Intervenção de Rui Salgado, Físico, Meteorologista, Investigador e Docente do Ensino Superior, Seminário «O Capitalismo não é verde. Uma visão alternativa sobre as alterações climáticas»

«O combate às alterações climáticas é também um combate de classe, à qual pertencemos ou pela qual optámos»

«O combate às alterações climáticas é também um combate de classe, à qual pertencemos ou pela qual optámos»

Estamos a viver um período de aquecimento global, a temperatura média global do planeta está a aumentar. Exemplo(s) da evolução da temperatura global desde 1880 (NOAA) podem ser vistos nas figuras:

Anomalia da temperatura média global no mês de Julho e nos meses de Janeiro até Julho. Dados na NOAA. Como é conhecido, este aquecimento global traduz-se também por outras alterações climáticas, como o degelo, cujo efeito sobre a diminuição da reflexão da luz solar é uma retracção positiva.

Não há hoje dúvidas na comunidade científica sobre a origem essencialmente antropogénica deste aquecimento global.

Na verdade não há nenhuma prova cientifica cabal. Para isso, em ciência, seria preciso que tivéssemos um outro planeta para experimentar e não o temos.

O que temos é uma teoria científica que explica e quantifica o aquecimento global verificado como resultado da alteração da composição química da atmosfera, particularmente pelo aumento do CO2 atmosférico. E não conhecemos nenhum outro mecanismo (variações na radiação solar, no vulcanismo, na radiação cósmica) que explique as alterações em curso.

É o que é, mas é a prova mais robusta que temos para poder afirmar, com um elevado grau de confiança, que o aquecimento global observado é devido, em larga medida, à emissão pela acção do Homem de gases de efeito de estufa.

Esta «verdade» hoje consensual na comunidade científica que trabalha em clima, não foi inventada por Al Gore, nem por recentes movimentos ambientalistas, nem pelo capital associado às ditas indústrias verdes. Estes podem ter colocado, por diversas razões, algumas inconfessáveis, outras contraditórias, estes assuntos na ordem do dia da comunicação social dominante. Mas já eram conhecidos antes. Vou dar um exemplo do ponto de vista científico e um outro do ponto de vista político.

O científico:

Mikhail Ivamovich Budyco (1920-2001) foi um notável cientista soviético. Natural da Bielorrússia, formado em Física e doutorado em «Meteorologia militar» nos terríveis anos da II Guerra Mundial, foi, entre outros, director do principal observatório Geofísico em Leninegrado e Presidente do Conselho Científico Soviético para as questões do Clima e dos recursos AgroClimáticos. Foi prémio Lénine em 1958. Os seus primeiros estudos sobre a influência do Homem no Clima datam dos anos 50. É o autor de muitos livros, um dos quais «Clima e Vida», de 1971, traduzido em várias línguas e ainda manual de estudo em muitos cursos universitários. Para além de notáveis contributos para a ciência do clima e das alterações climáticas, Budyco teve grande importância na planificação soviética, havendo vários testemunhos de que terá tido um papel relevante no abandono, por parte da direcção soviética, de planos de grande envergadura para desviar rios do Oceano Ártico face aos potenciais problemas climáticos e ecológicos daí decorrentes (infelizmente não terá sido escutado ou não terá intervindo, não sei, do mesmo modo, no Mar de Aral).

Não tenho tempo, nem é o local apropriado para desenvolver a biografia deste grande cientista, mas queria só dizer-vos que foi provavelmente o primeiro investigador a estimar quantitativamente o efeito do aumento do CO2 devido às actividades humanas, e a incluir nos seus cálculos, ainda que de forma simplificada, o efeito de retroacção positiva entre o aumento da temperatura e o degelo do Ártico.

Não resisto a mostrar o seguinte gráfico, retirado do seu livro «Alterações climáticas», editado na União Soviética em 1974, sublinho 1974, e traduzido para o inglês em 1977.

A curva 1 mostra a evolução da temperatura média global no século XX até 1970. Reparem: estávamos no final de um período, umas décadas em que a temperatura média global tinha diminuído um pouco. No entanto Budyco faz uma estimativa, representada na curva 3, de qual o aumento da temperatura decorrente do aumento do CO2 atmosférico, considerando uma taxa de aumento de emissões constante e os efeitos da retroacção positiva gelo-reflexão da radiação solar.

Espantoso: o aumento que ele estima na altura está muito próximo do que veio a acontecer, levemente exagerado. Previa um aumento de 1,2°C para agora, o que se verificou foi de 0,9°/ 1,0°C. Notem, Budyco faz estas estimativas num período em que não havia evidências observacionais do aquecimento global.

