Intervenção de Jerónimo de Sousa, Secretário-Geral, Sessão «Renegociação da dívida, condição para o desenvolvimento e soberania nacional»

Renegociação da dívida, condição para o desenvolvimento e soberania nacional

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Saudações aos nossos convidados e a todos os presentes nesta Sessão Pública em que debatemos um dos principais e mais graves constrangimentos ao desenvolvimento do País - o problema da enorme dívida pública portuguesa e o sufocante e paralisante serviço dela resultante.

Um problema que há muito identificámos e para a superação do qual apresentámos, nesse ido dia 5 de Abril de 2011, praticamente sozinhos no panorama partidário nacional, uma solução que tem vindo a fazer caminho, porque cada vez mais portugueses compreendem que este é um problema real que urge enfrentar com outra determinação, no quadro de uma política verdadeiramente alternativa, se queremos resolver os problemas de fundo do País, onde pesam, entre outros a degradação acentuada do tecido produtivo nacional, um enorme défice de produção e emprego, os baixos níveis de investimento público e privado, uma sangria permanente de recursos humanos, o aumento da pobreza e das desigualdades sociais e uma crescente dependência do País.

E se é certo que nesta nova fase da vida política nacional, marcada pelo afastamento do governo do PSD/CDS e pela nova correlação de forças na Assembleia da República, tem vindo a tornar possível concretizar algumas medidas positivas, a solução dos problemas do desenvolvimento e crescimento sustentado do País exige que se encare com outra disponibilidade e iniciativa as tarefas de libertação do País das amarras da submissão e limitações externas, com que está confrontado e que estão, em grande medida, na origem do visível rumo declínio do País.

Sabemos, e nós próprios o temos afirmado, que a solução dos problemas de fundo do País está limitada por opções do próprio PS e do seu governo, como sejam a sua posição inalterada em relação à libertação dos constrangimentos resultantes da dívida pública, da submissão ao Euro ou o domínio dos grupos monopolistas sobre a vida nacional, mas a vida está a mostrar, e vai continuar a mostrar, que a situação a que o País chegou, para ser efectivamente alterada precisa de uma verdadeira ruptura com o rumo até hoje seguido por sucessivos governos de PSD, CDS e PS.

Há cinco anos apresentámos, então, publicamente, ao País a proposta de renegociação da dívida portuguesa, com a reavaliação dos prazos, das taxas de juro e dos montantes a pagar, e uma política alternativa à intervenção da troika, e à sua violenta agenda de exploração e empobrecimento, que o então governo PS, com o apoio de PSD e CDS, se preparava para chamar.

Nunca deixámos coerentemente, em todos estes anos de a continuar a propor e reclamar e essa breve fórmula, a “renegociação da dívida nos prazos, juros e montantes”, que se popularizou e generalizou.

A pertinência, a justeza e a necessidade da renegociação da dívida podem ser expeditamente reconhecidas se notarmos que nestes cinco anos, de 2011 a 2015, o Estado pagou em juros 40,8 mil milhões de euros, o equivalente a 23% do PIB de 2015. E se acrescentarmos o que prevê pagar este ano, mais 8,5 mil milhões, então o total ascende a perto de 50 mil milhões. Para se ter uma ideia da brutalidade, compare-se com os 25 mil milhões dos fundos estruturais que Portugal recebe da União Europeia, no actual quadro comunitário de 2014 a 2020.

São milhares de milhões de euros que anualmente se perdem para o investimento e o gasto social públicos, a promoção do crescimento económico e do emprego, o combate à pobreza e às desigualdades.

O Estado português não se pode dar ao luxo de gastar todos os anos, só em juros da dívida, quase tanto ou mais do que gasta com a saúde ou com a educação dos portugueses. E ainda por cima para chegar ao final do ano e constatar que a dívida pública ficou praticamente na mesma.

Isto é deitar dinheiro para um poço sem fundo. Nem se reduz significativamente a dívida, nem se investe no País e no seu povo. A dívida tornou-se simplesmente um mecanismo de extorsão de recursos públicos e nacionais, sobretudo para o estrangeiro, que se perpetua, quando não se agrava.

Os trabalhadores, a população e o País sacrificam-se a pagar uma dívida que é impagável, o problema repete-se de ano para ano e quem ganha são aqueles que especularam com os títulos da dívida, como os bancos e os fundos de investimento, ou que se aproveitaram das debilidades do País, como os credores da troika.

