Intervenção de Jerónimo de Sousa, Secretário-Geral, Sessão Pública - 90 Anos da Revolução de Outubro

90 Anos da Revolução de Outubro

Estimados camaradas e amigos, celebramos o nonagésimo aniversário da Revolução de Outubro!

Não subestimando a luta milenária do ser humano contra a opressão e a exploração, desde a revolta dos escravos de Roma, dos servos contra os senhores feudais, as insurreições operárias do século XIX até a Comuna de Paris, que influenciaram de forma determinante a marcha do mundo e os avanços civilizacionais - a Revolução de Outubro diferenciou-se na medida em que a classe secularmente dominada passou a classe dominante, rasgando caminho para a construção de uma sociedade nova nunca antes conhecida pela humanidade, portadora de um projecto de eliminação de todas as forças de exploração e opressão social e nacional, defensor da paz e da amizade entre os povos.

Os detractores da história, retalhando os factos, fogem à realidade social que resultou da herança czarista num país devastado pela guerra imperialista, com um povo barbaramente fustigado pela exploração, pela repressão, pela fome, pelo analfabetismo. Os operários, os camponeses, os revolucionários de Outubro, ousaram não só «tocar» mas «conquistar o céu».

A Revolução de Outubro tem características próprias resultantes da história, da cultura, das tradições, da realidade socio-económica da sociedade russa e do império czarista. Os «sovietes» e o poder soviético, o sistema de partido único, não são produto de uma concepção teórica mas sim do processo concreto do percurso revolucionário russo. O que marcou o acto e o processo revolucionário de Outubro foi, e é, o seu carácter universal, a sua correspondência com as exigências do desenvolvimento social, inaugurando uma nova época histórica – a passagem do capitalismo ao socialismo científico que Marx e Engels fundaram, e que Lénine desenvolveu nas condições modificadas pelo imperialismo.

Foi a primeira revolução socialista vitoriosa em que pela primeira vez a classe operária e os seus aliados (com o campesinato em primeiro lugar) conquistaram o poder e reestruturaram a sociedade em função do interesse dos trabalhadores e da esmagadora maioria do povo.

Foi uma realização pioneira, sem precedente histórico, já que pela primeira vez em milénios de sociedade humana, o sonho, a utopia, a aspiração se transformou em projecto político e empreendimento tangível de edificação de uma sociedade nova, sem classes sociais antagónicas e liberta da exploração do homem por outro homem.

Partindo da análise das condições objectivas e subjectivas, do papel da classe operária, dos partidos revolucionários, do estádio e da natureza do capitalismo, das questões estratégicas e tácticas sobre a necessidade e a possibilidade da revolução para a superação do capitalismo, sem dúvida que o Partido de Lénine não delimitou a fronteira onde acabava a audácia e começava o risco.

Como Marx escreveu a propósito das dificuldades da luta travada no período da Comuna: «A história mundial seria na realidade muito fácil de fazer-se se a luta fosse empreendida em condições nas quais as possibilidades fossem infalivelmente favoráveis». Em 1917, o poder foi conquistado encetando-se um extraordinário processo de construção de uma nova sociedade onde milhões de seres humanos outrora excluídos e espoliados de qualquer intervenção política e social se tornaram protagonistas e obreiros do seu próprio futuro.

A consagração do trabalho com direitos e livre da exploração, o fim da discriminação e a promoção e efectivação da igualdade entre mulheres e homens, o direito à saúde, o ensino e a cultura transformados em desígnio revolucionário e condição de liberdade e de progresso, a nacionalização da terra e sectores estratégicos, constituiriam a base e os alicerces mobilizadores para responder à questão de que não basta conquistar o poder, é preciso exercê-lo e defendê-lo, confiando na força e nas forças determinantes: os trabalhadores e o povo.

Num país com atrasos colossais, predominantemente rural e onde persistiam as relações feudais, o processo revolucionário de Outubro conduziu a avanços impetuosos transformando a pátria dos «sovietes» num país mais industrializado e socialmente mais avançado provocando efeitos tremendos à escala planetária.

As transformações e realizações revolucionárias, a sua força de exemplo permitiram que noutros países se alcançassem importantes conquistas sociais, a construção do denominado Estado Social em países capitalistas desenvolvidos, onde as classes dominantes receavam novas revoluções sociais.

Surgiram fortes partidos comunistas e movimentos de libertação nacional em numerosos países colonizados ou semi-colonizados (entre outros Índia, China, Vietname, Coreia, Egipto e Iraque).

