Intervenção de António Filipe, na Assembleia da República
Sr. Presidente,
Srs. Deputados:
Já tínhamos assistido a processos de revisão constitucional e
processos referendários transformados em trapalhadas, mas aquilo em que
se tornou este processo de revisão constitucional consegue ir para além
de tudo o que já aconteceu em processos anteriores e do que era
possível imaginar.
De tal forma, que é difícil encontrar um adjectivo que não falte ao
respeito a esta Casa, à dignidade que ela merece e que deveria fazer
por merecer, para qualificar a forma como decorreu este processo de
revisão.
Assistimos aos trabalhos da Comissão Eventual para a Revisão
Constitucional, que, durante dois dias, discutiu as várias propostas
constantes dos projectos de revisão constitucional e aprovou, por
maioria indiciária de dois terços – com o voto contra do PCP – um texto
de revisão que, no momento em que é submetido ao Plenário, já foi
deitado para o caixote do lixo por todos os que o conceberam, que o
elaboraram, que o propuseram, que o defenderam afincadamente na
Comissão Eventual para a Revisão Constitucional e que o votaram, mas
que agora o renegam, pura e simplesmente!
De tal maneira, que já nem constava do guião! Era como se ele já
não existisse: «riscaram do mapa» os trabalhos da Comissão Eventual
para a Revisão Constitucional.
O mais incrível é que não ocorreu, de então para cá, nenhum facto
que fosse imprevisível ou, sequer, imprevisto, porque no momento em que
decorreram os trabalhos da Comissão Eventual para a Revisão
Constitucional já tinha tido lugar o referendo em França e já se sabia
que a aquele país não ia ratificar o Tratado que Estabelece uma
Constituição para a Europa. Mais: foi na própria noite de quarta-feira,
dia 1 de Junho, data em que reuniu a Comissão Eventual para a Revisão
Constitucional, que se conheceu o resultado do referendo realizado na
Holanda e, ainda antes de ter sido feita a votação indiciária na
Comissão, já se sabia que havia um segundo «não» da Holanda à
ratificação do Tratado Constitucional Europeu.
Portanto, nessa altura, sabia-se que não poderia deixar de haver
uma interrupção e o abandono do processo de ratificação deste Tratado
em concreto, em consequência dos resultados dos referendos que tiveram
lugar em França e na Holanda.
Todos o sabiam, embora nem todos o reconhecessem.
Isso mesmo foi dito e afirmado repetidamente na Comissão Eventual para
a Revisão Constitucional, afirmado repetidamente não por termos
qualquer vocação para fazer futurologia – porque não temos – mas porque
era inevitável essa interrupção, essa paragem no processo de
ratificação do Tratado. Já então só não via isso quem não quisesse ver,
e era o caso: os Srs. Deputados do PS do PSD e do CDS-PP não queriam
ver, não queriam reconhecer a realidade.
Na altura, diziam que não se devia parar o processo de ratificação
porque não podiam ser os outros a decidir por nós; agora, os senhores
já se sentem autorizados a parar…
Isto é, a posição oficial do Governo português – porque havia
aquela distinção entre a posição do Prof. Freitas do Amaral/ministro e
a posição do Prof. Freitas do Amaral/cidadão – era a de que se devia
prosseguir com o processo de ratificação; porém, a decisão do Conselho
Europeu foi outra e, agora, os senhores já não se sentem incomodados
por decidir em função dos outros!
O que é inequívoco é que, a partir do momento em que houve uma
recusa por parte do povo francês em ratificar o Tratado, obviamente
tudo tinha de ser repensado e a ratificação deste Tratado, enquanto
tal, já não fazia sentido.
Os senhores recusaram-se a reconhecê-lo, mas essa realidade já
«entrava pelos olhos dentro» na altura. E a posição – que eu designaria
por «euro-insensata» – para que os senhores quiseram arrastar esta
Assembleia conduziu a uma situação desprestigiante, que é aquela em que
se encontra hoje a Assembleia da República: a de ser responsável pelo
processo de revisão constitucional mais bizarro de que há memória entre
nós.
Os senhores vão rejeitar tudo o que aprovaram. Tudo! Não se
aproveita rigorosamente nada. E vão conduzir o processo de revisão
constitucional a um resultado que poderia ter sido alcançado – o
resultado que afirmam agora querer alcançar – se, pura e simplesmente,
tivessem votado favoravelmente a única proposta que o PCP apresentou,
mas que os senhores rejeitaram em Comissão. Aliás, é uma proposta que
ainda têm oportunidade de aprovar, porque continua de pé e vai ser
votada daqui a pouco.