E o País não sai deste absurdo: a dívida é um tributo que se paga à agiotagem internacional pelo estranho privilégio de a manter tal como está. Portugal não resolve nenhum dos seus problemas, pelo contrário agrava muitos deles, com a manutenção e a eternizarão do pagamento da dívida usurária.

Vários países da União Europeia têm problemas semelhantes. Portugal só tem vantagens em promover, à escala europeia, um movimento concertado de renegociação das dívidas pública e externa, desde logo para com a própria Comissão Europeia e o BCE, com o reescalonamento dos montantes e das condições de pagamento, que liberte recursos para o investimento produtivo, anime o crescimento económico e confira razoabilidade e sustentabilidade à dívida reestruturada.

Mas independentemente dessa acção externa, no País não se pode ficar de braços cruzados.

Antes de mais é preciso compreender que a dívida é estruturalmente insustentável. Insustentável, impagável e insuportável. Em termos sociais e em termos financeiros.

Em certos contextos, como o presente e como há pouco o afirmámos, nomeadamente de baixas taxas de juro e de aquisição mensal massiva de títulos de dívida aos bancos pelo BCE, o endividamento público e nacional pode parecer controlado, gerível, até ligeiramente desanuviado. O prolongamento e reforço do programa de expansão monetária do BCE actua no sentido de conservar as taxas de juro baixas.

Até haverá quem tenha a ilusão do regresso à situação, estilhaçada pela crise internacional em 2008, em que os países do euro, Portugal como a Alemanha, tinham sensivelmente o mesmo custo na emissão de dívida. Ou de que uma prolongada baixa dos juros das novas emissões de refinanciamento da dívida venha a reduzir substancialmente o seu juro a pagar em relação ao volume e valor da dívida.

É não perceber que a situação europeia, e ainda mais a nacional, está presa por arames. Que o País não contará para sempre com essa espécie de “alinhamento favorável dos astros”, que aliás em nada depende dele. Que sempre que os juros aumentem, se corre o risco de a dívida voltar a tomar o freio nos dentes. Que mesmo que as taxas permaneçam baixas, a dívida é de tal forma colossal que o seu serviço continuará a pesar e a constranger a aplicação dos recursos, a recuperação, o crescimento, a acção social do Estado, as contas públicas, a redução do défice e da própria dívida.

A dívida compara-se com os rendimentos. É assim para uma pessoa, uma empresa ou um País. A dívida pública ou externa é aferida em relação ao rendimento nacional. Se o produto cresce, a dívida, em termos relativos, diminui. É fundamental fazer crescer o País. Mas para isso é preciso investimento, especialmente público. São precisos recursos, nomeadamente os desperdiçados no serviço da dívida. O País caiu num impasse, na armadilha da dívida. Crescendo pouco não consegue diminuir a dívida e a dívida tão pouco deixa o País crescer como devia.

A dívida pública e a dívida externa portuguesas são, uma e outra, das maiores do mundo. No final do ano passado, a dívida pública (na óptica de Maastricht) era de 128,8% do PIB e a dívida externa (dada pela posição de investimento internacional) era de 109,4%.

Como a dívida externa líquida do País é constituída sobretudo pela componente externa da dívida pública, renegociar a dívida pública é simultaneamente fazer o mesmo à dívida externa.

Esta renegociação da dívida é um imperativo nacional, para remover um dos mais poderosos obstáculos presentes, o desvio de recursos para o capital financeiro e o estrangeiro, que fazem falta ao desenvolvimento do País.

A renegociação é um imperativo e a reconsideração dos montantes, e não apenas dos prazos e dos juros, uma necessidade incontornável. O alisamento dos picos das amortizações mais próximas, o alongamento dos prazos, a diminuição das taxas de juro, só por si não permitiria uma libertação satisfatória dos recursos comprometidos no pagamento da dívida.

Por isso o PCP propôs uma renegociação da dívida directa do Estado, incluindo o empréstimo da troika, que abata fortemente os montantes em dívida (pelo menos em 50%) e que, em conjunto com a diminuição das taxas de juro e o alargamento dos prazos, assegure uma redução substancial (pelo menos em 75%) dos seus encargos anuais.

Independentemente de evoluções posteriores, a experiência bem sucedida de numerosas reestruturações de dívidas soberanas, desde a situação verificada com a Alemanha do pós-guerra, passando pela experiência da Argentina, ou do Equador, atesta a possibilidade e a viabilidade de avançar por este caminho também no nosso País.