A Revolução Soviética, os seus êxitos e avanços e o surgimento do movimento comunista internacional abalaram profundamente as classes dominantes de todo o planeta que curavam as feridas da guerra imperialista de 1914-18. A sua reacção não se fez esperar: cinco anos após a Revolução de Outubro e no seguimento de lutas de grande dimensão e impacto da classe operária italiana, a grande burguesia recorreu a uma solução de violência e força que haveria de lançar o planeta para a catástrofe: o fascismo. Também aqui a força do exemplo deu ânimo às classes dominantes. A ascensão de Hitler e do nazismo teve a simpatia e o silêncio cúmplice das classes dirigentes europeias como se verificou perante a militarização da Renânia, a anexação da Áustria e o vergonhoso conluio de entrega da Checoslováquia a Hitler.

A coberto da necessidade de salvar a paz e da política de «amansar a fera» o cálculo político do capital europeu era, mesmo com o sacrifício de alguns povos e países, direccionar a bestialidade nazi para (como afirmou o Primeiro-Ministro britânico Chambernain em Munique) «resolver a questão russa».

Coube à URSS e aos comunistas a contribuição determinante para derrotar o nazi-fascismo que em 1941 controlava a totalidade da Europa continental desde a Península Ibérica até às portas de Moscovo. Aqui concentraram três quartos do seu poderio militar. Em Leninegrado, Estalinegrado e Kursk, como noutros campos de batalha em solo soviético, começou o princípio do fim do nazi-fascismo, sem esquecer a resistência épica de partidos comunistas na Grécia, Itália, França e Jugoslávia.

O nazi-fascismo foi derrotado. O preço pago pela União Soviética foi 20 milhões de mortos e um país devastado pela barbárie. O «emendar de mão» dos dirigentes europeus face a Hitler não resolveu o seu principal problema: a «questão soviética».

A correlação de forças existente no período imediatamente a seguir à 2ª Guerra Mundial, com os processos de conquista social e de libertação nacional que irradiavam em numerosos países, obrigou os representantes do capitalismo à cedência táctica sabendo donde vinha o perigo e o exemplo.

Logo que tiveram condições, e com o imperialismo norte-americano à cabeça, encetaram a ofensiva económica, ideológica e militar a nível externo recorrendo a meios e forças poderosíssimos. Da invasão à chantagem nuclear, aos métodos ora sofisticados, ora violentos no plano ideológico anticomunista e anti-soviético, a convergência de um vasto leque de forças económicas, políticas, religiosas, militares, de espionagem, da extrema direita à social-democracia e aos grupos trotskistas e maoistas – valeu tudo!

Estará ainda por avaliar com mais rigor e profundidade o peso dos factores externos nas derrotas do socialismo e da desintegração da União Soviética, mas isso não invalida que, como se refere no nosso XIV Congresso, se tornou nítido terem sido cometidos erros de avaliação que por um lado levaram a abrandar a vigilância em relação aos canais de influência contra-revolucionária do capitalismo e, por outro, a exagerar resultados, secundarizar tendências negativas e até a justificar política e ideologicamente uma realidade que cada vez mais se distanciava de referências básicas do ideário comunista.

Os erros e desvios cometidos em determinadas condições históricas conduziram à essência e concepção de um «modelo» que amarrou e se divorciou das forças sociais e humanas que se libertaram e fizeram triunfar a Revolução. «Modelo» que negou princípios e o desenvolvimento da teoria revolucionária do marxismo-leninismo, subverteu a legalidade socialista, afastou e secundarizou a participação e a intervenção dos trabalhadores e traiu os princípios fundamentais do ideal comunista. Tais concepções e práticas, aliadas à pressão externa, conduziram à derrota que nem os meios brutais do nazi-fascismo tinham conseguido.

E havendo, de acordo com o materialismo histórico, leis gerais do processo de transformação social, não há modelos de socialismo, nem as revoluções se exportam ou copiam. Evocando nós o exemplo da Revolução de Abril, como consta da Resolução Política do nosso XIV Congresso, uma das lições a tirar das primeiras experiências de uma sociedade nova, porventura a primeira, será a de que o empreendimento revolucionário de transformação socialista tem de ser necessariamente obra das próprias massas e que a sua participação, consciente, empenhada e criadora é indispensável ao seu triunfo. Assim se quis com a Revolução de Outubro.

A reflexão crítica sempre sujeita a análises mais fundas não pode no entanto conduzir à negação do que representou para os trabalhadores e para os povos no plano político, ideológico e social, nas questões da paz e da guerra, a existência da URSS. Não acolhe a claudicação nem da luta, nem do ideal comunista cuja actualidade e validade estão colocados na ordem do dia se olharmos para o mundo em que vivemos.