Não contentes com a figura que já fizeram, a de «varrer para
debaixo do tapete» todo o texto que aprovaram em Comissão, mais uma vez
os Srs. Deputados do PS, do PSD e do CDS-PP não querem aprovar
a proposta do PCP que está em cima da mesa: preferiram «cozinhar», elaborar uma outra proposta que tem,
assumidamente, o mesmo objectivo e o mesmo âmbito de aplicação, mas que, mais uma vez, se encontra
redigida de uma forma que é equívoca e manifestamente imperfeita,
como terei oportunidade de procurar demonstrar quando discutirmos, na
especialidade,
esse artigo. A verdade é que a vossa proposta tem uma única razão
de existir: a recusa de votarem favoravelmente a proposta apresentada
pelo PCP na CERC, não por não estarem de acordo com ela mas por ser do
PCP! É a única razão pela qual os senhores não a querem aprovar.
O que é que pretendem? Pretendem recusar-se a dar razão ao PCP
neste processo e a reconhecer que tínhamos razão desde o início. Só que
não é desse modo que os senhores vão evitar o óbvio, porque toda a
gente já percebeu que nós tínhamos razão e que a proposta que
apresentámos era a que, já naquela altura, se revelava mais realista e
adequada para permitir o objectivo pretendido: o de os portugueses
poderem referendar, futuramente, a participação de Portugal no processo
de integração europeia, tendo em conta a manifesta inviabilidade deste
Tratado Constitucional Europeu.
Os senhores recusam-se a reconhecer que o PCP tinha razão, mas isso já pouco adianta, porque toda a gente o percebeu.
Se os senhores tivessem votado favoravelmente a proposta do PCP
tinham tido menos trabalho, não precisavam de estar, hoje, a tentar
elaborar uma proposta de substituição e ficavam com uma norma
constitucional melhor do que aquela que hoje inventaram à pressa, não
para salvar a face mas, precisamente, para esconder a face.
Sr. Presidente,
Srs. Deputados:
O PCP defende que deve haver um referendo sobre um futuro tratado
relativo à participação de Portugal no processo de integração europeia.
Essa é e sempre foi a
nossa posição desde que, em Portugal, passou a ser admitido o
referendo nacional como figura constitucional e desde que, pela
primeira vez, fomos confrontados com a aprovação de um tratado desta
natureza – o Tratado da União Europeia, assinado em Maastricht em 1992.
Nessa altura, propusemos que fosse submetido a referendo dos
portugueses, contra a opinião do PS e do PSD.
Aliás, até agora, os senhores sempre
inviabilizaram, de uma forma mais directa ou mais encapotada, a
possibilidade de os portugueses se pronunciarem em referendo
vinculativo sobre os tratados relativos à participação de Portugal no
processo de integração europeia. Essa é que é, para nós, a questão
essencial, e foi o que propusemos, mais uma vez, neste processo de
revisão constitucional.
Que tratados estão em causa? Estão em causa, precisamente, aqueles
que estão previstos no n.º 6 do artigo 7.º da Constituição – esses e
não outros. Daí que a formulação que os senhores agora vêm propor
possa, mais uma vez, criar equívocos nesta matéria.
Do nosso ponto de vista, a solução mais segura para atingir este
objectivo seria permitir que os portugueses se pronunciem em referendo
sobre os tratados que estão previstos no n.º 6 do artigo 7.º da
Constituição da República, precisamente aqueles que prevêem a
possibilidade de Portugal poder «convencionar o exercício, em comum, em
cooperação ou pelas instituições da união, dos poderes necessários à
construção e aprofundamento da União Europeia.» Há uma formulação
constitucional adoptada e, portanto, a fórmula mais segura seria
remeter para os tratados aqui previstos, porque é destes que estamos a
falar e não de quaisquer outros.
Esta é a questão que está em cima da mesa e que, mais uma vez, os
senhores procuram evitar por caminhos mais ou menos tortuosos, com a
aprovação de formulações que podem vir a revelar-se equívocas no futuro
e a comprometer a possibilidade de os portugueses se pronunciarem –
saliento – a título vinculativo e de uma forma clara, em que se saiba,
à partida, que o resultado «sim» conduzirá ao «sim» e o «não» conduzirá
ao «não», isto é, à recusa de ratificação do tratado que estiver em
causa. Isto, sim, seria importante consagrar neste processo de revisão
constitucional.
Quando estiver em cima da mesa – não é o que acontece agora – um
tratado da natureza daqueles que estão previstos no n.º 6 do artigo 7.º
da Constituição, relativo à participação de Portugal no processo de
integração europeia, os portugueses devem poder pronunciar-se em
referendo, a título vinculativo, para se saber se Portugal deve ou não
ratificar o tratado proposto.
