Artigo de Vítor Dias no «Semanário»

"Tudo bem assim"

Sim, está tudo bem assim e não podia ser de outra maneira: continuaremos a falar e a comportarmo-nos como se fosse uma lei de despenalização do aborto que iria desencadear “matanças” em série de inocentes e chocantes atentados contra o direito à “vida” e pouco nos importaremos com as mesmas “matanças” e “atentados” que, segundo as nossas concepções, deveríamos ver nos abortos clandestinos que se fazem todos os dias em Portugal e que, com a nossa inflexibilidade, ajudamos a manter.

Está tudo bem assim e não podia ser de outra maneira: continuaremos a fazer de conta que uma lei de despenalização imporia a alguém o que à sua vontade e consciência repugna e sempre escamotearemos que é a criminalização actualmente consagrada no Código Penal que representa a imposição a outros das nossas concepções e a arregimentação da força coerciva e punitiva do Estado para imposição geral dos nossos princípios e escolhas.

Está tudo bem assim e não podia ser de outra maneira: continuaremos a agitar a bandeira das formidáveis e ansiadas aproximações às condições de vida, ao progresso e aos padrões de bem-estar dos outros países europeus mas, nunca por nunca ser, em matéria de aborto, pela simples razão de que ao nosso pequeno e ocidental rectângulo foi confiada a inalienável missão de se constituir em última barricada de defesa do que chamamos os nossos mais “sagrados valores”.

Está tudo bem assim e não podia ser de outra maneira: porque os tempos já não são o que foram, sob o fundo musical dos violinos do Helmut Zacharias, continuaremos a dedicar sábias e estudadas palavras de compreensão em relação às mulheres que recorrem ao aborto, prosseguiremos com essa feliz invenção do “crime” cujas autoras afinal não são “criminosas” e daremos vivo e persistente combate aos mal-intencionados e subversivos que preferem concluir que, se não há “criminosas”, então “crime” não há certamente.

Está tudo bem assim e não podia ser de outra maneira: continuaremos a manifestar até algum desgosto e incómodo pela ocorrência de julgamentos como o da Maia e agora o de Aveiro (e os outros que se vão seguir) e a proclamar que, do fundo das nossa sensíveis almas, não desejamos nenhumas condenações de mulheres mas, num passe de mágica, passaremos deliberadamente ao lado da devastadora evidência de que é a nossa oposição à alteração da lei que nos torna politicamente responsáveis pelas investigações, pelos processos, pelos julgamentos e eventuais condenações de mulheres por recurso ao aborto e pelo cortejo de infâmias, humilhações e indignidades que consigo transportam.

Esta tudo bem assim e não podia ser de outra maneira: condescendentes e generosos, e sob a luminosa orientação do nosso querido Bagão Félix, continuaremos, aqui e ali, a exibir a nossa abertura para que as penas de prisão possam vir a ser substituídas por outros castigos como, por exemplo, o trabalho comunitário designadamente em instituições que cuidam de crianças, mas assumidamente como forma de “expiação” pelas mulheres da sua “culpa” e dos seus “pecados”, sejam os de agora seja o original.

Está tudo bem assim e não podia ser de outra maneira: continuaremos a sustentar que, depois do referendo de 1998, só por novo referendo se pode voltar ao assunto, embora nos tenhamos esquecido de escrever isso na Constituição ou na lei, apesar de termos sido também nós a colocar na Constituição a distinção entre referendos vinculativos e não vinculativos e não obstante pensarmos que, caso um futuro referendo nacional sobre a dita “Constituição Europeia” não tivesse carácter vinculativo, a Assembleia da República teria não apenas a legitimidade mas o dever de proceder à ratificação de um novo Tratado, porque seria impensável que se ficasse à espera de um longínquo novo referendo.

Está tudo bem assim e não podia ser de outra maneira; só nos falta aprender a lidar melhor com o terrível impacto sobre a opinião pública destes julgamentos de mulheres por recurso ao aborto e que vão certamente crescer quer porque as polícias têm pouco que fazer quer porque as denúncias por recurso ao aborto já enriqueceram a panóplia dos instrumentos de vinganças e ajustes de contas entre pessoas.

“Está tudo bem assim e não podia ser de outra maneira” é uma frase de António de Oliveira Salazar. Por causa das assimetrias na distribuição do sentido de humor, o autor destas linhas, muito a sério e com a sangue a ferver, sustenta que está tudo mal assim e pode e deve ser de outra maneira.

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