Uma renegociação que parta de uma auditoria aprofundada à dimensão, origem, natureza, credores e evolução previsível da dívida directa do Estado e que, bem assente nessa base, recorra, se necessário, à suspensão fundamentada do pagamento da dívida directa do Estado.

Renegociar implica certamente discutir com os credores, mas implica também uma defesa firme dos interesses nacionais. A própria Assembleia Geral das Nações Unidas, a 10 de Setembro do ano passado, reconheceu esse direito aos Estados soberanos, “que não deve ser frustrado ou impedido por quaisquer medidas abusivas”.

Mas não basta atacar a dívida. É preciso atacar as causas profundas do endividamento nacional, para que ele não se reproduza.

O abandono do aparelho produtivo, a desprotecção do mercado interno, as privatizações, a financeirização da economia, os apoios e o desvio de colossais recursos públicos para a banca, o favorecimento do grande capital e da especulação financeira, a submissão às imposições da União Europeia. E muito especialmente a adesão ao Euro, que contribuiu para a degradação do aparelho produtivo e a substituição de produção nacional por importações, que estimulou o endividamento no estrangeiro e a especulação com os títulos de dívida.

O País não andou a “viver acima das suas possibilidades”, andou foi a produzir abaixo das suas possibilidades (e a distribuir muito mal a riqueza criada). É preciso defender a produção nacional. É preciso produzir mais para dever menos.

A banca estimulou o endividamento cá dentro e endividou-se lá fora. Foi um agente destacado do endividamento externo do País. Quando se viu em dificuldades foi beneficiada pelos auxílios do Estado e o fornecimento de liquidez do Eurosistema. É preciso disciplinar e reorientar o sistema financeiro. É preciso controlar publicamente a banca.

O Euro contribuiu muito para o endividamento público e externo do País, que começaram a trepar com a adesão ou a sua preparação. É preciso uma moeda ajustada à capacidade produtiva e exportadora do País, que ajude a financiar a economia em vez de promover a austeridade. É preciso reaver a soberania monetária.

É fundamental que o País, e já agora o actual governo, não se iludam com uma falsa normalidade, de aparente estabilização do volume da dívida, e muito menos se resignem a essa normalidade usurária e espoliadora, que manieta o País e que lhe entrava o crescimento.

Qualquer estratégia que recuse tocar na dívida, designadamente nos seus montantes, com a justificação de que será paulatinamente reduzida com o contributo da política monetária expansionista europeia engana-se a si própria e engana o País.

As intervenções do BCE podem ajudar a reduzir os juros, mas mostram-se cada vez mais ineficientes e, eventualmente, perversas. O dinheiro não chega à economia real, é desviado para a especulação. A volatilidade dos fluxos da massa de liquidez criada retrai o crédito às empresas. As taxas de juro negativas afectam as rentabilidades dos bancos e a oferta de crédito. O enorme endividamento desincentiva o investimento, apesar dos baixos juros.

Além de que, em caso de agravamento da crise, o País encontra-se singularmente desprotegido, mais do que em 2008. A dívida gigantesca condiciona o recurso ao dispêndio público, as taxas de juro europeias de curto prazo nulas ou negativas e a saturação da liquidez na esfera financeira roubam a margem de progressão das políticas monetárias, como as que têm vindo a ser avançadas pelo BCE.

Nesta matéria, já sabemos que não faltarão quer os defensores do imobilismo paralisante com as suas falaciosas fundamentações a garantir que a dívida é sustentável, mas também os defensores das meias soluções que não são solução nenhuma, escondidos atrás de conceitos dúbios e enganosos, com o pretexto de não assustar credores, que podem fazer aumentar os juros ou levar a famosa agência de notação canadiana (DBRS) a desclassificar o rating da dívida portuguesa para lixo.

Mas é agora e não quando for tarde de mais, com o País mais debilitado e com menor poder negocial, que a renegociação da dívida deve ser feita.

Da nossa parte não deixaremos de tomar as iniciativas que vão ao encontro da sua efectivação, certos também de que a solução do problema da dívida é igualmente inseparável da concretização de outros eixos da política patriótica e de esquerda que propomos ao País.

Convictos que o País não está condenado ao declínio económico e social e à crescente dependência e subalternização, mais uma vez reafirmamos que há soluções para os problemas nacionais e que o caminho de regressão económica e social pode e deve ser interrompido pela acção convergente de todos os democratas e patriotas, dando força a um verdadeiro projecto alternativo para o País.

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