sua “cientificidade” – sabemos que não é assim –; ou que o caráter ideológico da questão também não oferecesse resistência – também sabemos que não é assim –; o que mais preocupa a oposição é a maneira como isto tudo se reflete no estudo da economia, do desenvolvimento social e económico sobretudo vigente.

Recorramos mais uma vez a Engels:

«O socialismo aparecia agora, […] já não como a descoberta casual desta ou daquela cabeça de um génio, mas como produto necessário da luta entre duas classes nascidas da história, o proletariado e a burguesia.

A tarefa [… é] a de estudar o curso dos acontecimentos histórico-económicos de que nasceram, necessariamente, aquelas classes e o seu antagonismo, e descobrir na situação económica assim criada os meios para resolver o conflito.»

Aos poucos se clarifica o assunto em título, o de “uma teoria revolucionária em desenvolvimento”, visto que se trata de investigar o curso do desenvolvimento histórico e se a história não cessa (ao contrário do que alguns epígonos do sistema quiseram e querem fazer querer – já agora, infelizmente continua a ser mais recorrente nos círculos científicos o estudo,quando não o lamento ou apelo, do fim do mundo do fim do capitalismo, como se este modo de produção pudesse ser mais duradouro que o nosso planeta, ou seja, como se a parte, o fragmento histórico, pudesse ser maior que o todo -), bem como, dizíamos, a história está em constante transformação, então, não apenas a conceção de Marx e Engels se apresentou como revolucionária ao apontar e identificar isto mesmo, dando método a esta pesquisa, como é necessário para a sua sobrevivência que se desenvolva também (e na passada, lembramos o trabalho de Lénine e de outros que se seguiram).

Ora, hoje em dia não deixaram de existir classes exploradas e exploradoras (com o essencial ainda nos capitalistas e nos assalariados, ou como lhes chamam agora, nos “colaboradores”…), basta que se atenda ao tipo de relações de propriedade da produção que existem; bem como não deixou de existir uma tendência para a “caça” ao lucro como o sangue que se bombeia nas veias do sistema, ou seja, extração de “mais-valia”; entre tantas outras coisas.
Este é o “conflito real” que o Socialismo moderno e científico refletem, como o nosso homenageado chama a atenção «[…] tinha de vir à luz do dia com maior crueza a incompatibilidade entre a produção social e a apropriação capitalista.», ao que acrescentamos, ainda se mantém, e cada vez mais “crua”.

É isto.

É porque é uma teoria revolucionária e se encontra em desenvolvimento que podemos afirmar dela não se tratar de um “postulado abstrato”, de um “dogma enquistado”, entre outras denominações de semelhante jaez; que é ainda outrossim o tal “guia para a ação”, mais uma vez, não como um “guia” que nos fornece todas as direções à guisa de um mapa ou todos os ingredientes como uma receita.

Se Engels criticava aos seus compatriotas socialistas radicados nos E.U.A. o facto de estes não compreenderem a teoria e a tratarem “de maneira doutrinária e dogmática”, a ser “aprendida de cor”, como um “credo”, era precisamente como um “guia para a ação” que eles a deviam compreender.
Devemos, portanto, apontar no sentido do esforço para uma melhor compreensão do momento histórico em que estamos inseridos, no tipo de relações e contradições existentes e na maneira para as superar ou pelo menos transformar.

É pois necessário manter o estudo e a maneira como tudo isto nos pode “guiar” ou, com isso, podemos nós “guiar”.

Tenhamos assim firme a convicção, pois assente na mais avançada conceção científica da sociedade, queo comunismo é uma possibilidade real […]. O comunismo não é uma fé reconfortante, nem uma entrada prometida no paraíso: é um programa de trabalho, de investigação, de reconfiguração em permanência do nosso viver histórico material concreto numa perspetiva de transformação efetiva à luz de padrões enriquecidos de humanidade.

Estudemos, investiguemos, enriqueçamos o nosso “guia” (que não é um “guião”), em suma, “aprender, aprender sempre!”.

Obrigado pela vossa atenção