Intervenção de António Filipe na Assembleia de República, Debate sobre a despenalização da IVG em Portugal

Assembleia da República tem plena legitimidade, quer para aprovar uma lei que despenalize a IVG, quer para a convocação de um novo referendo

Senhor Presidente, Senhores Deputados,

Há seis anos atrás, depois de aprovado na generalidade nesta Assembleia um Projecto de Lei de despenalização da interrupção voluntária da gravidez a pedido da mulher até às 10 semanas, o PSD obteve o acordo da direcção do PS para impor a realização de um referendo nacional sobre essa matéria.

A legitimidade constitucional e política da Assembleia da República para aprovar a iniciativa legislativa em causa era indiscutível. No entanto, o processo legislativo foi travado pela decisão política de convocação de um referendo que acabaria por inviabilizar a sua conclusão e fazer com que, apesar da aprovação na generalidade de um projecto de lei de despenalização da interrupção voluntária da gravidez até às dez semanas, tudo acabasse por ficar na mesma, até hoje.

Nunca foi segredo para ninguém que a convocação do referendo em 1998 surgiu em consequência de um acordo entre as direcções do PSD e do PS com o objectivo de accionar um derradeiro recurso para evitar que a correlação de forças então existente na Assembleia da República se pudesse traduzir na aprovação de um lei que despenalizasse a interrupção voluntária da gravidez.

Um ano antes, em 1997, quando um projecto de lei do PCP foi recusado por um voto de diferença, ninguém exigiu qualquer referendo nem pôs em causa a legitimidade política e constitucional da Assembleia da República para decidir como decidiu. Ou seja: para os defensores do referendo de 1998, a Assembleia da República tinha legitimidade para decidir manter a criminalização, mas já não tinha legitimidade para acabar com ela.

Em todo o caso, o referendo realizou-se e correspondeu aos objectivos políticos dos seus proponentes que, através de uma operação de grosseira mistificação sobre o que estava verdadeiramente em causa e de autêntico terrorismo psicológico, conseguiram convencer muita gente que o que estava em causa era ser a favor ou contra o aborto, quando o que estava em causa era manter ou não a desumana norma do Código Penal que condena a prisão até três anos as mulheres que interrompam a gravidez.

O resultado é conhecido. Apesar da participação eleitoral ter sido extremamente reduzida e de, por esse facto, o referendo não ter eficácia vinculativa, a vitória tangencial do Não, inviabilizou o processo legislativo que estava em curso e fez com que ainda hoje sejam instaurados processos crime contra as mulheres que interrompam a gravidez.

O resultado é a continuação do flagelo do aborto clandestino e a perseguição criminal das mulheres que, por vicissitudes diversas, se vêem obrigadas a recorrer à interrupção voluntária da gravidez e ficam sujeitas a uma pena de prisão até três anos. O resultado é continuarmos a assistir em Portugal, no século XXI e 30 anos depois do 25 de Abril, à situação estranha, absurda e aviltante, da investigação, acusação, humilhação pública e julgamento de mulheres sob a acusação de terem abortado, como aconteceu na Maia (com condenação efectiva) e mais recentemente em Aveiro.

Perante esta vergonha, que não é apenas uma vergonha nacional, mas verdadeiramente uma vergonha internacional, que ultrapassa as nossas fronteiras e suscita um forte movimento de solidariedade e a perplexidade do mundo civilizado, não basta a opinião hipócrita dos que dizem que são pela criminalização mas que não querem ver as mulheres condenadas.

A forma de evitar a condenação das mulheres não é manter a criminalização e depois, quando as mulheres são julgadas, fazer figas pela absolvição. Se o que se pretende é evitar que as mulheres sejam condenadas, a única forma segura de o evitar, é revogar a absurda norma do Código Penal que as condena a uma pena de prisão até 3 anos.

Só que o PSD e o CDS-PP, que tanto se bateram pela realização de um referendo quando estavam em minoria, agora em maioria, preparam-se para evitar a despenalização, mas desta vez já não querem nenhum referendo.

