Intervenção de Pedro Carvalho, Economista, Debate «A crise do Capitalismo - as causas e a resposta necessária»

"A crise financeira vai continuar a agravar-se, na medida que mais ajustamentos serão necessários nos mercados de capitais e no sector bancário"

A injecção de capital de 200 mil milhões de dólares, efectuada pelo governo norte-americano no passado dia 7 de Setembro, para salvar os seus dois «gigantes» do crédito hipotecário, Fannie Mae e Freddie Mac, marcou o início de uma vaga de operações de salvamento efectuadas por diversos governos do centro do sistema capitalista mundial, por via da tomada de posição directa no capital ou pela promoção de fusões&aquisições, à medida em que diversos bancos e outras instituições financeiras entravam em colapso.

Desde então, só as injecções de capital, com vista à «recapitalização» do sistema bancário, que se traduziram em efectivas «nacionalizações» parciais, ascenderam a mais de 545 mil milhões dólares, a 24 bancos de 7 países do centro do sistema. Ao mesmo tempo, os governos têm concedido milhares de milhões de dólares em garantias e avales ao sistema bancário e financeiro. Em paralelo, os principais bancos centrais ao nível mundial tomam acções concertadas de redução das taxas de juro de referência e injectam milhares de milhões de dólares em liquidez no mercado interbancário. Intervenções que visam também trazer confiança aos mercados de capitais, que continuam a deflacionar, no meio de muita volatilidade, numa sucessão de crashs e mini-crashs bolsistas. O FMI estima que só as perdas, ao nível dos activos financeiros e empréstimos dos EUA, possam atingir os 1,4 milhões de milhões de dólares.

As operações de salvamento em curso seguem a resposta do sistema às crises financeiras que tem pontuado as últimas três décadas: nunca deixar «cair» uma instituição financeira que possa por em causa o fluxo constante de crédito ao sistema e injectar liquidez, de forma directa ou indirecta, «encharcando» o sistema de capital-dinheiro. Foi assim na crise das «savings and loans» durante as décadas de 80-90 (a última crise do sector imobiliário nos EUA), no colapso do hedge fund «Long Term Capital Management» em 1998 nos EUA, na crise do sector bancário dos países nórdicos no seguimento do crash bolsista de 1987 ou, em episódios localizados, como o colapso do Credit Lyonnaise em 1994 em França. Os governos tudo fazem para fazer arrancar o «motor» do crédito do qual depende o sistema capitalista, substituindo dívida privada por dívida pública.

Mas face à amplitude da actual crise financeira e ao peso dos activos financeiros detidos pelos principais bancos, levanta-se a questão da sustentabilidade orçamental da resposta tradicional do sistema. Só a título de exemplo, o total de activos detidos pelo ING equivale a quase 3 vezes o PIB da Holanda, ou seja, uma operação de injecção de capital de 1% custaria ao governo holandês 3% do seu PIB, por via do aumento da dívida pública. Ao que acresce o exemplo da denominada «década perdida» do Japão, que no rescaldo do crash bolsista de 1987, entrou num longo período de estagnação económica, do qual ainda não recuperou, apesar de taxas de juro reais negativas e todos os estímulos orçamentais.

A crise financeira vai continuar a agravar-se, na medida que mais ajustamentos serão necessários nos mercados de capitais e no sector bancário, nomeadamente tendo em conta o grau de inflação dos activos financeiros.

O sistema vive hoje a maior crise financeira desde a Grande Depressão da década de 30. Ao contrário das últimas crises financeiras localizadas sectorialmente ou geograficamente, como foi o caso da crise financeira que «varreu» a periferia do sistema capitalista mundial na segunda metade da década de 90 (com destaque para a crise asiática de 1997-1998), a presente crise é global e emana do centro do sistema capitalista mundial. E se o actual episódio de crise pode ser reportado à crise do «sub-prime» de Agosto de 2007 e, recuando a Março de 2000, à crise das empresas «dot.com» - da dita «nova economia», a verdade é que a responsabilidade da actual crise advém do grau de financeirização atingido pelo sistema capitalista mundial. E a financeirização foi a resposta encontrada pelo sistema para a crise estrutural que atravessa, que reflecte a fraqueza e as contradições inerentes ao processo de acumulação de capital, a sua sobre-extensão, sobreprodução e sobreacumulação e que afecta a componente central da reprodução do capital – a taxa de lucro esperada. Uma crise de rentabilidade na Tríade (EUA, UE e Japão), que se arrasta nas últimas três décadas.

