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Portugal e o Pico de Hubbert - Intervenção de Jorge Figueiredo - Sessão sobre Energia
Segunda, 21 Maio 2007

Um fantasma ronda o mundo.  É o fantasma do fim da era do petróleo.  O início do seu fim está a dar-se neste momento, quando a humanidade atinge o Pico Petrolífero.  A partir deste ponto máximo a curva da produção mundial já não pode aumentar e inicia o seu declínio irreversível.  Nos próximos 40 ou 50 anos a dotação de petróleo convencional existente no planeta deverá estar praticamente esgotada.  Trata-se de um facto com profundas, graves e pesadas consequências para toda a humanidade, até mesmo de ordem demográfica.

Nos breves 15 minutos concedidos para esta intervenção é impossível explicar com mais pormenor a teoria desenvolvida pelo Dr. King J. Hubbert, o grande geofísico norte-americano.  Para os interessados remeto às investigações contemporâneas de cientistas como Collin Campbell, Jean Laherrere, Ali Bakhtiari, Kenneth Deffeyes, Matthew Simmons, Rui Namorado Rosa e tantos outros, que corroboram a plena validade da descoberta do Dr. Hubbert.

Pode-se perguntar:  por que chamámos de fantasma àquilo que é um facto já estabelecido por numerosíssimas evidências empíricas e dados quantitativos?  Resposta:  pela simples razão de que tal facto está a ser omitido e silenciado.  Trata-se de um conhecimento reservado apenas a "iniciados".  Os governos do mundo que sabem da existência do Pico Petrolífero escondem-no dos seus cidadãos.  As empresas petroleiras preferem não falar do assunto em público, tentando prolongar ao máximo uma situação que lhes é vantajosa.  E os media ditos "de referência" vão entretendo o público com ficções marginais, como essa gigantesca campanha para instilar o medo de um suposto aquecimento global. 

Não precisaremos esperar 50 anos para sentir as consequências do Pico.  Elas já começaram a se fazer sentir.  Basta ver a nova agressividade do imperialismo pelo domínio dos recursos petrolíferos remanescentes no planeta, na África, Ásia, América Latina e obviamente Médio Oriente, onde chega a brutais invasões armadas e à instalação de bases militares permanentes.  Assistimos a tudo isso, mas entre o grande público persiste um défice de percepção das suas causas de fundo:  o fim da Era do Petróleo, anunciado pelo Pico (ou actual plateau).

Há uma realidade que deve ser encarada de frente:  o petróleo convencional não pode ser substituído, não existe no mundo qualquer outra energia primária que substitua a quantidade agora produzida e consumida de petróleo convencional, da ordem do 84 milhões de barris por dia.  Nem os petróleos não convencionais (deep offshore, polar, areias betuminosas, petróleos pesados, processos coal to liquids e gas to liquids, etc), nem as energias renováveis (como as mixórdias feitas com biocombustíveis líquidos), nem o metano fóssil ou não-fóssil podem substituir as quantidades colossais hoje gastas na grande festa do consumo de petróleo.  Simplesmente não existem meios energéticos alternativos para tais quantidades. 

Deste dado factual devem-se tirar as conclusões que se impõem.  1) a humanidade terá necessária e inevitavelmente de reduzir o seu consumo energético;  2) deveríamos desde já preparar uma transição tão suave quanto possível, não traumática, para o mundo pós petróleo.  Tal preparação, estima um investigador norte-americano, levará pelo menos uns dez anos e exigirá grandes investimentos.

Além disso, há uma terceira conclusão a ser extraída:  a partir de agora deveríamos poupar tanto quanto possível do petróleo remanescente no planeta em benefício das gerações vindouras.  É o que propõe o "Protocolo do Esgotamento" (Depletion Protocol), um esquema inteligente de racionalização da produção e consumo de petróleo destinado a congregar os interesses divergentes dos países produtores e dos países consumidores.  O PCP já deu um passo nesse sentido:  muito lucidamente apresentou no Parlamento o Projecto de Resolução Nº 164/X (Diário da Assembleia da República, 2ª série, 20/Dezembro/2006). 

Se no plano mundial já há numerosos estudos acerca das consequências do início do fim da Era do Petróleo, aqui no nosso burgo lusitano estamos atrasadíssimos até mesmo quanto à consciência da própria existência do Pico, e mais ainda quanto às suas consequências.  Continuamos alegremente a festa do consumo desbragado de petróleo, como se ela pudesse perdurar para sempre.  A ignorância dos governantes portugueses é aterradora e nem sequer dispõem de uma política energética digna desse nome.