Num quadro actual profundamente contraditório no plano nacional e internacional, onde convivem ameaças e perigos muito sérios, com exigentes mas reais possibilidades de resistir, lutar e até avançar, para além de celebrar vale a pena reflectir e tentar compreender a Revolução de Outubro, com tudo o que ela comportou de novo, as dificuldades com que se deparou, o que representou como primeira tentativa histórica, mas simultaneamente procurar situar na longa duração o seu significado e a significação da dolorosa derrota da edificação da sociedade que tinha como objectivo o socialismo e o comunismo.

Vale a pena fazê-lo nesta fase em que a ideologia burguesa canta hosanas ao triunfo do capitalismo apresentado como sistema eterno para a história humana. Só que o mundo está mais injusto, mais inseguro, menos pacífico e menos democrático.

Desencadeia o capitalismo mais do que um ajuste de contas, resultante da sua natureza, uma ofensiva que comporta a recuperação de todas as parcelas de domínio perdido por efeito directo ou indirecto das conquistas e avanços da Revolução de Outubro e ao estímulo e confiança que deu ao movimento operário, popular democrático e de libertação nacional.

É exaltante imaginar quanta força foi necessária ter, quanta energia, criatividade e inteligência para iniciar a senda da construção dessa nova sociedade e dos avanços civilizacionais. E avaliar as forças gigantescas que se juntaram para num processo de acumulação de forças conseguir derrotar a Revolução de Outubro.

A ideologia dominante e os seus defensores persistem no desfiguramento da Revolução de Outubro para tentar evitar que os trabalhadores e os povos tenham a compreensão e a consciência da natureza predadora e cruel do capitalismo quando expropria direitos sociais e civilizacionais, quando leva a guerra a várias partes do globo, sempre em nome de mais e mais lucro.

Envolvido numa crise profunda, o capitalismo desencadeia uma ofensiva neoliberal no período de 79-85 tendo como epicentro mais um vez os EUA, que constituiu um ponto de viragem fulcral na correlação de forças entre o capital e o trabalho na ofensiva de classe contra os trabalhadores, os seus sindicatos e partidos, no reforço da hegemonia dos EUA designadamente ao nível financeiro e militar. Tal ofensiva foi articulada com o objectivo geopolítico de derrotar a União Soviética e contou com aliados internos, elementos da própria direcção política.

A implosão dos países socialistas foi um episódio central na história da luta de classes.

Confirmou-se aquilo para que em tese Lénine havia alertado: «Imaginar a história mundial avançando suave e regularmente sem dar por vezes saltos gigantescos para trás, não é dialéctico, não é científico, é teoricamente incorrecto».

Potenciando a correlação de forças a seu favor, com a cumplicidade ou capitulação da social-democracia, o capitalismo procurou respostas para a crise estrutural em que estava envolvido.

Contudo, tais respostas aceleraram as suas contradições e limites revelando a insustentabilidade intrínseca à acumulação capitalista. Com a chamada globalização capitalista inverteram-se os fluxos financeiros, passando dos países subdesenvolvidos para os mais desenvolvidos. Com o acentuar da exploração o desemprego, a fome, a pobreza, a doença (com o regresso de doenças que tinham sido erradicadas), a toxicodependência estendem-se e crescem à escala planetária e vitimam muitos milhões de seres humanos. As espoliações e as guerras banalizam-se.

Por outro lado agudiza-se a contradição entre a acumulação do capital e os limites suportáveis pela natureza, com a delapidação rápida dos recursos naturais e a progressiva escassez numa acção irracional na gestão dos recursos por parte do sistema, a progressiva concentração dos consumos e poluição subjacente nomeadamente ao nível da energia que representam um sério entrave para a acumulação capitalista e um elevado risco para toda a humanidade.

Mas com diferentes graus de intensidade, diferentes localizações, diferentes condições conjunturais surgem e ressurgem crises que lhe dão um carácter sistémico. Entretanto, sem freio nos dentes, procura arrasar direitos dos trabalhadores e dos povos conquistados a partir da Revolução de Outubro e dos seus efeitos.

No entanto, na história recente e no curto espaço que medeia desde a derrota do socialismo e a desintegração da URSS – apesar da poderosa, sofisticada e amplificada campanha ideológica sobre a natureza e o carácter do capitalismo e do imperialismo, procurando apresentá-lo como civilizável, democratizável, perene e sistema final da história – os trabalhadores e os povos resistem, lutam e conquistam direitos e soberania.

Há que ter a consciência que o capitalismo já deu mostra de larga sobrevivência e capacidade de regeneração, de ser capaz de revolucionar os meios de produção, de encontrar novas e velhas formas de intensificar a exploração, de mudar o paradigma energético ou tecnológico. Mas, tal como a lepra não larga o leproso, o capitalismo não consegue resolver contradições inerentes ao seu modo de produção, ao seu carácter parasitário e injusto, à embriaguês do lucro sem limite. Não pode alterar o seu «código genético».