A qual acresce um declínio da taxa de reposição do «capital natural», onde a acumulação de capital, que se «alimenta» dos recursos naturais, põe cada vez mais em causa a capacidade de regeneração do meio natural, visível no aumento estrutural dos preços das matérias-primas, de um ponto de vista histórico, nomeadamente o petróleo. Esta é a crise por detrás da(s) crise(s). A actual crise financeira é apenas a ponta do iceberg.

Entre o esvaziamento da «bolha» especulativa de activos mobiliários, em Março de 2000, e a tentativa gorada, de transferência da «bolha» especulativa dos activos imobiliários para os bens alimentares, as matérias-primas e o petróleo, o sistema capitalista vai ficando com falta de «balões de oxigénio», para responder ao avolumar da(s) crise(s), numa explosão sem paralelo do crédito e do capital fictício.

Dois exemplos para ilustração. O valor da dívida internacional titularizada ascendia a quase 22 milhões de milhões de dólares em 2007, ou seja, mais de 40% do produto mundial e quase 2,5 vezes o valor de 2002. Só o valor nocional dos contratos estabelecidos no mercado de derivados, em Dezembro de 2007, ascendia a cerca de 596 milhões de milhões de dólares, ou seja 11 vezes o produto mundial, tendo como base contratos cujo valor de mercado não chegava aos 15 milhões de milhões de dólares.

Estes números reflectem a contradição entre o fraco crescimento da base material, a economia real, nas últimas décadas e o forte crescimento do capital financeiro, sobretudo no centro do sistema. Este crescimento do «direito de saque» sobre a base material, reflecte-se num «cheque sem cobertura», onde se esgota a capacidade de expansão do capital financeiro, por não haver crescimento da base material que o suporte como contrapartida.

As crises financeiras recorrentes do sistema, com diferentes graus de severidade e com um cada vez maior contágio internacional, são a consequência da sua progressiva financeirização e do crescente predomínio do capital financeiro, que se acentuou desde o início da década de 80. Estima-se que a capitalização bolsista, a dívida titularizada e os activos financeiros em posse dos bancos comerciais, representem mais de 4,2 vezes o produto mundial.

Esta tem sido a principal resposta do capitalismo para a crise estrutural - a autonomização dos fluxos financeiros, onde o circuito do capital fica reduzido à transformação de capital-dinheiro em mais capital-dinheiro. Esta foi a resposta «deflacionária» ou neoliberal do sistema, sedimentada na década de 90 com o consenso de Washington, assente no crédito (endividamento) e na inflação dos activos financeiros. Ao contrário da resposta «inflacionária» ou keynesiana, seriam os «défices privados», em vez dos «défices públicos», a tentarem contrariar a tendência inerente ao sistema para a estagnação.

A não obtenção das taxas de lucro esperadas na esfera produtiva, com a estagnação do crescimento da base material, o aumento da concorrência intercapitalista, a sobreprodução e o aumento da composição orgânica do capital, levou (e leva) à transferência das mais valias geradas para a esfera financeira e sua centralização em cada vez menos «mãos».

E esta é a questão central, a baixa tendencial das taxas médias de lucro, que o aumento das taxas de exploração e as derrotas do bloco socialista no começo da década de 90 não conseguiram inverter, como demonstra a evolução das taxas médias de lucro na principal potência imperialista – os EUA.

Ao mesmo tempo, impregna-se a super-estrutura ideológica e usam-se as instituições nacionais (como os bancos centrais) e internacionais (como o FMI), com o suporte do aparelho do Estado (o orçamento), para se criar, quer as condições necessárias ao fomento e sustentação da própria financeirização, quer um quadro potenciador de uma maior intensificação da exploração do trabalho, num contexto de subutilização da capacidade industrial instalada e de crescimento do exército de reserva de desempregados e subempregados, com os cerca de 190 milhões de desempregados e os mais de 1,3 mil milhões de «trabalhadores pobres» existentes a nível mundial em 2007. Na última década e referenciando apenas as estatísticas oficiais, acrescentaram-se mais 35 milhões de desempregados ao exército de reserva «mundial», num quadro de proletarização crescente de quase todas as camadas sociais. No contexto da actual crise, estima-se que o número de desempregados a nível mundial chegue aos 210 milhões em 2009 e que mais 100 milhões de trabalhadores engrossem as fileiras da pobreza.

As crises financeiras são um «sintoma» da crise estrutural que o sistema capitalista atravessa, que não nos pode fazer distrair das causas profundas subjacentes à actual crise – as contradições e limites do modo de produção capitalista. A crise estrutural, com epicentro na potência hegemónica do centro capitalista – os EUA, tem como causa profunda a sobreprodução crescente de amplos segmentos industriais do sistema capitalista mundial e da sobre-acumulação de meios de produção existentes, face às dificuldades crescentes de obtenção por parte dos capitalistas das taxas de lucro esperadas e de realização das mais-valias geradas na esfera produtiva, sem as quais o processo de acumulação capitalista é interrompido. A perenidade dos gastos em investimento e em consumo é indispensável para o processo de acumulação de capital. O investimento para expandir o capital existente. O consumo para realizar a mais-valia. Sem a obtenção das taxas de lucro esperadas, os capitalistas não investem. Com o aumento da taxa de exploração e a desvalorização dos salários dos trabalhadores, o consumo não se efectua, sendo o crédito um substituto imperfeito e temporário.