Os argumentos quanto à subsistência da validade política do referendo de 1998 são do reino do absurdo. O referendo nunca teve eficácia vinculativa devido à diminuta participação dos eleitores. Mas mesmo que tivesse tido alguma eficácia jurídica, os seus efeitos teriam caducado em Outubro de 1998, com o termo da sessão legislativa em que teve lugar. A partir desse momento, a Assembleia da República reassumiu plenamente a sua competência e legitimidade para despenalizar a interrupção voluntária da gravidez sem dependência de qualquer referendo, mesmo que este tivesse sido vinculativo.

Este facto é absolutamente inequívoco. O que a Constituição determina é que os efeitos do referendo caducam com a sessão legislativa e nunca ninguém propôs em sede de revisão constitucional que assim deixasse de ser.

Que os Partidos da direita pretendam manter em vigor a norma do Código Penal que condena a prisão até três anos as mulheres que interrompam a gravidez, é uma opção que se lamenta, mas que tem de se aceitar como legítima. Cada um vota segundo as suas opções e assume perante os portugueses a responsabilidade pelas opções que toma. Agora, o que os Partidos da direita não podem, é atribuir a um referendo uma validade que ele não tem e ainda menos pretender que, uma vez feito um referendo, a sua eficácia, ainda que imaginária, seja eterna.

No momento em que nos encontramos, Assembleia da República tem plena legitimidade política e constitucional, quer para aprovar uma lei que despenalize a interrupção voluntária da gravidez, quer para deliberar propor ao Presidente da República a convocação de um novo referendo sobre essa matéria.

Em 1997, os Partidos da direita entendiam que a Assembleia da República tinha legitimidade para recusar a despenalização da IVG, sem referendo. Em 1998, já entendiam que a Assembleia da República só teria legitimidade para decidir a despenalização se houvesse referendo. Agora, em 2004, a maioria parlamentar prepara-se para recusar a despenalização e recusar o referendo.

Esta decisão tem uma consequência óbvia, que é a de manter tudo na mesma, não em nome de qualquer compromisso que tenha sido assumido para com os eleitores, mas em nome de um acordo de coligação que os portugueses, como é óbvio, não sufragaram.

Senhor Presidente, Senhores Deputados,

O PCP, sobre esta matéria, tem posição e assume-a. O PCP considera que a interrupção voluntária da gravidez a pedido da mulher até às 12 semanas deve ser despenalizada e que a Assembleia da República pode e deve tomar essa decisão, agora ou no futuro, sem necessidade de qualquer referendo. Mas compreende a posição dos mais de 120 mil cidadãos que, assumindo uma posição claramente favorável à discriminalização do aborto, decidiram tomar a iniciativa cívica de se dirigir a esta Assembleia, solicitando a realização de um novo referendo.

O PCP sabe distinguir perfeitamente entre os propósitos obstrucionistas do referendo de 1998 imposto pela direita e as propostas de referendo que hoje debatemos, subscritas por quem está connosco na luta que há muitos anos travamos pela saúde pública, pela dignidade humana, pela maternidade e paternidade responsáveis.

Por reconhecer essa diferença, o PCP aceitou que na ordem do dia deste seu agendamento potestativo, pudessem ser incluídas, para além das iniciativas legislativas de despenalização do aborto, também as propostas de realização de um novo referendo sobre essa matéria.

A iniciativa popular de referendo que hoje debatemos, a primeira da nossa história constitucional, cuja legitimidade é indiscutível e está devidamente certificada pelo facto de reunir todas as condições constitucionais e regimentais para ser hoje debatida em Plenário, exprime o anseio compreensível de largos sectores da opinião pública favoráveis à despenalização do aborto, de intervir civicamente para a concretização desse objectivo.

Por tudo o que fica dito, o sem que isso signifique o acordo com o processo dos referendos ou o entendimento de que a AR deixa de ter legitimidade para decidir no futuro sobre essa matéria, o Grupo Parlamentar do PCP, caso sejam rejeitadas as iniciativas legislativas que visam despenalizar a interrupção voluntária da gravidez, dará o seu voto favorável às propostas de realização de um referendo que possa dar de novo a palavra aos cidadãos.

Disse.

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