É o que continuamos a defender neste processo de
revisão constitucional. Pensamos ainda que essa norma deveria ser
consagrada no artigo 115.º da Constituição, relativo ao referendo,
porque não há razão alguma para que, sendo uma norma de carácter
permanente, a aplicar num futuro incerto e a um ou mais tratados, ela
seja incluída numa disposição transitória da Constituição. Razão
absolutamente nenhuma!
Continuamos, por isso, convencidos de que a solução que propusemos
na Comissão Eventual para a Revisão Constitucional, e que retomamos
aqui, no Plenário, seria a mais adequada para permitir este grande
objectivo, que é o de os portugueses poderem pronunciar-se,
efectivamente, sobre a participação de Portugal no processo de
integração europeia.
(...)
Sr. Presidente,
Queria pronunciar-me, agora na especialidade, sobre a proposta de
artigo 294.º-A que hoje mesmo nos foi apresentada e subscrita pelos
Srs. Deputados do PS, do PSD e do CDS-PP, começando por dizer que, do
nosso ponto de vista, a formulação que adoptam não é feliz. De facto,
não vemos razão alguma para que esta disposição seja apresentada como
transitória e não como um preceito do artigo 115.º da Constituição.
Se o Sr. Deputado diz que esta disposição, o artigo 294.º-A,
lembro, não é transitória, penso que podia ter sido incluída no artigo
115.º, que se refere ao regime do referendo. Se o Sr. Deputado
reconhece que esta norma, o artigo 294.º-A, está no capítulo das
disposições finais e transitórias, mas, depois, me diz que não é uma
norma transitória, então aí há algo mais a esclarecer, o que, estou
certo, V. Ex.ª não deixará de fazer.
A questão é, contudo, esta: se os Srs. Deputados quisessem inserir
a disposição que aprovaram na CERC no capítulo das disposições finais e
transitórias, eu perceberia perfeitamente. Essa norma era tão
transitória que hoje já transitou! Como digo, isso ainda se
compreendia. Todavia, ao dizer que esta disposição que hoje nos
apresentam será aplicável a qualquer tratado que vise a construção e o
aprofundamento da União Europeia, torna-se óbvio que esta não é,
manifestamente, uma disposição transitória e que não tem razão alguma
para ser uma disposição final. Como tal, esta é, obviamente, uma
delimitação do âmbito do regime do referendo nacional em Portugal e,
assim, só teria de ser incluída no artigo 115.º da Constituição, que é
o que se refere a essa matéria.
Mas, relativamente à formulação em si, há dois aspectos que importa
salientar. Desde logo, creio ser manifestamente redundante falar-se na
convocação e efectivação do referendo. Isto porque, obviamente, se o
referendo é convocado, efectiva-se. Por outro lado, para ser
efectivado, o referendo teve de ser convocado. Como tal, colocar as
duas expressões na norma parece-me manifestamente redundante.
Para além disso, os senhores referem «a aprovação de tratado que
vise a construção e o aprofundamento da União Europeia.» Ora,
referendar um tratado que vise a construção da União Europeia só é
possível se se atribuir a esse referendo efeito retroactivo, porque o
tratado que constituiu a União Europeia foi o Tratado da União
Europeia. O problema da construção não está, portanto, aqui em causa.
Estará, seguramente, o do aprofundamento, mas, neste caso, pergunto se
os senhores querem mesmo submeter a referendo qualquer tratado que seja
celebrado no âmbito da União Europeia ou apenas os tratados que estão
previstos no n.º 6 do artigo 7.º da Constituição, por terem implicações
constitucionais. Creio que é a estes últimos que querem referir-se, mas
tal não é claro. Recordo que há tratados celebrados no âmbito da União
Europeia, várias convenções internacionais, como a convenção EUROPOL e
a convenção sobre extradição, por exemplo, ratificados pelos
Estados-membros nos termos constitucionais e que, de acordo com esta
formulação, estão incluídos nesta previsão…
Há aqui, portanto, uma formulação mais ampla do que aquilo que, do
nosso ponto de vista, devia ser consagrado, que é a possibilidade de
submeter a referendo os tratados que tenham implicações constitucionais
e que estejam relacionados com a participação de Portugal no processo
de integração europeia.
Em suma, quer parecer-nos que, mesmo do ponto de vista dos
objectivos visados, não é esta a melhor formulação, pois, por ser
imprecisa, poderá no futuro vir a colocar problemas interpretativos,
espalhar equívocos e, inclusivamente, vir a pôr em causa a realização
de um futuro referendo que todos, pelos menos alegadamente, desejam.
Daí que, sendo embora nós firmemente defensores da possibilidade de
os portugueses se pronunciarem em referendo sobre os tratados relativos
à integração de Portugal na União Europeia, tenhamos reservas quanto à
formulação adoptada relativamente aos objectivos alegadamente visados. |