O capital constitui em si mesmo uma barreira a sua própria expansão, face à contradição existente entre acumulação de capital e a baixa tendencial das taxas de lucro, e, face à contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e as condições limitadas em que se processa o crescimento do consumo.

A ofensiva imperialista procura aumentar, por todos os meios, a taxa de exploração do trabalho – pela intensificação dos ritmos de trabalho, pela redução dos salários reais e pelo aumento do horário de trabalho, procurando extrair mais mais-valias, relativas e absolutas, com a vista a contrariar a baixa tendencial das taxas de lucro. Na tríade, desde a década de 70, tem-se verificado a redução progressiva do peso dos salários no produto/rendimento nacionais, de década para década. Ou seja, tem-se verificado um aumento da parte do produto/rendimento que vai para o capital, o que dá uma indicação sobre o progressivo aumento da taxa de exploração. Só nas últimas duas décadas estima-se que o peso dos salários no rendimento tenha-se reduzido 13 pontos percentuais na América Latina, 10 na Ásia e Pacífico e 9 no centro do sistema capitalista.

O sistema capitalista continua assim mergulhado num longo ciclo de estagnação, com crises recorrentes globais e localizadas, que se pode depreender da contínua desaceleração, de década para década, das taxas médias de crescimento do produto mundial, assim como das taxas médias de crescimento do produto das potências capitalistas mais desenvolvidas (o G7). Estagnação que a progressiva integração na economia mundial de potências, como a China, a Índia e a Rússia, não conseguiu inverter.

Se integração destas economias potenciou a exploração de novos mercados e contribuiu para o aumento da taxa de exploração, nomeadamente com a deslocalização da produção dos segmentos de mão-de-obra intensiva do centro do sistema capitalista, um maior acesso a fontes de «capital natural», uma maior integração do capital produtivo e o «embaratecimento» dos meios de reprodução da força de trabalho, aumentou também o grau de sobreprodução e o excesso de capacidade industrial instalada existente, aumentando as dificuldades de manutenção das taxas médias de lucro. As últimas previsões do FMI, apontam que a desaceleração do crescimento mundial irá acentuar-se em 2008 e 2009.

Mas na fase actual, o sistema capitalista confronta-se com outro problema estrutural – a escassez da matérias-primas no seu centro e a crescente dependência da sua periferia, fruto das consequências do grau atingido de delapidação dos recursos naturais (nomeadamente a água, os solos, a floresta, os recursos minerais e os hidrocarbonetos - petróleo e gás), que põem em causa a normal «alimentação» do processo de acumulação de capital, que conjuntamente com a «bolha» especulativa no primeiro semestre deste ano, fez disparar os preços dos bens alimentares, das matérias-primas e do petróleo. A recente descida dos preços das matérias-primas e do petróleo, em consequência da redução da procura mundial e as perspectivas de forte desaceleração do crescimento do produto mundial, confirma o aumento estrutural dos preços das matérias-primas e sua tendência de subida no futuro, com a progressiva escassez de «capital natural».

A luta pelo domínio dos recursos naturais e das principais fontes de matérias-primas, nomeadamente dos hidrocarbonetos, que são o «motor» energético do sistema, leva à militarização das relações internacionais e à guerra, ao aumento das rivalidades interimperialistas na divisão do mapa-mundo e no reforço da sua presença militar na periferia, a par da concertação estratégica contra outras potências emergentes, como a China.

Assiste-se a uma progressiva recolonização pela Tríade da periferia do sistema capitalista, na ânsia de obtenção de mercados e de controlo de recursos naturais e energéticos, estratégicos ao desenvolvimento e reprodução das relações de produção capitalistas. Assim se explicam as «agressões e ocupações» no Médio Oriente, pelo domínio das maiores reservas mundiais de hidrocarbonetos, e o «despertar» do interesse das grandes potências imperialistas por África.

Neste contexto, avolumam-se as contradições entre o centro do sistema capitalista, que concentra cada vez mais o consumo de bens, matérias-primas e recursos energéticos mundiais, e a sua periferia, numa lógica de desenvolvimento desigual, tendo em conta as necessidades, dos novos países emergentes, em matérias-primas e recursos energéticos para o seu desenvolvimento, como é o caso da China, a Índia, os novos países industrializados do Sudeste Asiático e os países da Europa de Leste. Contradição onde se destaca os EUA que com 5% da população mundial, consomem 25% dos recursos ao nível mundial.