Resultam de estudos efectuados no âmbito da planificação socialista, que incluíam, desde o pós-guerra, estudos sobre os efeitos climáticos de grandes projectos. São conclusões de uma ciência que não estava, portanto, ao serviço dos interesses e da ideologia dominante no mundo capitalista, onde só mais tarde as observações começaram a evidenciar os sinais do aquecimento global. Para terminar, uma curiosidade para mostrar a importância que Budyco exerceu no mundo dito ocidental: um conhecido climato-logista americano, William Hay, reconhece que se deu conta da importância da questão das alterações climáticas em Leninegrado pela intervenção de Budyco numa reunião americano-soviética de cientistas em 1982.

Figura de abertura do livro «Experimenting on a small Planet» de Wiliam Hay, de 2016.

Uma segunda nota para a questão política.

Muito antes de Al Gore, muito antes de outros, agora politicamente correctos políticos do capital, Fidel de Castro tinha chamado a atenção para a questão. Há intervenções mais antigas, mas em 1991, num memorável discurso após a queda da União Soviética, na fase mais dramática do período especial, Fidel diz:

«Entre los enormes danos que el capitalismo ha hecho a la humanidad, no solo está el Tercer Mundo, no solo está el mundo subdesarrollado, no solo están los miles de millones de gente que viven em la pobreza y em una pobreza que crece, em una pobreza cada vez mayor, sino que ha deteriorado la naturaleza, ha destruido el medio ambiente,(...) ha creado los problemas del efecto invernadero que muchos cientificos dicen que es ya irreversible, el fenómeno del calentamiento de la tierra por excesso del consumo de combustibles fósile».

A questão do aquecimento global é recorrente nas intervenções de Fidel, sendo muito conhecida a sua intervenção na Conferência do Rio de Janeiro, em 1992, em que acusa as sociedades capitalistas de terem «envenenado los mares y rios, han contaminado el aire, han debilitado y perforado la capa de ozono, han saturado la atmosfera de gases qie alteran las condiciones climáticas com efectos catastróficos que ya empezamos a padecer».

Em outras intervenções explica que são os pobres os mais afectados pelas alterações climáticas: «Los primeros em sufrir las consecuencias de la afectación del medio ambiente son los pobres. No poseen automóviles, ni aires acondicionados, posiblemente ni siquiera muebles, si es que disponen de vivienda. Sobre ellos caen más directamente los efectos de las grandes emanaciones de dióxido de carbono causantes del calentamiento de la atmósfera».

E que é necessário ampliar a luta: «Sin embargo, la conciencia del mortal peligro crece. Debe crecery crecerá la lucha. No hay alternativa»

Tal como Fidel afirma, os efeitos das alterações não são iguais para todos. Não são iguais para todas as classes sociais. Mas também não são iguais para todas as regiões do mundo.

Em particular, uma das regiões onde os efeitos podem ser mais fortes é a região do Mediterrâneo que, em termos climáticos, inclui Portugal. Exactamente porque estamos numa zona de transição, e temos o deserto mesmo aqui a uma centena de quilómetros para Sul. Uma ligeira (do ponto de vista do planeta) deslocação para Norte das trajectórias dos sistemas frontais (desculpem-me a gíria), que são a principal fonte de precipitação nesta região, pode dar origem a uma diminuição acentuada da precipitação na nossa região, e em particular, no Sul de Portugal.

As estimativas sobre o aumento da temperatura média global devidas ao aumento da concentração de gases de efeito de estufa têm uma margem de erro muito inferior ao das projecções existentes sobre as alterações no domínio da precipitação, até porque estas dependem ainda mais fortemente das circulações atmosféricas e do local onde nos encontramos. No entanto, todos os estudos projectam uma diminuição da precipitação na região mediterrânica. Em Portugal, os estudos indicam que, nos piores cenários, a precipitação pode diminuir de 20 a 40% no Alentejo e Algarve e que a diminuição vai ser mais acentuada na Primavera.

Os planos de desenvolvimento devem ter em conta o clima e as alterações climáticas. Em particular, no que nos diz respeito, devemos ter em atenção que a disponibilidade de água vai tender a diminuir e não aumentar. Portanto, devemos defender e planear o desenvolvimento de culturas menos exigentes do ponto de vista da água e, claro, aumentar e não diminuir, como alguns irresponsavelmente defendem, a criação de novas albufeiras onde só se «perderia» para o mar se estas não existissem.

No quadro do capitalismo será possível encontrar soluções que minimizem os efeitos das alterações climáticas e, claro, ainda mais facilmente, soluções de adaptação (o conceito mais em voga actualmente e para o qual existem mais financiamentos) às novas condições climáticas. Como para tudo, serão soluções que serão implementadas à custa das grandes maiorias, dos humildes e dos explorados e, no caminho, contribuirão para enriquecer os de sempre, os capitalistas, os primeiros responsáveis pelo aquecimento global.

Mas o capitalismo, pela sua natureza, não poderá nunca resolver a contradição e entre capital e trabalho e ente o seu modo de produção e a natureza, incluindo o clima.

O combate às alterações climáticas é também um combate de classe, à qual pertencemos ou pela qual optámos.