A progressiva militarização da economia torna os conflitos e as guerras subjacentes saídas da crise, enquanto saída para a utilização/destruição de potencial produtivo.

A questão está colocada: a humanidade convive hoje com um mundo carregado de enormes perigos. O sistema pode responder com a barbárie, a destruição e a guerra como fez no século XX. Os riscos são tão grandes que uma nova social-democracia emergente se volta a recompor em torno da teoria geral de Keynes para salvar o capitalismo dos seus excessos cumprindo assim o seu triste papel histórico ao lado das classes dominantes.

Mas, nesta fase crucial da história surge à escala de massas a consciência das causas sistémicas das desigualdades sociais, a apontar o dedo acusatório ao capitalismo, a procurar saídas e soluções, embora incorrendo ainda no benefício da dúvida sobre as soluções reformistas desta nova social-democracia.

As crises estruturais do capitalismo são momentos chave para a intensificação da luta de classes, fases potenciadoras da consciência da classe operária e dos trabalhadores e do desenvolvimento da acção revolucionária.

Para quem, como nós, persiste na luta pelo socialismo a superação do sistema exige em certos momentos históricos um programa mínimo de resistência e luta pela melhoria das condições de vida das camadas sociais mais desfavorecidas, um projecto de desenvolvimento económico e social endógeno virado para a satisfação das necessidades humanas, uma democracia avançada em todas as vertentes das relações humanas que ao mesmo tempo projecte, crie e potencie as condições revolucionárias para a real transformação da sociedade.

A «velha ordem» existente implica a questão de saber se é possível produzir uma classe pronta e capaz de cortar as amarras com o capitalismo, que reconheça o seu papel na transição para uma sociedade socialista, alicerçado na sua ideologia, nas suas aspirações emancipadoras e nos seus direitos concretos, criando ou reforçando o seu Partido num confronto tenaz com a natureza das relações de produção capitalista e da classe dominante.

Ante as derrotas do socialismo a questão está em saber se tais derrotas alteraram a natureza exploradora, opressora e agressiva do capitalismo, se há ou não necessidade dos partidos comunistas e do seu projecto transformador e revolucionário. Mesmo nos países onde a desorientação e o liquidacionismo conduziu ao seu desaparecimento, os trabalhadores e os povos, com o nome de comunistas ou outros haverão de recriá-los e reconstituí-los.

Não temos as soluções todas. Mas temos um rumo e uma resposta ao sistema capitalista. O capitalismo e os seus defensores mistificam a história e alcance da Revolução de Outubro, tentam arredar do sentir e do pensamento do ser humano o sonho e a utopia por saberem que o socialismo não é utopia, não é só uma possibilidade. O socialismo é a alternativa ao capitalismo e ao imperialismo.

O nosso Partido, criação e obra da classe operária portuguesa que criativamente se definiu como partido da classe operária e de todos os trabalhadores, é inseparável da influência e impacto da Revolução de Outubro.

A importância da Revolução de Outubro na história do PCP manifestou-se de modo particular na reorganização de 1929. As deslocações de Bento Gonçalves à URSS, primeiro como sindicalista e depois como dirigente do Partido, marcaram profundamente a orientação ideológica e a linha política e organizativa.

A própria existência da URSS, o seu papel no concerto das nações, a sua política de paz e solidariedade, deram uma contribuição determinante para a criação do clima internacional favorável ao triunfo da Revolução de Abril e travaram planos de uma intervenção de força na vida interna de Portugal.

O PCP, partido patriótico e simultaneamente internacionalista, considerando o processo português intrínseco ao processo revolucionário mundial, estará sempre solidário com a luta dos comunistas e povos de todo o mundo, estará sempre aberto a aprender, a apreender e responder aos novos fenómenos com conclusões políticas, sociais e ideológicas que rasguem caminhos e perspectivas para corrigir erros, ultrapassar dificuldades e construir o futuro. Fundado sob a influência da Revolução de Outubro assume com orgulho a sua identidade e experiência próprias, apresenta ao povo português o seu próprio programa e o seu projecto de sociedade socialista para Portugal.

Aos seus ideais, à sua luta, ao seu projecto juntará a esperança e a confiança na convicção que outro mundo é possível, com liberdade, com democracia, com bem-estar social, com a criação cultural socialmente reapropriada com o poder dos trabalhadores, com a vitória da causa universal dos trabalhadores no futuro do socialismo e do comunismo.

Viva a Revolução de Outubro!
Viva a solidariedade internacionalista!
Viva o Partido Comunista Português!

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