A disputa pelo «capital natural» num contexto em que este se revela progressivamente mais escasso, é motivo de fricção e a principal causa das actuais e futura(s) guerra(s). A baixa tendencial da taxa de reposição do «capital natural» coloca em causa factores essenciais para a sustentação da Humanidade, tornando cada vez mais premente a superação do modo de produção capitalista.

As «respostas» que o sistema encontrou para a(s) crise(s) são apenas saídas «temporárias», para o estado de crise permanente e a tendência inerente para a estagnação. Na medida em que o sistema esgota as suas respostas – «inflacionária» e «deflacionária», num contexto em que os limites naturais se impõem e as contradições internas do sistema se agudizam, onde o sistema sofre cada vez mais de um problema de sobre-extensão, impondo limites à contínua expansão geográfica dos mercados, para além dos limites humanos físicos relativos às possibilidades de aumento da taxa de exploração, mais se acentua o perigo para toda a humanidade de uma saída violenta do sistema – a guerra. Tanto mais quando se abrem brechas na hegemonia dos EUA e surgem novas potências emergentes na periferia do sistema capitalista.

A fragilidade financeira dos EUA, evidenciada pela actual crise, mostra, não só a fragilidade do sistema financeiro e monetário internacional, como põe em causa a posição privilegiada dos EUA, como principal centro financeiro mundial e emissor de moeda «mundial» – o dólar. A forte desvalorização do dólar e dos activos financeiros denominados em dólares, potencia o risco subjacente do excessivo endividamento norte-americano, que tem sido uma peça fundamental, embora precária e artificial, de sustentação do sistema capitalista nas últimas décadas, à custa do crescimento do triplo défice dos EUA – público, privado e externo, financiados pelas transferências dos seus «rivais» da Tríade e de outras potências emergentes, como a China. É de sublinhar que, o défice público e o défice da balança de transacções correntes em 2007, duplicaram face a 2000, atingindo os 345 mil milhões de dólares e os 739 mil milhões de dólares respectivamente.

Assim impõe-se a seguinte questão: qual o grau de destruição que seria necessário dos meios de produção existentes, para repor a valorização do capital «desejada» e encetar um novo ciclo longo de acumulação de capital? A Grande Depressão, a última crise estrutural do sistema capitalista, apesar da já então resposta keynesiana, só foi «resolvida» com ampla destruição dos meios de produção, principalmente na Europa, na sequência da segunda guerra mundial. Os «trinta anos de ouro do capitalismo» ocorreram num contexto de reconstrução e de escoamento da produção dos EUA, por via do plano Marshall para Europa e do Plano Dodge para o Japão. Em paralelo com o crescimento do complexo industrial-militar, sobretudo dos EUA, em ligação com a «Guerra-Fria». Mas dissipados os efeitos do pós-guerra, a crise voltou no final da década de 60. Em 1971, ruía o sistema monetário internacional do pós-guerra. Em 1973, a crise de sobreprodução ressurgia, sob a capa da «estagflação» e no «início» da crise energética, com o atingir do pico de produção petrolífera nos EUA e a guerra de Yom Kippur. Hoje, 35 anos depois, retorna a «estagflação» – estagnação económica com o aumento simultâneo da inflação e do desemprego, no pico da crise energética. Neste contexto ou o sistema consegue revolucionar os meios e instrumentos de produção, o que implica uma mudança do seu actual paradigma tecnológico, energético e agrícola, ou a guerra se torna cada vez mais provável, como saída do sistema para a crise que atravessa.

Num quadro em que se tornam evidentes os limites históricos do sistema capitalista, num contexto de uma crescente ofensiva imperialista que potencia as derivas destrutivas do sistema para toda a Humanidade, com a sombra da guerra e da destruição do meio natural, onde aumentam as desigualdades de rendimento e a pobreza, deixando milhões de seres humanos longe da satisfação das suas necessidades básicas, torna-se imperioso a tomada de consciência por parte dos trabalhadores e dos povos das causas sistémicas das desigualdades sociais e a necessária ruptura com o modo de produção capitalista.

Estamos a viver um momento particular da história que terá de trazer mudanças estruturais ao mundo que conhecemos. Um momento de enormes perigos para a Humanidade, mas também de imensas oportunidades, cujo pêndulo dependerá da luta, resistência e conquistas dos trabalhadores e dos povos. Da luta de classes. A Humanidade precisa do triunfo do socialismo. É cada vez mais necessário afirmar o futuro para construir o presente.

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