A dependência portuguesa das importações de energia é da ordem dos 84 por cento.  Além disso verifica-se um afunilamento:  do total da energia importada, 68 por cento é constituída por petróleo.  Trata-se de uma situação assustadora mesmo nesta fase incipiente em que as consequências do Pico ainda são ténues.  Considerando que no mundo pós-Pico haverá uma tendência estrutural para o aumento do preço do barril, Portugal ficará numa situação de vulnerabilidade total. 

Em 2005 o país efectuou importações líquidas de 15,88 milhões de toneladas de petróleo.  A repartição do consumo final nesse ano, como mostra o balanço energético da DGGE, foi assim:

Sector

Toneladas

%

Agricultura e pescas

278.290

2,4

Indústrias extractivas

74.190

0,7

Indústrias transformadoras

1.535.808

13,5

Construção e obras públicas

849.890

7,5

Transportes

   dos quais: rodoviários

6.840.828

6.199.830

60,0

54,4

Doméstico

715.656

6,3

Serviços

1.100.647

9,7

Consumo final

11.395.309

100

Estes números mostram a desindustrialização do país (apenas 13,5 por cento para a indústria transformadora).  Mas mostram sobretudo o verdadeiro cancro que corrói a economia portuguesa:  o desbragado consumo energético do sector dos transportes, o qual é constituído quase exclusivamente por refinados de petróleo.  Qualquer governo decente consideraria tal situação, em si mesma, como insustentável.  Mesmo que não estivéssemos na primeira fase do mundo pós-petróleo (adoptando o modelo classificatório das quatro fases proposto por Bakhtiari) a situação presente é altamente preocupante e exige medidas de emergência no imediato.  

Tratar com profundidade assuntos secundários e ignorar o que é realmente importante constitui uma atitude suicida - mas parece ser aquela adoptada pelo governo Sócrates.  Por ignorância ou inconsciência, o governo português não só não está a tomar a medidas necessárias para minimizar o impacto do fim da Era do Petróleo como efectua acções que poderão agravá-lo, comprometendo gerações futuras de portugueses.  Impõe-se que tal atitude seja revertida, tendo em atenção os timings, ou seja, as quatro fases que decorrerão entre o presente e o ano 2020.  É preciso que a actual primeira fase do pós-Pico (a decorrer até 2009-2010), relativamente benigna, seja aproveitada para preparar as fases mais gravosas que virão a seguir.

Assim, aponta-se como rumos de actuação o seguinte conjunto de medidas:

1) Criar, no âmbito do Estado, um grupo nacional de preparação para o enfrentamento do Pico Petrolífero, constituído por sábios e personalidades eminentes no domínio da energia.

2) Reexaminar todos os grandes projectos nacionais à luz das consequências do Pico Petrolífero, o que deverá conduzir à paralisação do desenvolvimento dos projectos mais absurdos agora em curso (como o novo aeroporto, o TGV e a proliferação de termoeléctricas a gás natural);

3) Relançar o Plano Energético Nacional (PEN), com base na regra dos 80/20 e uma atenção muito especial ao sector dos transportes.  O novo PEN deverá abandonar a política de demissionista do Estado no domínio energético, hoje entregue à sanha predatória do capital monopolista em busca do lucro a curto prazo;

4) Iniciar a consciencialização dos operadores económicos, do público em geral e dos próprios governantes quanto à real situação energética do mundo;

5) Ter em atenção aquilo que outros governos europeus estão realmente a fazer - ainda que de forma discreta - no domínio das medidas preparatórias para minimizar o impacto do Pico Petrolífero (o que não coincide com as políticas apregoadas pela União Europeia);

6) No domínio dos transportes rodoviários, iniciar uma política geral de substituição dos combustíveis petrolíferos pelo gás natural comprimido (GNC) e gás natural liquefeito (GNL), com a instalação de uma rede postos de abastecimento de GNC e GNL;

7) Adjudicar a laboratórios do Estado (INETI) a instalação de protótipos e posterior generalização de instalações para a produção de biometano a partir de ETARs, aterros sanitários e biomassa florestal;

8) No domínio da produção de electricidade:  a) esgotar o potencial hidroeléctrico nacional nos próximos 10 anos;  b) privilegiar o carvão na instalação de novas centrais termoeléctricas;  c) suspender os licenciamentos de quaisquer novas termoeléctricas a gás natural;  d) preparar a instalação de uma primeira central nuclear em Portugal. 

Caro amigos: 

Penso que mal pude aflorar as questões principais. Mas, dentro do espaço de tempo que me foi concedido, este é o resumo que consigo transmitir quanto às nossas reflexões acerca do futuro da energia em Portugal.  Muito obrigado pela vossa atenção.  Fico à disposição para quaisquer esclarecimentos.